sábado, 31 de agosto de 2024

Atenas no século VI a.C.


No século VI a.C. a Grécia passava por grandes transformações políticas, sociais e económicas. Durante esse tempo, Atenas enfrentava uma intensa crise interna, marcada por conflitos entre diferentes classes sociais. A sociedade ateniense estava profundamente dividida entre os nobres (eupátridas), que detinham a maior parte das terras e do poder, e as classes mais baixas, compostas principalmente por pequenos agricultores, comerciantes e artesãos, muitos dos quais estavam endividados e em risco de serem escravizados.

Para lidar com essa crise e evitar uma guerra civil, os atenienses escolheram Sólon como arconte e legislador em 594/593 a.C. Sólon era um dos "Sete Sábios da Grécia", conhecido por sua sabedoria e justiça. Sua missão era reformar o sistema político e económico de Atenas para trazer estabilidade e aliviar as tensões sociais. Ele cancelou todas as dívidas dos pequenos agricultores e proibiu a escravização por dívida, libertando aqueles que já haviam sido escravizados. Sólon reorganizou a estrutura política de Atenas, criando um sistema baseado na riqueza em vez do nascimento. Ele dividiu os cidadãos atenienses em quatro classes, de acordo com sua renda, e determinou os direitos políticos de cada grupo, permitindo que os mais ricos tivessem mais poder, mas também garantindo certa participação dos mais pobres.

Criação da Eclésia e do Tribunal Popular: Sólon estabeleceu a Eclésia, uma assembleia que permitia que todos os cidadãos livres participassem na tomada de decisões importantes, e o Helieia, um tribunal popular onde os cidadãos podiam servir como jurados. As reformas de Sólon não resolveram completamente as tensões sociais, mas criaram uma base para o desenvolvimento da democracia ateniense nas décadas seguintes. Ele é lembrado como um dos grandes reformadores de Atenas, cuja obra ajudou a prevenir uma guerra civil e colocou a cidade no caminho da democracia. Sólon é muitas vezes lembrado por sua recusa em se tornar um tirano, apesar de ter recebido poderes quase ilimitados para implementar as suas reformas em Atenas. Ele estabeleceu leis justas que pudessem trazer equilíbrio e estabilidade à sociedade ateniense.

Para a época, as reformas de Sólon eram muito progressistas. Visavam aliviar as tensões entre as classes sociais, mas o povo ateniense ainda não estava completamente preparado para absorver e entender todas as suas ideias. As mudanças que ele implementou criaram um equilíbrio de poder, mas também geraram resistência tanto da elite quanto das classes mais baixas. A elite, composta pelos aristocratas, sentiu que suas prerrogativas estavam sendo ameaçadas, enquanto os mais pobres esperavam que as reformas fossem mais radicais, talvez redistribuindo as terras de forma mais equitativa. Além disso, as novas estruturas políticas que Sólon estabeleceu, como a Eclésia e o Helieia, levariam tempo para se consolidar e ganhar a confiança da população.

Apesar das dificuldades iniciais na aceitação de suas ideias, as reformas de Sólon são consideradas um passo crucial no desenvolvimento da democracia ateniense. Ele lançou as bases para a estrutura política que, eventualmente, permitiria que a democracia florescesse em Atenas no século V a.C. Após implementar as reformas, Sólon deixou Atenas por cerca de dez anos, numa espécie de exílio autoimposto, acreditando que a sua ausência permitiria que as leis fossem testadas sem a sua influência direta. No entanto, na sua ausência, as divisões internas continuaram, e Atenas passou por períodos de instabilidade, culminando na ascensão de Pisístrato, que acabou por se tornar um tirano em 561 a.C.

Pisístrato, apesar de tirano, transformou a Acrópole num local de culto espetacular, e deu nova vida às Panateneias, um dos festivais religiosos mais importantes de Atenas, que honrava a deusa Atena, padroeira da cidade. Sob o seu governo, as Panateneias foram ampliadas, tornando-se um evento ainda mais grandioso e inclusivo, com competições atléticas, musicais e poéticas, além de procissões religiosas. A Grande Panateneias, que ocorria a cada quatro anos, foi especialmente destacada, atraindo participantes de toda a Grécia e fortalecendo o prestígio de Atenas.

