quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Um ensaio sobre um certo "patrulhamento de linguagem"


A propósito da recente eleição de João Caupers para a presidência do Tribunal Constitucional, e de uma certa reação por causa de um texto seu de 2010 classificado como "homofóbico", Helena Matos, jornalista e colonista, num debate ontem na TVI, disse que daqui a pouco "não sobrará ninguém neste processo perigoso de patrulhamento e condicionamento de linguagem". Os argumentos dos "vigilantes politicamente corretos", a propósito de expressões de cariz homofóbico, baseiam-se na ideia que essas expressões perpetuam preconceitos, que num presidente do Tribunal Constitucional seriam inadmissíveis.




João Caupers, o professor de Direito eleito recentemente como presidente do Tribunal Constitucional, escreveu há onze anos no jornal de parede da Faculdade de Direito de Lisboa que é contra o “lobby gay”. Escreveu que nunca aceitaria que um filho seu “adolescente fosse ‘ensinado’ na escola que desejar raparigas ou rapazes era uma mera questão de gosto, assim como preferir jeans Wrangler aos Lewis ou a Sagres à Superbock”. Ou que: "Estou convencido de que existem mais vegetarianos do que homossexuais em Portugal – e, porventura, até mais adeptos do Dalai Lama. Não beneficiam, porém, do mesmo nível de acesso aos jornais, aos microfones das rádios e às objetivas das televisões . . . É que os homossexuais não passam de uma inexpressiva minoria, cuja voz é enorme e despropositadamente ampliada pelos media".

A publicação data de 17 de Maio de 2010, dia em que foi promulgada uma alteração ao Código Civil que tornou legal o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Caupers dizia-se também revoltado com os cartazes que a Câmara de Lisboa tinha espalhado pela cidade, “a pretexto da luta contra a discriminação, promovendo a homossexualidade”, numa referência a uma campanha da Associação ILGA - Portugal, que mostrava a fotografia de uma mulher e uma criança e a pergunta: "Se a tua mãe fosse lésbica, mudava alguma coisa?”

O partido Bloco de Esquerda pede “retratação pública". A revelação destes escritos, que considera ofensivos e discriminatórios, levou a deputada bloquista Sandra Cunha a pedir a João Caupers para se retratar publicamente. “Não é digno de quem tem como função zelar pelo cumprimento da Constituição da República e do princípio da igualdade. Aguarda-se uma clara retratação pública”, escreveu a parlamentar no Twitter. 

Em resposta, João Caupers, diz: "os textos que então publiquei na página web da minha Faculdade constituíam um instrumento pedagógico, dirigido aos estudantes que, para melhor provocar o leitor, utilizava uma linguagem quase caricatural, usando e abusando de comparações mais ou menos absurdas, não refletindo necessariamente as minhas ideias". O professor argumenta que "o pensamento jurídico utiliza como ferramenta essencial a analogia, o que supõe a capacidade de descobrir entre duas situações aquilo que é igual e aquilo que é diferente. É por isso que é crucial treinar os estudantes de direito nesta metodologia".

Quando em 2014 João Caupers foi escolhido pelos conselheiros para se tornar também juiz do Tribunal Constitucional (TC), o professor universitário deixou um aviso em relação aos textos de opinião que tinha escrito para publicação online da Faculdade de Direito da Universidade Nova durante quatro anos: alguns deles eram muito datados, motivados por questões da atualidade, e não os teria redigido da mesma forma mais tarde. “Textos graves e amargos, uns, ligeiros e tolos, outros”, avalia. “Escrevi o que escrevi e assumo a inerente responsabilidade. Mas, na maioria dos casos, voltaria a escrever o que escrevi”. Dias antes de se ter referido a alguns dos seus textos como “tolos”, o académico e antigo diretor da Faculdade de Direito da Universidade Nova tinha defendido, na mesma plataforma, a inclusão, na Constituição, do chamado direito ao esquecimento – “o direito de não ser confrontado, para além do tolerável, com as pequenas vicissitudes de um passado que não deve ser mais do que isso mesmo: passado – e esquecido”.

