domingo, 14 de fevereiro de 2021

As trevas emergentes do Capitalismo Digital


Em julho de 2017, o Wall Street Journal relatou que, desde 2009, a Google procurava ativamente, e financiava, professores universitários para investigarem e escreverem dissertações que apoiassem o ponto de vista da Google quanto à regulação da atividade destas empresas do capitalismo digital. Por outro lado, o New York Times noticiava que o diretor da New America Foudation cedeu à pressão da Google e despediu um dos académicos mais respeitados, juntamente com a sua equipa de dez investigadores, no seguimento de uma investigação antimonopolista a propósito das sanções aplicadas pela União Europeia, no valor de 2,7 mil milhões de dólares, à Google. A notícia acrescentava que a Google ultrapassava todas as empresas no que respeitava aos seus sofisticados métodos para exercer a sua influência sobre os reguladores e os poderes políticos. Neste domínio, a Google tinha expandido até ao topo a sua dinâmica de mercado de expropriação humana, só secundada pelo Facebook, e a traduzi-la em previsões comportamentais tão cobiçadas pelos anunciantes e operadores de marketing na internet.

A matéria-prima do capitalismo digital são os dados e a sua extração e análise. A bem dizer, a matéria-prima são os utilizadores das redes sociais, porque os dados têm a ver com os hábitos e comportamentos das pessoas. Uma atividade não apenas de espionagem dos nossos comportamentos, como também da sua manipulação e condicionamento. As plataformas físicas que conectam computadores e smartphones numa rede virtual quase infinita, operada por inteligência artificial, mas controlada pela inteligência humana de uns tantos, apropria-se de dados que têm a ver com os comportamentos das pessoas e as suas relações sociais em grande escala.

Se um utilizador das redes sociais tiver a veleidade de preservar a sua privacidade e estar em segurança, das duas uma: ou estuda com exaustão o tema para perceber o que está a utilizar, o que não é para todos; ou então mais vale não entrar no sistema. É quase impossível estar a salvo de qualquer risco. Em primeiro lugar nada é gratuito. Se é gratuito, porque é que é gratuito? Mas a maior parte das pessoas não está para isso, quer algo que funcione e, de preferência, que seja gratuito. O WhatsApp faz isso e fá-lo muito bem há muito tempo, mesmo antes de ter sido comprado pelo Facebook
É importante referir que a informação não é vendida, algo consagrado no acordo entre o WhatsApp e o utilizador, mas pode ser trabalhada e partilhada com o Facebook, sendo suscetível de ser confiscada. Hoje já são as plataformas a decidir que dados podem ser cedidos às autoridades, mas o caminho da cifragem total é ainda muito incerto. A guerra pela informação está apenas a começar.

Com 2 mil milhões de pessoas, mais do que em qualquer país do mundo, o WhatsApp enfrenta críticas pelo envio de informação para o império Facebook. Há milhões de utilizadores a mudar para o Telegram ou o Signal. A empresa-mãe, o Facebook, controla um conjunto de aplicações, um ecossistema que permite saber com quem se fala, o que se vê, partilha e gosta, aquilo que se compra e onde se está. A maior parte desconhecerá que o WhatsApp não se cinge a recolher informações de contacto e que até a informação financeira pode ser recolhida. Ou que o Messenger também tem acesso a dados de saúde e fitness, financeiros e de compras, assim como ao histórico de navegação e de pesquisa. 

Ao fim e ao cabo, todas as aplicações, todas as marcas, vão dar ao mesmo. Tudo depende da forma como usamos e para que usamos as aplicações. Não há problema de maior se esta for utilizada para falar com amigos ou com a família, mas a situação inverte-se em âmbito profissional. Quem trabalhe com material classificado, com riscos de segurança de informação, deve ter cuidado. Em causa não está propriamente o conteúdo das mensagens, cuja cifragem é bem feita. O que interessa ao mercado digital são os metadados. A informação que o utilizador dá é suficiente para montar um quadro, um perfil do utilizador. 
É um manancial de informação que cada um disponibiliza a uma única empresa a cada segundo, cujas consequências para a vida futura começam a ser visíveis. Nunca sabemos até onde são levados os nossos dados. O problema aqui não é bem a informação isolada, mas como é depois trabalhada. Os dados de saúde e fitness no Messenger podem ser usados para quê? Podem ser usados, por exemplo, pelas seguradoras para avaliarem o risco de fazerem um seguro de determinada pessoa. Se considerarem, pelos grupos que frequento, pelo que partilho e pelo que procuro, que sou um doente de risco, posso não conseguir ser segurado. Posso mesmo nem conseguir um crédito bancário no futuro. 