Pisístrato, embora um tirano em Atenas, é amplamente reconhecido por suas contribuições significativas para o desenvolvimento cultural, religioso e económico da cidade. Seu governo, que se estendeu de maneira intermitente de 561 a.C. até à sua morte em 527 a.C., é frequentemente lembrado como um período de florescimento para Atenas. Uma de suas realizações mais notáveis foi a transformação da Acrópole num centro religioso de grande importância. Ele iniciou projetos de construção que mais tarde foram expandidos por seus sucessores, incluindo a construção de templos e santuários que fizeram da Acrópole um local de culto espetacular. Isso não apenas reforçou a identidade religiosa dos atenienses, mas também consolidou a Acrópole como o coração espiritual e cultural da Grécia.

Além de suas realizações culturais e religiosas, Pisístrato também promoveu reformas económicas que beneficiaram os pequenos agricultores e incentivou o comércio e as artes. Ele ordenou a distribuição de terras entre os cidadãos mais pobres e introduziu nova moeda, que ajudou a impulsionar a economia ateniense. Apesar de sua tirania, Pisístrato governou com um certo grau de moderação e popularidade. Seu regime é frequentemente visto como um período de estabilidade e crescimento que preparou o terreno para o desenvolvimento posterior da democracia ateniense, especialmente sob o governo de seus filhos, Hiparco e Hípias, e, mais tarde, sob os reformadores democráticos como Clístenes.

Foi neste tempo que se desenvolveu um outro culto em Elêusis. Durante o período da tirania de Pisístrato, no século VI a.C., o culto aos Mistérios de Elêusis ganhou maior proeminência e se desenvolveu significativamente. Elêusis, uma pequena cidade localizada a cerca de 20 km a noroeste de Atenas, tornou-se o centro de um dos cultos religiosos mais importantes e misteriosos da Grécia antiga. Os Mistérios de Elêusis estavam ligados ao mito de Deméter e Perséfone, que simbolizava o ciclo das colheitas e a renovação da vida. O culto era secreto e reservado àqueles que haviam sido iniciados, sendo conhecido por seus rituais de iniciação que prometiam aos participantes uma experiência espiritual profunda e a esperança de uma vida após a morte.

Pisístrato, que tinha um interesse especial em promover a religiosidade como meio de unificação e controlo social, foi um grande incentivador desse culto. Ele ampliou as celebrações dos Mistérios de Elêusis e provavelmente patrocinou a construção ou renovação de templos e infraestruturas em Elêusis para acomodar o crescente número de participantes. Sob Pisístrato, os Mistérios de Elêusis foram integrados ao calendário religioso oficial de Atenas, e a cidade-estado começou a exercer maior controlo sobre o santuário de Elêusis. As celebrações anuais dos Mistérios Maiores, que ocorriam no outono, tornaram-se eventos de grande importância, atraindo peregrinos de toda a Grécia.

Esse culto, com seus ritos de iniciação e promessas de uma vida após a morte, teve um impacto profundo na religiosidade grega, influenciando não apenas a vida espiritual dos atenienses, mas também o pensamento religioso em toda a Grécia. Ele continuou a ser praticado e a influenciar o pensamento religioso até ao final da Antiguidade, sendo um dos cultos mais duradouros e venerados do mundo grego. Os Mistérios de Elêusis eram divididos em duas partes: os Mistérios Menores e os Mistérios Maiores. A deusa Deméter, associada à agricultura e à fertilidade, era a principal divindade do culto, juntamente com sua filha Perséfone, cujo mito do rapto por Hades e retorno anual era central nos rituais, simbolizando a renovação cíclica da vida e das colheitas.

Em Elêusis, portanto, atingia-se um estado modificado de consciência, a que chamavam "ekstasis" Este termo, do grego antigo, significa literalmente "estar fora de si" ou "estar fora de sua posição habitual". No contexto dos Mistérios de Elêusis, "ekstasis" se referia a um estado de transcendência em que os iniciados experimentavam uma forma de êxtase espiritual, permitindo-lhes uma perceção profunda e mística da realidade e do divino. Esse estado era induzido através de uma combinação de elementos rituais, como o uso de cânticos, danças, símbolos sagrados, e possivelmente a ingestão de uma bebida sagrada chamada kykeon, que pode ter contido substâncias psicotrópicas. A experiência extática permitia aos iniciados uma conexão direta com as divindades, principalmente Deméter e Perséfone, e uma visão intuitiva das verdades espirituais do ciclo da vida, morte e renascimento.

