Virgínia Woolf observou, sobre Montaigne, que o autor dos Ensaios não é de modo algum explícito ao apresentar os seus próprios textos. Ela observa: “Estes ensaios são uma tentativa de comunicar uma alma. A esse respeito ele é explícito. Não é fama o que ele quer; nem está interessado em vir a ser citado no futuro; ele não está erguendo estátua na praça pública; ele só quer comunicar uma alma.” E mais adiante: “Compartilhar é a nossa tarefa; mergulhar corajosamente e trazer à tona os mais doentios pensamentos; não conciliar nunca; não fingir nada; se somos ignorantes, proclamá-lo".
Noutro texto, a mesma Virgínia Woolf apresenta um ensaio para o definir como ensaio. Depois de afirmar que a forma do ensaio é muito variável, e que a própria origem deste género literário é muito discutível, observa: “O princípio que o controla é simplesmente a necessidade de dar prazer; o desejo que nos leva a ele, quando o tiramos de sua concha, é simplesmente ter prazer”. No entanto, considera ser difícil atingir tal qualidade: “Um romance tem enredo, um poema rima; mas que arte pode o ensaísta usar nestes pequenos textos de prosa para manter-nos despertos e fixar-nos num transe que não é de descanso, mas antes de intensificação da vida. Num transe, mas com todas as faculdades alerta sob o sol do prazer?”
Ensaio, um dos mais misteriosos da tradição literária. Começa pela aparente aporia de que os caminhos para definir ensaio são invariavelmente ensaísticos, ou no mínimo aparentados ao ensaio. E todos eles tomam como ponto de partida Montaigne, o pai do uso moderno do termo, o pai do sentido moderno do termo.
Comecemos por um ponto preciso: a sensação de que o ensaísta parece, por escrito, dotado de uma integridade totalmente peculiar, considerado o âmbito literário. Sua voz (escrita) funde a voz do cidadão que leva o seu nome com a do autor/artista que também (mas nem sempre) leva seu nome. Convergem em sua existência o homem e o autor, indissociavelmente. Isso não se explica apenas por não ser o ensaio um género deliberadamente ficcional. Tal traço está configurado assim desde Montaigne. Dele disse Leigh Hunt, ensaísta inglês do período de ouro da imprensa ensaística, que viveu entre 1784 e 1859: “Ele foi o primeiro homem a ter coragem de dizer como autor o que sentiu como homem”. Coragem de dizer, com a voz de autor, isto é, com a forma da arte literária, o que sentiu como homem, como cidadão real, que não tem voz literária. O que nos leva a uma derivação próxima, de que o ensaio funciona como uma espécie de construção que se urde com a matéria-prima do autoconhecimento. Mais radicalmente ainda: o ensaísta escreve para si mesmo, porque é talvez o primeiro e, para seu desconsolo, talvez o único interlocutor válido de sua autodescoberta. Vale lembrar aqui a nota do autor que abre o Livro I dos Ensaios: “Eis aqui, leitor, um livro de boa-fé”. Adverte-o ele de início, que só o escreve para si mesmo, e alguns íntimos, sem se preocupar com o interesse que poderia ter para o outro, nem pensar na posteridade. “Tão ambiciosos objetivos estão acima de minhas forças. (...) Se houvesse almejado os favores do mundo, ter-me-ia enfeitado e me apresentaria sob uma forma mais cuidada, de modo a produzir melhor efeito.”
Ensaio é mais uma atitude mental do que propriamente um género literário. Provém de uma inteligência que se examina e se expõe por escrito, em texto organizado livremente. Montaigne, para dar vazão ao seu ímpeto, ao seu modo de pensar, teve de enfrentar o limite conhecido, forjando um texto híbrido de reflexão moral, divagação, conselhos, exibicionismo, erudição clássica e algo mais. Tão surpreendente é essa modalidade escrita que dá margem a especulações curiosas, como a de Daniel Boorstin, que, considerando a conhecida grande amizade de Montaigne com Étienne de la Boétie, subitamente interrompida com a morte prematura deste, Montaigne, considerando a falta do amigo, procurou um meio que substituísse aquelas conversas com o melhor amigo. Um de seus ensaios mais famosos, “Da amizade”, dedica várias páginas a uma saudade, do desaparecido amigo Etienne de la Boétie, para meditar sobre o elevado sentimento inscrito no título. Mas o começo do texto não sugere o sublime que a sequência apresenta, nem a consistência que o final impõe ao leitor.
