O jovem médico português Sidónio Rosa, perdido de amores pela mulata moçambicana Deolinda, que conheceu num congresso médico, foi para Moçambique como cooperante. É a história não contada da família dos Sozinhos - Munda e Bartolomeu, o velho marinheiro da casa das máquinas do Infante Sagres. O ex-mecânico é uma sombra esvoaçando no escuro. As mãos dele confirmam a fivela do cinto com receio de que as calças arreiem.
Ah, Doutor, é mesmo o senhor, é que essa aí, às vezes, me engana, ela se disfarça só para eu lhe abrir a porta.
O gesto firme é uma ordem para que a esposa fique fora. Com passo hesitante, Sidónio vai entrando como se os cheiros bafientos ocupassem todo o obscuro quarto. Bartolomeu vai à frente arrastando os pés. Atrás segue a esposa, debicando distâncias. Os passos dele são pequenos: de um chão de prisão. Os passos dela são redondos: de quem anda em ilha.
Então meu amigo, está melhor? Eu só melhoro quando deixo de ser eu. Gosto de o ver assim, sempre filósofo. Desculpe, Doutor Sidonho, eu gosto de o ver, mas não gosto que me visite. Ora, estamos pessimistas hoje? Então, me diga: qual é a cura para a minha doença, Doutor? Viver é que não tem cura, caro amigo. Nunca mais saio deste maldito barco.Refere-se aos enjoos? Aos enjoos, a esta porcaria deste balanço, parece que ainda estou na merda do navio. Eu vejo-o, assim de farda branca, e o Doutor me lembra o comandante do navio . . . Ora, esta é uma simples bata de médico. A sério, até parece que ainda viajo lá no paquete, parece que escuto as águas ondeando . . . Cure-me de sonhar, Doutor.Sonhar é uma cura. Um sonhadeiro anda por aí, por lonjuras e aventuras, sei lá fazendo o quê e com quem . . . Não haverá um remédio que me anule o sonho? Sonhar só o faz ficar mais vivo. Para quê? Estou cansado de ficar vivo. Ficar vivo não é viver, Doutor. Para dizer a verdade, o senhor nem devia voltar aqui. Não quer que volte? É que o senhor entra neste quarto malcheiroso e eu o vejo mais como coveiro do que meu salvador. Aqui, neste leito, eu já vou no meu próprio desfile fúnebre. E mais, Doutor: acho que o senhor não tem nada a fazer aqui. Eu vivo tão sozinho que nem doença tenho para me acompanhar. Eu hei de morrer de nada, só por acabar de viver. Mas hoje não, hoje não morra que é domingo.
Domingo é dia de janela. A meio da manhã, ele se desamarra do reumatismo, ergue-se arrastoso e se encosta na luz, a contemplar a rua. Meio oculto entre os cortinados, não vê muito, quase que não escuta. Melhor assim: os sons desfocados já não o convocam. Apesar de tudo, vai acenando. De que vale estar à janela se não é para dizer adeus?
Dos mortos da Covid-19
Todos os dias os jornais apresentam títulos como o que apresento neste recorte de um jornal de ontem: "O medo de serem esquecidos e de ficarem confinados até ao fim da vida deles". Mas a Mia Couto não escapam estas subtilezas, como até as do mau cheiro: "É que o senhor entra neste quarto malcheiroso e eu o vejo mais como coveiro do que meu salvador". A decadência do organismo humano, o processo a que chamamos morrer, quase sempre é acompanhado de mau cheiro. As sociedades desenvolvidas têm uma grande sensibilidade aos cheiros fortes. Em algumas regiões menos desenvolvidas, aquela realidade que Mia Couto nos conta nos seus romances, as pessoas próximas oferecem conforto e atenção aos moribundos por força da tradição. Por isso, quando um membro baixa ao hospital, são os próprios parentes a dar consolo, ao assumir os cuidados rotineiros, libertando a equipa de enfermagem para as tarefas mais diferenciadas. Isso é um claro contraste com o que acontece nos hospitais em países mais desenvolvidos, onde a equipa sente obrigação de gastar parte do seu tempo a confortar.
O que fazer, se sabemos que uma pessoa preferiria morrer em casa a morrer no hospital? Sabemos que em casa ela morrerá mais rapidamente. Mas talvez seja exatamente isso o que ela quer. É claro que nas sociedades mais desenvolvidas dos dias de hoje, a perfeição técnica do prolongamento da vida certamente não é o único fator que contribui para o isolamento dos moribundos em nossos dias. A maioria dos que têm morrido da Covid-19 nos hospitais pertence a uma família. Mas mais do que a presença da família poder ocasionar problemas sérios para os médicos e a equipa de enfermagem do hospital, reduzindo inclusive a eficácia dos cuidados, é o vírus que não deixa. Este é o conflito não resolvido na institucionalização ostensivamente racional da morte. O moribundo recebe o tratamento médico mais avançado e cientificamente recomendado disponível. Mas os contactos com as pessoas a que está ligado, e cuja presença pode proporcionar o maior conforto para aquele que parte, são considerados inconvenientes para o tratamento racional do paciente que requer pessoal com uma preparação técnica muito superior. E assim esses contactos são reduzidos ou impedidos sempre que possível.
O quadro da diferença entre a morte de um africano de Mia Couto, e um europeu, é nítido. De um lado, o tipo antigo: os membros da família se reúnem em torno da pessoa doente, trazem comida, dão os remédios, limpam e lavam o paciente com a sujidade que trazem da rua para o leito do paciente, cuidando dele sem lavar as mãos. Possivelmente apressam o fim, pois nada disso é muito higiénico. Mas pode ser uma das grandes alegrias dos moribundos estarem cercados por parentes e amigos, encontrar eco dos seus sentimentos nos outros que se ama e a quem se está apegado, e cuja presença faz surgir um sentimento terno de pertencer à família humana. Essa afirmação mútua das pessoas através de seus sentimentos, o eco dos sentimentos entre duas ou mais pessoas, desempenha um papel central na atribuição de significado e sentido de realização para uma vida humana - afeição recíproca, por assim dizer, até ao fim.
Não haja ilusões: as famílias em povos menos desenvolvidos são muitas vezes tudo, menos harmoniosas. Frequentemente apresentam maior desigualdade de poder entre homens e mulheres e entre jovens e velhos. Seus membros podem amar-se ou odiar-se, talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Pode haver relações de ciúme e desprezo. Só uma coisa é rara nesse nível de desenvolvimento social, especialmente nos casos em que as mulheres, as mães, formam o núcleo integrador afetivo da família: não há neutralidade emocional no quadro da família extensa. De certa maneira, isso ajuda os moribundos. Despedem-se do mundo publicamente, num círculo de pessoas cuja maioria tem grande valor emocional para os moribundos, e para os quais estes têm o mesmo valor. Morrem menos higienicamente, mas não sós. Na unidade de cuidados intensivos de um hospital moderno, os moribundos podem ser tratados de acordo com o mais recente conhecimento biofísico especializado, mas muitas vezes de maneira neutra em termos de sentimentos. Morrem em total isolamento.
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