quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Ironia Histórica

 


Esta pandemia ainda não terminou e não é preciso esperar pelos historiadores para estarmos a ver em direto a ironia histórica a acontecer. Agora imaginem a ironia histórica acerca desta pandemia quando passar mais algum tempo e conseguirmos ver os factos com mais algum distanciamento.

Tipos de ironia situacional, como a histórica, supostamente lidam com a completa ignorância e a crença oposta em relação à realidade factual. No entanto, certas crenças de índole religiosa inculcam na nossa cabeça que o lado irónico das coisas da nossa história são obra da Providência Divina, e não do acaso ou da natureza humana. Tais ironias são muitas vezes mais evidentes, ou mais marcantes, a posteriori, quando vistas retrospetivamente à luz de desenvolvimentos que tornaram a verdade dos factos passados óbvia para todos. 
ironia situacional descreve uma discrepância acentuada entre o resultado esperado e os resultados reais de uma determinada situação. 

Os média e todo o espaço mediático vão-se alimentando de polémicas opinativas entre contrários. E a ironia é gerada pela polémica, quando factos apresentados por uma das partes da barricada são negados pela outra que incomoda não os quer ver. E, portanto, é a atitude negacionista que se impõe, que passa pela recusa em ver o facto para poder diabolizar o outro, o denunciante do facto. Um dos pecados dos média atualmente é estarem a dar conta da realidade condicionados por agendas que, embora legítimas e bem-intencionadas, são ingenuamente ultrapassadas pela ironia da história. Veja-se, por exemplo, o que se está a passar em Portland, nos Estados Unidos da América: grupos de extrema esquerda anarquista, que parasitando a causa dos #blacklivesmater, continuam a invadir as ruas destruindo tudo por onde passam e com palavras de ordem de "queremos vingança, não queremos Biden nem democracia". Ora, sejam bandos de fundamentalistas de extrema direita, sejam bandos de anarquistas de extrema esquerda, os média não podem ter um duplo padrão moral ao não dar a visibilidade devida destes factos relacionados com a violência gerada. Isso acaba por indignar todos aqueles que ao sofrerem na pele tal violência, mesmo tradicionalmente apoiantes de forças políticas de esquerda, são empurrados para o voto na extrema direita, que diz compreendê-los. À semelhança do que se está a passar nos EUA, tem-se passado em França com os recém-votantes em Le Pen, que anteriormente eram eleitores de esquerda. Além dos coletes amarelos, sabe-se também que a tremenda violência homofóbica por parte da comunidade muçulmana em França, praticamente só denunciada por Marine Le Pen, tem levado a uma parte considerável de pessoas homossexuais a votar na extrema direita, facto que cruza todas as suas barreiras e simbologias de esquerda adotadas num passado ainda recente.

Ironia socrática, termo que e deve ao filósofo Sócrates, dado que ele dissimulava ignorância como forma de confundir um adversário em polémica filosófica com ele. Sócrates fingia ser ignorante do tema em discussão, para extrair o absurdo inerente aos argumentos dos seus interlocutores. Fingia saber menos do que o seu interlocutor, quando estava convencido que sabia mais. É a técnica dos diálogos platónicos, fingir ignorância e, mais sorrateiramente, fingir credibilidade no poder de pensamento do seu oponente, para depois o armadilhar. Aristóteles menciona Eironeia, que em seu tempo era comumente empregada para significar dizer menos do que se quer dizer.

Schopenhauer, em O Mundo como Vontade de Representação, Volume 2, Capítulo 8, alegou que a total oposição entre o que é pensado e o que é visto constitui ironia. Ele escreveu: "... se com intenção deliberada algo real e percetível é trazido diretamente sob o conceito de seu oposto, o resultado é ironia simples e comum". Exemplos: Está a chover torrencialmente e dizemos: "Que tempo agradável hoje"; ou, de uma noiva feia é dito: "Ele encontrou um tesouro adorável"; ou, perante um homem desonesto: "Este homem é honrado". Apenas crianças e pessoas sem qualquer educação vão rir de qualquer coisa deste tipo. Aqui, a incongruência entre o concebido e o percebido é total.

Kierkegaard, filósofo dinamarquês, vê a ironia, a usada por Sócrates, como uma força disruptiva com o poder de desfazer textos e leitores. A frase em si é tirada das Palestras sobre a Estética de Hegel, e é aplicada por Kierkegaard à ironia de Sócrates. Essa tradição inclui: o crítico e romancista alemão do século XIX Friedrich Schlegel ("On Incomprehensibility"), Charles Baudelaire, Stendhal e Paul de Man. Ironia como negatividade infinita e absoluta. É negatividade, porque só nega; é infinito, porque não nega este ou aquele fenómeno; é absoluto.

História, vista através dos olhos dos historiadores modernos, é uma história de contrastes acentuados entre a forma como os protagonistas da história viam o futuro de seu mundo, e o mundo que realmente aconteceu. Por exemplo, durante a década de 1920, o The New York Times repetidamente desprezava palavras cruzadas. Em 1924, lamentou "o desperdício pecaminoso na descoberta totalmente fútil das palavras das quais se encaixarão num padrão pré-arranjado". Em 1925, disse: "A questão de saber se os quebra-cabeças são benéficos ou prejudiciais não é necessidade urgente de uma resposta, a mania, evidentemente, está a morrer rapidamente". Hoje, nenhum jornal americano é mais identificado com as palavras cruzadas do que o The New York Times.