Montaigne diz que ele próprio é a matéria do seu livro, assinalando a característica de autoexame do ensaio, história de um pensamento que se procura. Os seus ensaios são uma tentativa de comunicar uma alma. Não é a fama o que almeja, nem a possibilidade de vir a ser citado no futuro. Comunicação é saúde; comunicação é verdade; comunicação é felicidade. Compartilhar é o nosso dever; mergulhar fundo e trazer à tona aqueles pensamentos escondidos, não escamotear nada; não fingir nada; se somos ignorantes, dizê-lo; se amamos nossos amigos, fazê-los saber isso.
Montaigne usou o ensaio como um meio de explorar as suas ideias a respeito da experiência humana, e seus ensaios são, num certo sentido, um meio de pensar e testar coisas no próprio ato de escrever. Daí que o ensaio é uma forma de prosa essencialmente itinerante e fragmentária, com uma linguagem expositiva não linear, sinuosa, ou, noutro sentido, de linguagem que acompanha simultaneamente vários tópicos em exame. Em função de tais traços, o género vive numa espécie de limbo: por um lado, o ensaio é certamente reconhecido como literatura; por outro, não se sabe exatamente em que canto do reino literário ele vive ou deve viver, ao redor do núcleo dos três géneros característicos apontados desde Aristóteles: drama, lírica e épica, em parceria com a biografia, o diálogo, o aforismo, a epistolografia, a história e outros.
Em alguma parte de seus Ensaios, Montaigne declara que escreve para almas bem nascidas, que por elas deseja ser lido, com elas deseja entrar em comunicação. O que quereria dizer, exatamente, “almas bem nascidas”? Vejamos: não se trata de pessoas bem nascidas; não se trata de corpos bem nascidos; trata-se de almas, aqui; isto é, trata-se de um valor humano que pode aparecer num nobre ou num plebeu, num ambiente rico ou num pobre. Por outro lado, pode-se deduzir que, ao eleger tais almas como interlocução, Montaigne tenha varrido de seu horizonte as demais almas, todas as almas que por qualquer motivo não sejam bem nascidas. Com estas, nada, nenhuma preocupação. E de facto vemos que, desde a abertura dos Ensaios, ele mantém uma atitude de franca despreocupação para com estas, mantendo ao contrário sua atenção para as subtilezas que podem e devem ser invocadas e postas em análise para a interlocução com as outras, as almas bem nascidas. “É melhor que eu ofenda alguém uma vez do que ser aborrecido diariamente”, diz ele, numa demonstração de que há coisas bem mais importantes do que atender a expectativas alheias triviais. “Aliás, impus-me a obrigação de ousar dizer tudo o que ouso fazer, e lamento até que todo pensamento não seja passível de exteriorização”, afirma ele, num contexto em que percebe: “Estou certo de que entre os que se escandalizam com a licença de meus escritos muito poucos poderiam vangloriar-se de não se escandalizar com seus próprios pensamentos”.
Porque terá Montaigne chamado “ensaios” aos seus escritos? Não falemos de Leonardo da Vinci, de Miguel Ângelo, de Maquiavel, de Rabelais, de Erasmo, de Lutero, dos variados homens que costuraram, no miúdo da vida ou no graúdo da arte, os inícios da Modernidade, época que é bem mais que um ponto na sucessão cronológica do Tempo. O ensaio é um irmão, um primo espiritual da ciência moderna, que nasce da experimentação, do risco, da ousadia. Mas falemos de Camões – Eis aqui as novas partes do Oriente / Que vós outros agora ao mundo dais; Garcia de Resende – Este mundo tam mudado; Francisco Sanches – Foi descoberto um novo mundo, e novas cousas numa nova Espanha ou Índias Ocidentais e nas Orientais; Bartolomé de las Casas – El descubrimiento deste nuevo indiano mundo; Pero Vaz de Caminha – ... a nova do achamento desta vossa terra nova; Garcia de Resende – Outro mundo novo vimos / Per nossa gente se achar; Pedro Nunes – Descobriram [os portugueses] novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos; e o que mais é: novo céu e novas estrelas.
