terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Testemunhos: golpistas e caça às bruxas

 

Como sente este momento histórico que estamos a viver? A pandemia é uma guerra diferente?

Seria mentira dizer que sinto indiferença. Gostaria de ser indiferente, de não me importar. Gostaria que a estupidez da Humanidade me tivesse vacinado contra a compaixão. Repito: gostaria que a estupidez da Humanidade me tivesse vacinado contra a compaixão. Não o consegui, pois sofro ao ver a dor dos outros. No entanto, olho para tudo isto com algum distanciamento. Quando estás a ler Tácito, Tito Lívio, Homero, Virgílio, Catulo, Xenofonte e Sófocles, isso ajuda-te a aceitar as regras terríveis do cosmos e do mundo. Ajuda-te a arrefecer, a serenar. Não te tira a compaixão: permite-te olhar com objetividade. Se morrer disto, vou morrer, não é que seja indiferente, mas estou um pouco de fora, não sei por que razão gritam tanto. [Arturo Pérez-Reverte]

 

Há pessoas oportunistas que fazem batota vacinando-se indevidamente à frente da sua vez, por não pertencerem aos grupos prioritários. Há pessoas que facilmente caem no conto do vigário, acreditam em milagres e em teorias da conspiração.
Porque será?
O Jornalista: “Temos informações de familiares que nos dizem que foram informados por médicos do Santa Maria de que o seu familiar, que está doente, por ter 70 anos, se houvesse algum problema não iria para os cuidados intensivos”. Responde o Diretor Clínico do Centro Hospitalar Lisboa Norte: “Isso é totalmente falso. Não há nenhum critério etário para admissão em cuidados intensivos ou em qualquer outra unidade de internamento.”
Francisco Ramos, coordenador das ações de vacinação, comparou, na SIC Notícias, em total despropósito, à pergunta do jornalista, acerca dos prevaricadores que se vacinaram indevidamente à frente da sua vez, se moralmente teriam direito a receber a segunda dose da vacina. O Jornalista insistiu várias vezes no caso do INEM no Porto. E Francisco Ramos respondeu que não conhecia o caso. Mas muito mais à frente no decorrer da entrevista o Jornalista volta à carga perguntando se os prevaricadores vão receber a 2ª dose. E Francisco Ramos, vendo-se que ficou atrapalhado com a pergunta, foi aqui que teve aquela tal tirada infeliz dos votantes do Ventura. E ainda disse que aquele tipo de pergunta feito pelo jornalista, seria um tipo de pergunta típico dos votantes de Ventura, “espírito vingativo”. E o Jornalista a azedar e a insistir na imoralidade dos prevaricadores … confundindo o apuramento de responsabilidades, a confirmar-se, deverem ser sancionados pelas instâncias devidas se cometeram um crime; com o castigo vingativo de quem recebeu a primeira dose da vacina, mesmo que indevidamente, violando regras de ética médica elementar. O disparate de abortar o processo de vacinação já em curso, uma espécie de justiça popular, porque remeter para o fim da lista os prevaricadores a serem vacinados encetando de novo o seu processo de vacinação, seria o mesmo que atirar para o lixo a dose da vacina já administrada.
Estamos ainda sem perceber como o “milagre” português foi parar ao inferno. A menos que o primeiro-ministro tenha razão quando diz suspeitar que agora a pandemia corre de Ocidente para Oriente.

As pessoas deixam-se impressionar facilmente pelo fantástico / mágico. Veja-se como as pessoas ficam perante um truque de ilusionismo quando não percebem como um coelho apareceu do nada. Perante fenómenos, aparentemente inexplicáveis, podemos acreditar nas coisas mais absurdas. Por razões de vária ordem, as pessoas alimentam o desejo de que Deus exista. E é o desejo que as induz a acreditar nisso, mesmo que não haja bons indícios que apontem nesse sentido. Em 1995, McArthur Wheeler assaltou dois bancos, no estado norte-americano da Pensilvânia, em pleno dia e sem usar qualquer disfarce. Quando foi preso, na noite desse mesmo dia, após a divulgação das imagens de videovigilância, mostrou-se surpreendido, porque tinha molhado a cara com sumo de limão, que, pensava, o tornava invisível perante as câmaras. Este caso foi o gatilho para que dois psicólogos se interessassem pelo estudo de casos como este, que mais tarde viria a ser conhecido pelo efeito de Dunning-Kruger. O efeito de Dunning-Kruger parece explicar fenómenos que agora estão mais à vista com o grande ruído informativo que circula à volta da pandemia. Por um lado, porque é que um número tão grande de pessoas embarca em disparatadas teorias da conspiração, acreditando, por exemplo, que as vacinas causam tudo e mais alguma coisa má, e que as redes de comunicação de quinta geração são a causa da pandemia. Mas, para além destes impactos que podemos considerar, apesar de tudo, relativamente benignos, o efeito de Dunning-Kruger pode estar por trás de fenómenos sociais mais perversos e perigosos.