Nos Mistérios de Dioniso, os participantes, principalmente as ménades (ou bacantes), buscavam entrar em estados de transe ou êxtase que eram considerados formas de elevação da consciência. Dioniso, o deus do vinho, da fertilidade e do êxtase, estava profundamente associado a essas experiências extáticas e rituais. Esses ritos dionisíacos frequentemente envolviam danças frenéticas, música intensa, cânticos e a ingestão de vinho, que ajudavam a induzir estados alterados de consciência. Em tais estados, os participantes acreditavam estar possuídos pelo espírito de Dioniso, experimentando uma união mística com o deus. Esse transe coletivo era considerado uma forma de transcendência, permitindo que os participantes rompessem com as normas sociais e pessoais e mergulhassem numa experiência espiritual intensa. Este estado era visto como uma forma de purificação e uma conexão direta com o divino, onde os limites entre o eu e o mundo exterior se dissolviam. Através desses rituais, os seguidores de Dioniso acreditavam que podiam aceder a uma realidade mais profunda e libertadora, escapando temporariamente das restrições da vida quotidiana e tocando algo de essencial e primordial dentro de si mesmos.

Por outro lado, foi também uma época em que floresceram mais duas seitas esotéricas: a de Orfeu e a de Pitágoras. Além dos Mistérios de Elêusis e dos ritos dionisíacos, as seitas esotéricas de Orfeu e Pitágoras também floresceram, cada uma com as suas próprias práticas e filosofias esotéricas. O orfismo era baseado nas tradições atribuídas a Orfeu, um lendário poeta e músico. Os orfistas acreditavam na reencarnação e na necessidade de purificar a alma através de rituais, ascetismo e a observância de práticas específicas. A filosofia orfista também incluía uma visão mística da natureza e do cosmos, e o uso de hinos e cânticos dedicados às divindades para alcançar um estado elevado de consciência. O pitagorismo fundado por Pitágoras, era tanto uma escola filosófica como uma seita esotérica. Os pitagóricos viam a matemática como a chave para compreender a ordem cósmica e a harmonia universal. Eles acreditavam que os números e as proporções matemáticas eram fundamentais para a estrutura do universo. Além disso, o pitagorismo incluía aspetos de ascetismo e de vida comunitária, com um forte foco na purificação da alma e na busca pelo conhecimento.

Ambas as seitas compartilhavam uma ênfase na purificação espiritual e no desenvolvimento da alma, mas cada uma tinha as suas abordagens distintas para alcançar esses objetivos, refletindo a diversidade de pensamentos esotéricos e filosóficos da Grécia Antiga. Foi sem dúvida um tempo muito fértil, em que também se começa a erguer a ciência em Mileto, com Tales. A Grécia Antiga, especialmente no período do século VI a.C., foi uma época de grande fermentação intelectual e cultural. Em Mileto, um centro de pensamento no litoral da Ásia Menor, surgiram figuras-chave que marcaram o início da ciência e da filosofia ocidentais. Tales de Mileto é frequentemente considerado um dos primeiros filósofos e cientistas da história ocidental. Ele é conhecido por tentar explicar o mundo natural através de princípios racionais e observacionais, em vez de mitos ou explicações religiosas. Tales propôs que a água era o princípio fundamental (archê) de todas as coisas, uma ideia que representava uma tentativa precoce de encontrar uma substância universal subjacente à diversidade do mundo natural.

Além de Tales, outros pensadores de Mileto, como Anaximandro e Anaxímenes, também contribuíram para o desenvolvimento precoce da filosofia e da ciência, explorando a natureza do cosmos e os princípios que governam a realidade. Essa era de inovação em Mileto, e em outras partes da Grécia, representou um movimento significativo para além das explicações míticas tradicionais e estabeleceu as bases para a ciência empírica e a filosofia. A busca por explicações racionais e a observação sistemática do mundo natural foram marcos importantes do pensamento grego antigo, e tiveram um impacto duradouro na tradição intelectual ocidental.

Os intelectuais milesianos desenvolveram as suas especulações por elas mesmas e lançaram assim os fundamentos do futuro racionalismo ocidental. Foram pioneiros na transição do pensamento mitológico para o racional. Eles buscaram explicações baseadas na observação e na razão. Esses filósofos se afastaram das explicações tradicionais baseadas em mitos e crenças religiosas, propondo em vez disso que o cosmos poderia ser compreendido através de princípios naturais e universais.