Consta que em 1540, em Toulouse, cidade natal da mãe, ele teria tomado conhecimento de uns jogos florais de poesia. Acontece que se verificou um empate na atribuição do primeiro prémio. Então foi proposto que os concorrentes ensaiassem um último verso. Bem, seja como for, Montaigne viveu tempos interessantes naquela segunda metade do século XVI (1533-1592). E ele naturalmente era um indivíduo dotado, naquele universo social, entre a alta burguesia e a aristocracia, frequentado pela família burguesa aristocratizada. Homem político que fez questão de permanecer descolado das demandas imediatas de seu tempo e de seu lugar, a ponto de poder enxergar aquilo que seus contemporâneos estavam impedidos de ver, por convenção ou conveniência.
A relativa surpresa da reabilitação do universo clássico greco-romano soterrado por séculos de hegemonia cristã, aliás católica, na Europa. As invenções, os altos feitos das artes, as novas rotas para o Oriente inauguradas pelos Portugueses. A descoberta de um Mundo Novo a Ocidente pelos Espanhóis. Ainda assim, teremos um quadro precaríssimo do volume e da qualidade das novidades que se oferecem ao observador atento, como foi Montaigne, dando conta do tamanho da novidade e das sensações assustadoras que gerou. Mas, ante uma alma comum, isso se há de executar com brandura e moderação, porquanto uma tensão contínua a enlouqueceria:
Virginia Woolf, ao considerar a singularidade da obra de Montaigne, foi categórica: “Mas este falar de si mesmo, seguindo as próprias divagações e descrevendo todo o mapa, o peso, a cor e a circunferência da alma em sua confusão, sua variedade, sua imperfeição, esta arte pertenceu apenas a um homem: Montaigne”. O que pode ser um exagero, mas está longe de ser errado. Montaigne fundou um novo modo de escrita, a partir de sua vontade e embasado num certo património. De modo semelhante, é a ideia de Jorge Luis Borges quando comenta a relação de Kafka com os seus precursores: Montaigne não provém de uma tradição, mas funda-a, conferindo sentido, por sua plenitude literária, a algumas tentativas anteriores, quem sabe desde que alguns gregos inteligentes e sensíveis andaram escrevendo depoimentos e aforismos, tentativas que nele convergem e alcançam a sua melhor forma expressiva.
A trilha do ensaio veio a florescer de imediato noutro país, que não a França: a Inglaterra. Os Essais atravessaram velozmente a Mancha, que as obras de Shakespeare, pouco posteriores, levariam mais de um século a percorrer em sentido contrário, só sendo introduzidas na França por Voltaire, em 1731. De Francis Bacon (1561-1626) em diante (aí está o já mencionado Locke (1632-1704), veremos configurada uma autêntica tradição, específica, em terras inglesas, onde se junta John Dryden (1631-1700); Samuel Johnson (1709-1784); Samuel Taylor Coleridg (1772-1834). A partir de Montaigne o género ensaístico firmou-se na Inglaterra, adquirindo novas configurações, novos aspetos, novos compromissos. Diz-se que Francis Bacon teve acesso aos Ensaios de Montaigne por intermédio de seu irmão, Anthony Bacon, que conheceu o escritor francês. Bacon, ao tomar contacto com a obra de Montaigne, parece ter sido decisivo para a sua própria trajetória. Seus Ensaios são publicados pela primeira vez em 1597, e os textos sofrem sucessivas reformulações e adaptações, a gosto de uma ideia ensaística de exercício, escritos em inglês, ao contrário de suas obras científicas que foram escritas em latim para sobreviver ao tempo ... segundo ele.
Que os ensaios de Bacon tenham traços perfeitamente semelhantes aos do Ensaio de Montaigne, parece fora de dúvida. Uma obra como Novum Organum, inscrita nos domínios da filosofia, é, do ponto de vista do estilo, nada mais que uma sequência de aforismos sobre os assuntos de que se ocupa. Mas há espaço para observações como a do Aforismo XXXIII: “A glória dos antigos, como a dos demais, permanece intacta, pois não se estabelecem comparações entre engenhos e capacidades, mas de métodos. Não nos colocamos no papel de juiz, mas de guia”. Dois ensaios exemplares: “Da amizade” e “Sobre jardins”, que já pelos títulos insinuam um certo tipo de reflexão sobre temas banais. Qualquer tema serve, uma simples mosca pode ser o pretexto: "E Deus queira que o que estou ventilando agora não provenha de uma fonte estranha. Pouco importa o começo, vou encadeando ideias umas nas outras."
