A propósito da recente eleição de João Caupers para a presidência do Tribunal Constitucional, e de uma certa reação por causa de um texto seu de 2010 classificado como "homofóbico", Helena Matos, jornalista e colonista, num debate ontem na TVI, disse que daqui a pouco "não sobrará ninguém neste processo perigoso de patrulhamento e condicionamento de linguagem". Os argumentos dos "vigilantes politicamente corretos", a propósito de expressões de cariz homofóbico, baseiam-se na ideia que essas expressões perpetuam preconceitos, que num presidente do Tribunal Constitucional seriam inadmissíveis.
A publicação data de 17 de Maio de 2010, dia em que foi promulgada uma alteração ao Código Civil que tornou legal o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Caupers dizia-se também revoltado com os cartazes que a Câmara de Lisboa tinha espalhado pela cidade, “a pretexto da luta contra a discriminação, promovendo a homossexualidade”, numa referência a uma campanha da Associação ILGA - Portugal, que mostrava a fotografia de uma mulher e uma criança e a pergunta: "Se a tua mãe fosse lésbica, mudava alguma coisa?”
O partido Bloco de Esquerda pede “retratação pública". A revelação destes escritos, que considera ofensivos e discriminatórios, levou a deputada bloquista Sandra Cunha a pedir a João Caupers para se retratar publicamente. “Não é digno de quem tem como função zelar pelo cumprimento da Constituição da República e do princípio da igualdade. Aguarda-se uma clara retratação pública”, escreveu a parlamentar no Twitter.
Em resposta, João Caupers, diz: "os textos que então publiquei na página web da minha Faculdade constituíam um instrumento pedagógico, dirigido aos estudantes que, para melhor provocar o leitor, utilizava uma linguagem quase caricatural, usando e abusando de comparações mais ou menos absurdas, não refletindo necessariamente as minhas ideias". O professor argumenta que "o pensamento jurídico utiliza como ferramenta essencial a analogia, o que supõe a capacidade de descobrir entre duas situações aquilo que é igual e aquilo que é diferente. É por isso que é crucial treinar os estudantes de direito nesta metodologia".
Quando em 2014 João Caupers foi escolhido pelos conselheiros para se tornar também juiz do Tribunal Constitucional (TC), o professor universitário deixou um aviso em relação aos textos de opinião que tinha escrito para publicação online da Faculdade de Direito da Universidade Nova durante quatro anos: alguns deles eram muito datados, motivados por questões da atualidade, e não os teria redigido da mesma forma mais tarde. “Textos graves e amargos, uns, ligeiros e tolos, outros”, avalia. “Escrevi o que escrevi e assumo a inerente responsabilidade. Mas, na maioria dos casos, voltaria a escrever o que escrevi”. Dias antes de se ter referido a alguns dos seus textos como “tolos”, o académico e antigo diretor da Faculdade de Direito da Universidade Nova tinha defendido, na mesma plataforma, a inclusão, na Constituição, do chamado direito ao esquecimento – “o direito de não ser confrontado, para além do tolerável, com as pequenas vicissitudes de um passado que não deve ser mais do que isso mesmo: passado – e esquecido”.
A ILGA Portugal (Intervenção Lésbica Gay Bissexual Trans e Intersexo – LGBTI) demonstra a sua profunda preocupação face à eleição de João Caupers como presidente do Tribunal Constitucional, cujos posicionamentos homofóbicos e atentatórios aos Direitos Humanos remontam a 2010, no dia da promulgação da lei que garante igualdade no casamento entre pessoas do mesmo sexo. A consternação é redobrada numa altura em que avançam os movimentos extremistas e anti-género em Portugal e na Europa e num ano em que se delibera sobre o pedido de apreciação da constitucionalidade de normas constantes da Lei 38/2018, que consagra o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Trata-se de posicionamentos da ILGA e várias associações sobre este pedido apresentado em 2019 por pessoas deputadas do PSD e CDS.
A Associação ILGA Portugal exige o cabal esclarecimento da parte de João Caupers, assim como um pedido de desculpas público a todas as pessoas LGBTI altamente impactadas pelos discursos e práticas discriminatórias no nosso país. Da parte do Tribunal Constitucional e sua presidência não se espera mais do que a garantia da não discriminação perante a lei e o cumprimento e garante da Constituição e dos Direitos Humanos. “Se já era inaceitável em 2010 este posicionamento de uma figura pública com cargo de alta responsabilidade, mesmo num clima de desconhecimento, homofobia social e pouca linguagem para as questões LGBTI, em 2021 – e estando Portugal entre os países mais progressistas e respeitadores de Direitos Humanos graças ao trabalho da sociedade civil – será no mínimo inaceitável, indigno (e questionável quanto à legitimidade para a ocupação do cargo) que o progresso legal e social não tenha sido acompanhado por Caupers, passados 11 anos”, considera Ana Aresta, presidente da Direção da ILGA Portugal.
A expressão de Helena Matos: “patrulhamento de linguagem” - está-se a referir à “cultura do cancelamento ou cultura do banimento”, uma forma moderna de censura, visando principalmente pessoas com notoriedade pública, que tenham tomado atitudes consideradas questionáveis pela cultura conotada com a esquerda e a que a direita chama do "politicamente correto". Esta censura estende o seu alcance retroativo até onde for preciso, uma espécie de escavação arqueológica, inclusivamente a tudo o que no passado, apesar de ser norma, seja censurado pelos critérios do presente, das redes sociais e quejandos. E o objetivo consiste numa espécie de vingança, de modo a prejudicar a carreira deses indivíduos cancelados. Em caso de celebridades, a sua base de fãs pode diminuir significativamente. Esta expressão “patrulhamento de linguagem” tem sobretudo conotações negativas e é normalmente usada em debates sobre liberdade de expressão e censura. É um tema polémico sem definição clara, utilizado comumente em discursos inflamados, com alta carga ideológica, muitas vezes com o objetivo de atacar outro grupo social ou político.
A cultura do cancelamento já afeta o ambiente editorial. Em 14 de julho de 2020 a jornalista Bari Weiss pediu a demissão do jornal New York Times, onde havia sido contratada para dar diversificação ao pensamento ideológico, dada a perseguição dos seus colegas por defender valores de direita. Formada em jornalismo pela Universidade Columbia, Bari Weiss deixou o cargo de editora de opinião do The New York Times, queixando-se do jornal por não a ter protegido do “bullying” constante dos colegas, por ela dar voz a opiniões divergentes da maioria de seus pares no jornal.
A ironia deste fenómeno, sendo uma prática associada a militância de esquerda, com motivação ideológica e política, é que se está a virar contra a própria esquerda, ao fomentar uma reação de sentido contrário por parte da extrema-direita, que a cada dia cresce exponencialmente com o apoio da indignação popular. E porquê? Porque está a ferir de morte um valor muito importante que é a liberdade de expressão, ao ser secundarizada a valores morais questionavelmente hipócritas.
Um grupo de 150 renomados jornalistas, intelectuais, cientistas e artistas esquerdistas ao perceberem o "tiro no pé" que a cultura do cancelamento lhes está acometendo publicaram uma carta no periódico Harper's Magazine onde reconhecem que esperavam com a cultura do cancelamento serem vítimas de censura pela direita radical. Mas o que sucedeu foi o contrário, a própria esquerda é que acabou por demonstrar toda a sua intolerância a visões opostas e tendência a demonstrar superioridade moral.
Sem comentários:
Enviar um comentário