Um exemplo trágico de ironia histórica foi a Primeira Guerra Mundial, em que os bem-pensantes diziam que aquilo acabaria num instante, era a guerra para acabar com a guerra. E isso se tornou um truísmo generalizado, quase um clichê. Outro exemplo pode ser o da Guerra do Vietname, na década de 1960 os EUA tentaram impedir que os vietcongues assumissem o Vietname do Sul. No entanto, é um facto muitas vezes ignorado que, em 1941, os EUA originalmente apoiaram o Viêt Minh em sua luta contra a ocupação japonesa. A Liga pela Independência do Vietname foi um movimento revolucionário de libertação nacional criado por Ho Chi Minh em 1941 na China, para obter a independência de colónia francesa durante a Segunda Guerra. E muitos mais exemplos poderiam ser dados, como o caso de Osama bin Laden apoiado pelos EUA na guerra da União Soviética contra o Afeganistão.

Na introdução de A Ironia da História Americana, Andrew Bacevich escreve: "Após o 11 de Setembro, a administração Bush anunciou a sua intenção de levar a liberdade e a democracia ao povo do Médio Oriente. Ideólogos dentro da administração Bush convenceram-se de que o poder americano, habilmente empregado, poderia transformar aquela região... Os resultados falam por si só. A ironia histórica é, portanto, um subconjunto de ironia cósmica, mas em que o elemento “Tempo” é obrigado a desempenhar o seu papel.

Na série Columbo, o personagem Tenente Columbo é aparentemente ingénuo e incompetente. Sua aparência desarrumada aumenta essa ilusão desordenada. Como resultado, ele é subestimado pelos suspeitos em casos de assassinato que ele está investigando. Com a guarda baixa e a sua falsa sensação de confiança, o Tenente Columbo é capaz de resolver os casos, deixando os assassinos se sentindo enganados.

Uma grande confusão cercou a questão da relação entre ironia verbal e sarcasmo. Sarcasmo não envolve necessariamente ironia e ironia muitas vezes não tem nenhum toque de sarcasmo. Isso sugere que os dois conceitos estão ligados, mas podem ser considerados separadamente. Quando Bessie Braddock disse que Churchill estava bêbado, Churchil respondeu: "Mas eu estarei sóbrio pela manhã, e você continuará burro”. O ridículo é um aspeto importante do sarcasmo, mas não da ironia verbal em geral. Por conseguinte, sarcasmo é um tipo particular de crítica para ridicularizar uma pessoa ou grupo de pessoas que incorpora ironia verbal. Por exemplo, uma mulher relata a sua amiga que, em vez de ir a um médico para se tratar, ela decidiu ir a um curandeiro espiritual. Em resposta, a amiga diz sarcasticamente: "Oh, brilhante, que ideia engenhosa, de certeza que te vai curar." Também poderia ter respondido com uma expressão irónica sem sarcasmo: "Grande ideia! Ouvi dizer que eles fazem um bom trabalho". Mas pode ser difícil distinguir de uma hipérbole ou de um eufemismo jocoso: "Essa é a melhor ideia que ouvi em anos!"; "Claro, que diabo, é apenas um cancro, você até podia ir a um endireita”.  

A ironia como técnica literária ou retórica, diz à superfície radicalmente o contrário do que quer dizer em profundidade. Há um enquadramento da ironia, daí a ironia verbal ser diferente da ironia dramática e da ironia situacional. Na ironia verbal o que o orador quer dizer é nitidamente diferente do significado que é ostensivamente expresso. A ironia verbal distingue-se da ironia situacional e da ironia dramática, pois é um ato de fala intencional. Por exemplo, se eu digo: "Não estou chateado!" revelando um estado emocional perturbado que o tom de voz não engana, não seria ironia verbal em virtude da sua componente performativa é mais um caso de ironia situacional e não de ironia verbal. Mas se eu dissesse as mesmas palavras sem revelar estados de alma, mas querendo dar a entender que estava chateado, neste caso seria ironia verbal. Essa distinção ilustra um aspeto importante da ironia verbal: proposições implícitas contraditórias com as proposições explícitas. Há, no entanto, exemplos de ironia verbal que não dizem o oposto do que se quer dizer. E há frases que têm todos os critérios para ser uma ironia, e todavia a expressão não é irónica.

A ironia dramática, cujo enquadramento é o da representação, explora o dispositivo de dar ao espectador um item de informação que pelo menos um dos personagens da narrativa desconhece (pelo menos conscientemente), colocando assim o espectador um passo à frente de pelo menos um dos personagens. O significado (trágico) do discurso incongruente, ou as ações de um personagem é revelado ao público, mas desconhecido do personagem em questão. Isto é encontrado já nas origens da tragédia grega, por exemplo em Sófocles. Em resumo, significa que o leitor/observador/ouvinte sabe de algo que um ou mais dos personagens da peça não estão cientes. Ironia trágica é uma categoria especial de ironia dramática. Em ironia trágica, as palavras e ações dos personagens contradizem a situação real, que os espectadores percebem plenamente. A incongruência criada, é o significado trágico do discurso, ou das ações de um personagem, que é revelado ao público, mas desconhecido para o personagem em questão.

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