Quando a Google foi criada, em 1998, a Internet Mundial aberta ao público utilizador de computadores ainda era uma criança. Estávamos ainda na Segunda Modernidade, e o lema da empresa era ser uma força social libertadora e democrática. Mas o ano 2000 marca indelevelmente a entrada na Terceira Modernidade. Poucos anos passados, a base de dados do motor de busca Google estava cheio de informação colateral relacionada com as interações entre os seus utilizadores. E não tardou que os seus técnicos tenham percebido o que podiam fazer com essa informação colateral. O que inicialmente não passava de matéria residual, transformou-se em matéria-prima de um processo de aprendizagem da máquina, hoje chamada inteligência artificial. Efetivamente, os utilizadores que fazem as pesquisas no Google não são nem produto acabado, nem cliente, são fonte de abastecimento de matéria-prima para ser trabalhada pelos algoritmos da inteligência artificial. Os resultados desse trabalho sobre as pesquisas que fazemos no Google é que é o produto. É a fonte para as previsões dos nossos comportamentos que vão ser compradas pelos verdadeiros clientes da Google, e estas previsões sim, é que fazem a riqueza astronómica da Google

No início, a Google apresentou a sua filosofia empresarial, que efetivamente revelava que o utilizador é que fornecia a matéria-prima. E na volta o utilizador recebia os serviços melhorados em crescendo. Neste ciclo de reinvestimento virtuoso ambas as partes ganhavam. Um estado de equilíbrio, portanto. Assim, o motor de busca Google cumpria a sua declaração de missão: organizar a informação mundial para a tornar universalmente acessível e útil. Mas, entretanto, deu-se o crache das “dot.com”, no início deste século XXI, um terramoto do qual a Google deu a volta por cima, dando o dito por não dito, passando a interessar-se pela publicidade. E os utilizadores de fornecedores da matéria-prima, passaram a ser a própria matéria-prima, como se fosse tão inerte como a restante matéria-prima industrial. Por outras palavras, a Google não se limitaria a ser uma mineira a minar os dados comportamentais, para apenas se limitar a melhorar o serviço aos utilizadores, mas para lhes ler a mente, com o intuito de fabricar os melhores anúncios na caça do consumidor alvo. Ao encontro dos melhores interesses do utilizador enquanto consumidor a partir dos traços colaterais do seu comportamento online. Com o acesso único da Google aos dados comportamentais, seria agora possível conhecer o que um dado individuo num dado lugar e tempo pensava, sentia e fazia. Mas isto só estava ao alcance de uma minoria de especialistas académicos. Nessa altura, o resto do mundo ainda estava num estado torpor psíquico profundo. Isto é, ainda estava adormecido para tão inéditos e ousados atrevimentos deste capitalismo digital da terceira modernidade. Estava-se efetivamente a galgar a terceira modernidade.

A pesquisa de uma palavra desencadeia automaticamente um anúncio de acordo com o perfil do pesquisador, tudo gerido matematicamente em frações de segundo, com uma previsão inacreditavelmente tão minuciosa e acertada. A este tipo de previsão chama-se agora informação de perfil de utilizador. E o anunciante já não precisa de se deitar a adivinhar. É a certeza da exatidão matemática que estamos a falar. Agora já percebemos quem são os verdadeiros clientes da Google ou do Facebook: os Anunciantes, a quem vendem os dados derivados do nosso comportamento como utilizadores. Um subproduto das nossas ações, portanto, mas que é transformado em ouro preditivo. Nós, os utilizadores, somos a mina expropriada, da qual se extrai o ouro, matéria-prima para as fábricas da Google e do Facebook. Os seus produtos são as provisões sobre o nosso comportamento que é vendido aos seus clientes, ou seja, as empresas que vão colocar a publicidade a fim de nos influenciarem a comprar os seus produtos.

Para todos os efeitos, a Google e o Facebook são empresas intermediárias entre nós e os fabricantes ou vendedores das chamadas comódites, que estamos interessados em comprar. Estas empresas operadoras das redes sociais colhem, desfazem e apropriam-se da natureza humana e vendem-na num mercado digital. É a extração do comportamento humano para fins de fabrico e venda. Desde cedo que os produtos preditivos da Google se destinavam à venda para publicidade direcionada. Mas a publicidade foi o começo não o seu fim. Qualquer agente interessado em comprar informação probabilística sobre o nosso comportamento pretende depois influenciar o nosso comportamento futuro. Para isso, as empresas clientes da Google, ou do Facebook, pagam pelo conhecimento futuro do nosso comportamento, para melhor nos venderem os seus produtos.

Estamos, então, na Terceira Modernidade. A Segunda Modernidade teve início com a Revolução Industrial no século XVIII, depois da Revolução Científica do século XVII, que constituiu a Primeira Modernidade. Associado a tudo isto está o Capitalismo. E a
s várias transformações por que passou o Capitalismo na Modernidade, nunca se fizeram sem tumultos sociais. Por isso, esta última transformação para o Capitalismo Digital não iria ser exceção.  

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