Os primeiros parceiros comerciais dos gregos clássicos foram os cananeus a quem os gregos chamavam fenícios. Os fenícios eram um povo semita que habitava a região da costa do atual Líbano e partes da Síria e Israel. Eles eram renomados navegadores e comerciantes no Mediterrâneo, e foram responsáveis por estabelecer uma extensa rede de comércio que ia do Mediterrâneo Ocidental até ao Próximo Oriente. Os gregos mantinham uma relação comercial estreita com os fenícios, especialmente no que se refere à troca de bens como metais, madeira, tecidos, e produtos de luxo, como o famoso corante púrpura de Tiro. Além de produtos materiais, essa interação também facilitou o intercâmbio cultural, incluindo a transmissão do alfabeto fenício, que os gregos adaptaram e que se tornou a base do alfabeto grego.

O Médio Oriente no século VI a.C.


A primeira metade do século VI a.C. é um período crucial na história do povo judeu devido ao Cativeiro de Babilónia Esse evento ocorreu em um contexto de grande instabilidade na região do Médio Oriente, durante o qual o Império Babilónico, sob o reinado de Nabucodonosor II, conquistou o reino de Judá. Entre 597 a.C. e 586 a.C., os babilónios sitiaram Jerusalém e, após a conquista definitiva, destruíram o Templo de Salomão e deportaram uma parte significativa da elite judaica para a Babilónia. Esse exílio marcou profundamente a história religiosa e cultural dos judeus, influenciando o desenvolvimento de sua identidade, tradições e escritos religiosos.

Os efeitos do exílio foram amplos e duradouros, afetando desde as práticas religiosas até à formação dos textos que compõem a Bíblia Hebraica. Muitos dos profetas bíblicos, como Ezequiel e Jeremias, viveram e escreveram durante ou em resposta a esse período, abordando temas como a justiça divina, a esperança de retorno e a renovação espiritual do povo de Israel. O cativeiro terminou oficialmente em 539 a.C., quando Ciro, o Grande, da Pérsia, conquistou a Babilónia e permitiu que os judeus voltassem a Judá, embora muitos tenham optado por permanecer na diáspora.

A devastação provocada pelos babilónios no Levante, especialmente a destruição de Jerusalém em 586 a.C., é um dos eventos mais trágicos da história judaica. Este evento é amplamente registado na literatura bíblica, e o Livro das Lamentações é uma obra central que reflete o sofrimento e a dor daquele período.

O Livro das Lamentações é tradicionalmente atribuído ao profeta Jeremias, embora a sua autoria não seja unanimemente aceite. Ele é composto por cinco poemas que expressam a profunda tristeza e desespero do povo judeu após a destruição de Jerusalém e do Templo de Salomão pelos babilónios. Cada capítulo do livro é uma elegia à cidade arruinada, descrevendo com detalhes vívidos a miséria dos habitantes, a desolação do Templo e o sentido de abandono divino.

O tom geral das Lamentações é de luto e penitência, com o autor e o povo reconhecendo que o sofrimento é uma consequência dos pecados de Israel. Há também uma súplica constante por misericórdia e um pedido de restauração, embora o sentimento predominante seja de dor e desolação. Além da sua importância religiosa, as Lamentações também têm valor histórico, pois fornecem uma visão vívida do impacto emocional e espiritual da queda de Jerusalém sobre os sobreviventes, documentando as consequências dessa catástrofe nacional que marcou profundamente a identidade e a memória coletiva do povo judeu.

O profeta Ezequiel havia sido levado para Babilónia. Assim como o rei Joaquim (ou Jeconias). Ambos foram levados para o exílio durante a primeira deportação de judeus para a Babilónia em 597 a.C. Foi aquando da conquista de Jerusalém pela primeira vez por Nabucodonosor II. Joaquim, rei de Judá, foi deposto e levado para o exílio. E Zedequias foi colocado como rei fantoche em seu lugar. Ezequiel, que era sacerdote, foi exilado juntamente com muitos outros membros da elite de Judá e viveu em Tel-Abibe, uma colónia judaica perto do rio Quebar, na Babilónia.

Enquanto estava no exílio, Ezequiel teve as suas visões proféticas, que foram posteriormente registadas no Livro de Ezequiel. Ele profetizou tanto sobre o julgamento que viria sobre Jerusalém e Judá, quanto sobre a futura restauração do povo de Israel. Apesar de estar fisicamente distante de Jerusalém, Ezequiel manteve uma conexão espiritual profunda com a cidade e com o destino de seu povo.