Desde os relatos Bíblicos – como o da separação das águas do Mar Vermelho no tempo de Moisés; a ressuscitação de Lázaro por Jesus; aparições de Nossa Senhora - que há testemunhos de muita coisa sortida. Embora nem tudo, por exemplo: nunca ninguém testemunhou que, por obra sobrenatural, alguém com um membro decepado, lhe voltou a ser restituído.

Devemos sempre pesar a possibilidade de um relato testemunhal ser falso, uma vez que é mais plausível uma pessoa estar equivocada, ou até mesmo estar a mentir, do que haver um qualquer poder que por dá-cá-aquela-palha, viole as leis da natureza. Todos nós conhecemos ou vimos alguém acima de qualquer suspeita, em certas circunstâncias meter os pés pelas mãos. Os milagres são tão improváveis quanto toda a nossa experiência nos indica que é impossível fintar qualquer lei da natureza. Da mesma maneira que a água ferve sempre a 100 graus centígrados, também d
epois de chegarmos a cadáver permaneceremos mortos para sempre. É mil vezes mais fácil um relato ser falso do que ser milagroso. Há mais precedentes da possibilidade de logro do que de casos ou acontecimentos estapafúrdios que tenham contrariado a verdade científica. Há não apenas justificação de ordem racional, a priori, como de ordem empírica, para o facto de os testemunhos de milagres serem falsos.

Apesar de uma grande parte do conhecimento que hoje temos no campo da cosmogonia ter partido da atividade solitária de alguns físicos e matemáticos, sendo Einstein um desses casos, a verdade é que não é essa a via da aquisição e progressão normal do conhecimento em ciência. Casos como Einsteins são exceções. No entanto, há testemunhos e testemunhos, pois a maior parte do conhecimento empírico que os cientistas adquirem resulta do testemunho de outros cientistas cientista a título individual. Mesmo sem que tenha que o ter percecionado diretamente por si. O mais relevante de cada ciência é transmitido interpares, quer diretamente, quer através da leitura dos seus escritos. E a designação geral para este tipo de conhecimento não é outra coisa senão conhecimento testemunhal coletivo. Mesmo Einstein, antes de ter produzido as teorias que inventou sozinho, apenas com a sua cabeça, teve de confiar em conhecimentos, como verdadeiros, transmitidos por outros. Nos últimos anos a crença no conhecimento testemunhal tem sido bastante abalada pela má fama das redes sociais. Temos justificação para não acreditar em nada do que Trump disse, porque tivemos provas suficientes de que ele mentiu.

A nossa aquisição da linguagem é o melhor exemplo do estatuto epistémico que o testemunho tem. Para adquirirmos uma linguagem temos de o fazer à custa do testemunho das outras pessoas. E depois, para dizermos que estamos a ver uma maçã vermelha, temos de previamente ter aprendido os conceitos de maçã e de vermelho. E isso só é possível fazer através de conhecimento testemunhal. Daí aquela graça que uma bailarina jugoslava contou quando veio para Portugal no início de 1990, e os seus amigos e colegas lhe pregavam partidas ao ensinar-lhe o português, introduzindo palavras obscenas nos diálogos. E depois, ela muito inocentemente, usava as palavras coloquialmente com outras pessoas pensando que estava a falar corretamente. E é claro, ela ficava muito intrigada porque é que as pessoas começavam a rir sempre que ela falava. Mas depois, aprendeu a falar o português muito corretamente.

Assim, podemos dar crédito à tese de que o testemunho é uma fonte essencial de conhecimento. Mas o trabalho científico da era moderna é um trabalho de colaboração. A colaboração é essencial. O testemunho dos colegas de profissão de um cientista tem de merecer o mesmo crédito que as indagações feitas pelo próprio. Em ciência o conhecimento testemunhal pode ter um estatuto de conhecimento em segunda mão, mas não é um conhecimento de segunda categoria. Parece paradoxal, mas não é, que alguns médicos aceitem o milagre com o argumento de a ciência não ter explicação para um fenómeno que aparentemente violou uma ou mais leis da natureza. Há relatos de episódios deste tipo em praticamente qualquer região do mundo, ligado sempre a uma religião, abundantemente relatado nos países em que a religião católica predomina. Só que tem um problema: esses relatos são falsos. Os médicos que o aceitam violam também uma lei, não da natureza, mas da ciência.
Porque será?

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