Gore Vidal, o ensaísta e romancista norte-americano, observou numa entrevista: “Suspeito que a única forma de prosa que vai fisgar o leitor do futuro é o ensaio, em que uma voz atravessa séculos e mundos até ao ouvido de outra pessoa. Ao fim, Montaigne e não Cervantes”. Mais ou menos na mesma posição está Bioy Casares. Em uma reflexão plena de sabedoria, dirá, apontando o interesse continuado do género: “Um dia sentimos que não há outra esperança nas letras do que o dossiê naturalista, ou a comédia de enredo, ou o sadismo, ou o adultério, ou os sonhos, ou a viagem alegórica, ou a novela pastoril, ou a alegação social, ou os enigmas policiais, ou a picaresca; outro dia nos perguntamos como pôde alguém interessar-se em tão desoladas loucuras. No meio desta mudança, historicamente justificável, mas essencialmente arbitrária, há alguns géneros perpétuos. Porque não depende de formas e porque se parece ao fluir normal do pensamento, o ensaio é, talvez, um deles”. Género perpétuo, para Bioy Casares, e género de futuro, para Gore Vidal. Talvez seja este o caminho para compreender, preliminarmente, a vigência do ensaio. Mais que noutros momentos do passado ocidental, o género ensaio ganha fôlego, se não como forma mais ou menos fixa (como na crónica), como atitude mental. A prosa de Clarice Lispector, bem como toda a produção de Jorge Luis Borges vem sendo lida segundo o critério do ensaio. A linha evolutiva do ensaio, gravada no cilindro rotativo dos séculos, consiste precisamente no trânsito gradual do pessoalismo de Montaigne (ensaios de) para o impessoalismo de (ensaios sobre).
Porque terá Montaigne chamado “ensaios” aos seus escritos? Não falemos de Leonardo da Vinci, de Miguel Ângelo, de Maquiavel, de Rabelais, de Erasmo, de Lutero, dos variados homens que costuraram, no miúdo da vida ou no graúdo da arte, os inícios da Modernidade, época que é bem mais que um ponto na sucessão cronológica do Tempo. O ensaio é um irmão, um primo espiritual da ciência moderna, que nasce da experimentação, do risco, da ousadia. Mas falemos de Camões – Eis aqui as novas partes do Oriente / Que vós outros agora ao mundo dais; Garcia de Resende – Este mundo tam mudado; Francisco Sanches – Foi descoberto um novo mundo, e novas cousas numa nova Espanha ou Índias Ocidentais e nas Orientais; Bartolomé de las Casas – El descubrimiento deste nuevo indiano mundo; Pero Vaz de Caminha – ... a nova do achamento desta vossa terra nova; Garcia de Resende – Outro mundo novo vimos / Per nossa gente se achar; Pedro Nunes – Descobriram [os portugueses] novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos; e o que mais é: novo céu e novas estrelas.
Consta que em 1540, em Toulouse, cidade natal da mãe, ele teria tomado conhecimento de uns jogos florais de poesia. Acontece que se verificou um empate na atribuição do primeiro prémio. Então foi proposto que os concorrentes ensaiassem um último verso. Bem, seja como for, Montaigne viveu tempos interessantes naquela segunda metade do século XVI (1533-1592). E ele naturalmente era um indivíduo dotado, naquele universo social, entre a alta burguesia e a aristocracia, frequentado pela família burguesa aristocratizada. Homem político que fez questão de permanecer descolado das demandas imediatas de seu tempo e de seu lugar, a ponto de poder enxergar aquilo que seus contemporâneos estavam impedidos de ver, por convenção ou conveniência.