A ILGA Portugal (Intervenção Lésbica Gay Bissexual Trans e Intersexo – LGBTI) demonstra a sua profunda preocupação face à eleição de João Caupers como presidente do Tribunal Constitucional, cujos posicionamentos homofóbicos e atentatórios aos Direitos Humanos remontam a 2010, no dia da promulgação da lei que garante igualdade no casamento entre pessoas do mesmo sexo. A consternação é redobrada numa altura em que avançam os movimentos extremistas e anti-género em Portugal e na Europa e num ano em que se delibera sobre o pedido de apreciação da constitucionalidade de normas constantes da Lei 38/2018, que consagra o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Trata-se de posicionamentos da ILGA e várias associações sobre este pedido apresentado em 2019 por pessoas deputadas do PSD e CDS.  

A Associação ILGA Portugal exige o cabal esclarecimento da parte de João Caupers, assim como um pedido de desculpas público a todas as pessoas LGBTI altamente impactadas pelos discursos e práticas discriminatórias no nosso país. Da parte do Tribunal Constitucional e sua presidência não se espera mais do que a garantia da não discriminação perante a lei e o cumprimento e garante da Constituição e dos Direitos Humanos. “Se já era inaceitável em 2010 este posicionamento de uma figura pública com cargo de alta responsabilidade, mesmo num clima de desconhecimento, homofobia social e pouca linguagem para as questões LGBTI, em 2021 – e estando Portugal entre os países mais progressistas e respeitadores de Direitos Humanos graças ao trabalho da sociedade civil – será no mínimo inaceitável, indigno (e questionável quanto à legitimidade para a ocupação do cargo) que o progresso legal e social não tenha sido acompanhado por Caupers, passados 11 anos”, considera Ana Aresta, presidente da Direção da ILGA Portugal.

A expressão de Helena Matos: “patrulhamento de linguagem” - está-se a referir à “cultura do cancelamento ou cultura do banimento”, uma forma moderna de censura, visando principalmente pessoas com notoriedade pública, que tenham tomado atitudes consideradas questionáveis pela cultura conotada com a esquerda e a que a direita chama do "politicamente correto". Esta censura estende o seu alcance retroativo até onde for preciso, uma espécie de escavação arqueológica, inclusivamente a tudo o que no passado, apesar de ser norma, seja censurado pelos critérios do presente, das redes sociais e quejandos. E o objetivo consiste numa espécie de vingança, de modo a prejudicar a carreira deses indivíduos cancelados. Em caso de celebridades, a sua base de fãs pode diminuir significativamente. Esta expressão “patrulhamento de linguagem” tem sobretudo conotações negativas e é normalmente usada em debates sobre liberdade de expressão e censura. É um tema polémico sem definição clara, utilizado comumente em discursos inflamados, com alta carga ideológica, muitas vezes com o objetivo de atacar outro grupo social ou político.

A cultura do cancelamento já afeta o ambiente editorial. Em 14 de julho de 2020 a jornalista Bari Weiss pediu a demissão do jornal New York Times, onde havia sido contratada para dar diversificação ao pensamento ideológico, dada a perseguição dos seus colegas por defender valores de direita. Formada em jornalismo pela Universidade Columbia, Bari Weiss deixou o cargo de editora de opinião do The New York Times, queixando-se do jornal por não a ter protegido do “bullying” constante dos colegas, por ela dar voz a opiniões divergentes da maioria de seus pares no jornal.

A ironia deste fenómeno, sendo uma prática associada a militância de esquerda, com motivação ideológica e política, é que se está a virar contra a própria esquerda, ao fomentar uma reação de sentido contrário por parte da extrema-direita, que a cada dia cresce exponencialmente com o apoio da indignação popular. E porquê? Porque está a ferir de morte um valor muito importante que é a liberdade de expressão, ao ser secundarizada a valores morais questionavelmente hipócritas.

Um grupo de 150 renomados jornalistas, intelectuais, cientistas e artistas esquerdistas ao perceberem o "tiro no pé" que a cultura do cancelamento lhes está acometendo publicaram uma carta no periódico Harper's Magazine onde reconhecem que esperavam com a cultura do cancelamento serem vítimas de censura pela direita radical. Mas o que sucedeu foi o contrário, a própria esquerda é que acabou por demonstrar toda a sua intolerância a visões opostas e tendência a demonstrar superioridade moral.

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