A relativa surpresa da reabilitação do universo clássico greco-romano soterrado por séculos de hegemonia cristã, aliás católica, na Europa. As invenções, os altos feitos das artes, as novas rotas para o Oriente inauguradas pelos Portugueses. A descoberta de um Mundo Novo a Ocidente pelos Espanhóis. Ainda assim, teremos um quadro precaríssimo do volume e da qualidade das novidades que se oferecem ao observador atento, como foi Montaigne, dando conta do tamanho da novidade e das sensações assustadoras que gerou. Mas, ante uma alma comum, isso se há de executar com brandura e moderação, porquanto uma tensão contínua a enlouqueceria:
«Em minha juventude tinha necessidade de muito raciocínio e de advertências para seguir o caminho do dever, pois a saúde e o bem-estar não se prestam muito, ao que dizem, aos argumentos sérios e sensatos. Hoje a situação é diferente; as misérias da velhice advertem-me o bastante, tornam-me avisado e sereno. Da alegria excessiva passei à austeridade, o que é bem aborrecido; eis por que me entrego hoje, de quando em quando, a um certo desregramento, deixando o espírito divertir-se com fantasias de outra idade em que repousam. Ora, quero permanecer senhor de mim mesmo em quaisquer circunstâncias; a sabedoria também tem seus excessos e tanto quanto a loucura precisa ser moderada. Por isso, receoso de que, com seus excessos, venha a prudência a ressequir-me, a esgotar-me e a perturbar o meu equilíbrio, nos momentos em que o sofrimento não me persegue, “de medo que minha alma se prenda demasiado às suas dores”, desvio os olhos do céu borrascoso e nublado que, graças a Deus, encaro sem pavor mas não sem esforço. E eis-me comprazendo-me na lembrança das loucuras da mocidade, “o espírito, saudoso do que perdeu, volta-se inteiramente para o passado”. Que a criança olhe para a frente e o ancião para trás. Não será esse o significado da dupla face de Jano? Iria de bom grado buscar no fim do mundo um bom ano de verdadeira tranquilidade e alegria, eu que só tenho como objetivo viver de bom humor. Resolvi igualmente escrever esta obra em minha província selvagem, onde ninguém me pode ajudar ou corrigir, onde só frequento pessoas que não entendem sequer o latim de seu padre-nosso e menos ainda o francês. Escrito algures, fora talvez melhor, mas não tão meu, e seu objetivo principal, bem como seu mérito, está em ser a minha imagem exata. Só corrijo em meus textos os enganos, jamais os defeitos de minha personalidade. Pois não é assim mesmo que falo habitualmente? Não me mostro tal qual sou? Está certo, então. Cheguei ao que queria, pois todos me reconhecem no que escrevo.»
A tradição clássica, como se percebe, é trazida para o centro da arena de uma reflexão pessoal, de uma confissão. Não há reverência, não há deslumbramento. Os pensadores e escritores do passado são como companhia da alma que se está expondo aqui, porque também eles refletiram sobre a matéria-prima da vida. Reconhecendo que o seu texto, como produto, pode não ser bem recebido, ou pode ser em muitos sentidos incompreendido, Montaigne suspeita que talvez venha a ser censurado, por causa da linguagem. Mudança de paradigma, em suma, na passagem do mundo medieval para o moderno, da filosofia escolástica para a filosofia humanista. O ataque ao jargão escolástico fazia parte de uma crítica mais geral à cultura da Idade Média, a época da qual os humanistas acreditavam estar surgindo e contra a qual se definiam. A preocupação humanista com a elegância da linguagem, a preocupação empirista pelas coisas e não pelas palavras em si e uma certa desconfiança, senão um desprezo, pelos profissionais que se valiam do jargão (filosófico, mais que outros). Os humanistas, a exemplo do inventor do ensaio, eram gente elegante, amadora, que escrevia para o autoconhecimento e não por pedantismo. A qualidade essencial do ensaio é a persuasão, de tal modo que em sua forma pura, ele é um argumento; outra, derivada da primeira, a de que, sendo o ensaio um texto ocupado com ideias fundamentalmente endereçadas de um autor para um leitor, sua natureza seria primariamente incluída no campo dos escritos didáticos, expositivos, críticos. Viria daqui uma dupla consistência: o ensaio seria naturalmente uma forma de conhecimento, pelo argumento, e uma forma de arte, pelo estilo.
Virginia Woolf, ao considerar a singularidade da obra de Montaigne, foi categórica: “Mas este falar de si mesmo, seguindo as próprias divagações e descrevendo todo o mapa, o peso, a cor e a circunferência da alma em sua confusão, sua variedade, sua imperfeição, esta arte pertenceu apenas a um homem: Montaigne”. O que pode ser um exagero, mas está longe de ser errado. Montaigne fundou um novo modo de escrita, a partir de sua vontade e embasado num certo património. De modo semelhante, é a ideia de Jorge Luis Borges quando comenta a relação de Kafka com os seus precursores: Montaigne não provém de uma tradição, mas funda-a, conferindo sentido, por sua plenitude literária, a algumas tentativas anteriores, quem sabe desde que alguns gregos inteligentes e sensíveis andaram escrevendo depoimentos e aforismos, tentativas que nele convergem e alcançam a sua melhor forma expressiva.
A trilha do ensaio veio a florescer de imediato noutro país, que não a França: a Inglaterra. Os Essais atravessaram velozmente a Mancha, que as obras de Shakespeare, pouco posteriores, levariam mais de um século a percorrer em sentido contrário, só sendo introduzidas na França por Voltaire, em 1731. De Francis Bacon (1561-1626) em diante (aí está o já mencionado Locke (1632-1704), veremos configurada uma autêntica tradição, específica, em terras inglesas, onde se junta John Dryden (1631-1700); Samuel Johnson (1709-1784); Samuel Taylor Coleridg (1772-1834). A partir de Montaigne o género ensaístico firmou-se na Inglaterra, adquirindo novas configurações, novos aspetos, novos compromissos. Diz-se que Francis Bacon teve acesso aos Ensaios de Montaigne por intermédio de seu irmão, Anthony Bacon, que conheceu o escritor francês. Bacon, ao tomar contacto com a obra de Montaigne, parece ter sido decisivo para a sua própria trajetória. Seus Ensaios são publicados pela primeira vez em 1597, e os textos sofrem sucessivas reformulações e adaptações, a gosto de uma ideia ensaística de exercício, escritos em inglês, ao contrário de suas obras científicas que foram escritas em latim para sobreviver ao tempo ... segundo ele.
Que os ensaios de Bacon tenham traços perfeitamente semelhantes aos do Ensaio de Montaigne, parece fora de dúvida. Uma obra como Novum Organum, inscrita nos domínios da filosofia, é, do ponto de vista do estilo, nada mais que uma sequência de aforismos sobre os assuntos de que se ocupa. Mas há espaço para observações como a do Aforismo XXXIII: “A glória dos antigos, como a dos demais, permanece intacta, pois não se estabelecem comparações entre engenhos e capacidades, mas de métodos. Não nos colocamos no papel de juiz, mas de guia”. Dois ensaios exemplares: “Da amizade” e “Sobre jardins”, que já pelos títulos insinuam um certo tipo de reflexão sobre temas banais. Qualquer tema serve, uma simples mosca pode ser o pretexto: "E Deus queira que o que estou ventilando agora não provenha de uma fonte estranha. Pouco importa o começo, vou encadeando ideias umas nas outras."
Gore Vidal, o ensaísta e romancista norte-americano, observou numa entrevista: “Suspeito que a única forma de prosa que vai fisgar o leitor do futuro é o ensaio, em que uma voz atravessa séculos e mundos até ao ouvido de outra pessoa. Ao fim, Montaigne e não Cervantes”. Mais ou menos na mesma posição está Bioy Casares. Em uma reflexão plena de sabedoria, dirá, apontando o interesse continuado do género: “Um dia sentimos que não há outra esperança nas letras do que o dossiê naturalista, ou a comédia de enredo, ou o sadismo, ou o adultério, ou os sonhos, ou a viagem alegórica, ou a novela pastoril, ou a alegação social, ou os enigmas policiais, ou a picaresca; outro dia nos perguntamos como pôde alguém interessar-se em tão desoladas loucuras. No meio desta mudança, historicamente justificável, mas essencialmente arbitrária, há alguns géneros perpétuos. Porque não depende de formas e porque se parece ao fluir normal do pensamento, o ensaio é, talvez, um deles”. Género perpétuo, para Bioy Casares, e género de futuro, para Gore Vidal. Talvez seja este o caminho para compreender, preliminarmente, a vigência do ensaio. Mais que noutros momentos do passado ocidental, o género ensaio ganha fôlego, se não como forma mais ou menos fixa (como na crónica), como atitude mental. A prosa de Clarice Lispector, bem como toda a produção de Jorge Luis Borges vem sendo lida segundo o critério do ensaio. A linha evolutiva do ensaio, gravada no cilindro rotativo dos séculos, consiste precisamente no trânsito gradual do pessoalismo de Montaigne (ensaios de) para o impessoalismo de (ensaios sobre).
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