Entretanto no Médio Oriente Ciro, o Grande, se destacava no Médio Oriente ao fundar e expandir o Império Aquemênida, que se tornaria o maior império do mundo até então. Ciro II, conhecido como Ciro, o Grande, começou a reinar como rei dos persas por volta de 559 a.C. Em pouco tempo, ele conquistou vastos territórios, incluindo o Império Medo, o Império Lídio e o Novo Império Babilónio, unificando boa parte do Médio Oriente sob seu domínio. Por volta de 550 a.C., Ciro derrotou Astíages, rei dos medos, consolidando o domínio persa sobre a Média. Essa vitória marcou o início da expansão Aquemênida.

Ciro foi um líder militar brilhante, mas a sua fama também se deve à sua política de tolerância e administração justa dos povos conquistados. Ele é especialmente lembrado por permitir que os judeus exilados na Babilónia retornassem à sua terra natal e reconstruíssem o Templo de Jerusalém, como registado na Bíblia Hebraica. Sob o governo de Ciro, o Império Aquemênida se estendeu desde a Ásia Central até o Mediterrâneo e o Egito, tornando-se o maior império que o mundo havia visto até aquele momento. Seu governo estabeleceu padrões de administração imperial, como o uso de satrapias (províncias) governadas por sátrapas (governadores), que permitiram uma gestão eficiente e a manutenção da ordem em um território vasto e diversificado. Ficou conhecido como um governante sábio e benevolente, cujas políticas de respeito às culturas e religiões dos povos subjugados o tornaram uma figura reverenciada na história antiga. Sua morte ocorreu em 530 a.C., mas seu legado perdurou e foi continuado por seus sucessores, que expandiram ainda mais o Império Aquemênida.

Com a tomada de Babilónia por parte de Ciro dá-se a tal reviravolta na vida dos judeus, como profetizava o Segundo Isaías. 
O Segundo Isaías (capítulos 40-55 do Livro de Isaías) é conhecido por suas profecias de conforto e esperança para os israelitas exilados, anunciando que Deus havia escolhido Ciro como seu instrumento para libertar seu povo. Ciro foi visto como um "ungido" (mashiach, termo que em hebraico significa "messias"), enviado por Deus para trazer a libertação aos judeus. Após a conquista, Ciro emitiu um decreto permitindo que os exilados retornassem a Jerusalém e reconstruíssem o Templo, o que foi um momento decisivo para o povo judeu. Esse retorno marcou o fim do Exílio Babilónico e o início de uma nova era para Israel, onde a restauração de sua identidade e religião foi possível.

Na realidade, os judeus retornados a Jerusalém devem ter sido poucos, a maioria terá ficado em Babilónia. A maioria dos judeus exilados em Babilónia não retornou a Jerusalém após o decreto de Ciro, apesar da permissão para fazê-lo. Diversos fatores contribuíram para isso. Durante os cerca de 50 anos de exílio, muitos judeus se estabeleceram em Babilónia e outras partes do Império Persa, onde conseguiram construir vidas relativamente estáveis, integrando-se nas comunidades locais. Eles formaram negócios, adquiriram propriedades e estabeleceram laços sociais e familiares. Para muitos, abandonar essa estabilidade para enfrentar as incertezas de um retorno a uma terra devastada parecia uma opção menos atraente. E Jerusalém, como toda a região de Judá, estavam em grande parte destruídas e desoladas após décadas de abandono. A cidade precisava ser reconstruída do zero, e a terra ao redor havia sido ocupada por outras populações. A perspectiva de retornar para enfrentar essas condições adversas certamente desmotivou muitos a deixarem Babilónia.

A diáspora judaica já era uma realidade antes do Exílio Babilónico, mas se intensificou com a permanência de muitos judeus na Babilónia. Esse grupo de judeus que escolheu não retornar ao antigo território de Israel ajudou a formar uma importante comunidade judaica na Mesopotâmia, que prosperou por séculos. Embora o Segundo Isaías e outros profetas incentivassem o retorno, muitos judeus começaram a ver Babilónia como seu novo lar, continuando suas práticas religiosas e culturais ali, em vez de retornar à terra ancestral. O conceito de sionismo, ou seja, o retorno à terra de Israel, não era universalmente compartilhado por todos os judeus da época.

De facto, apenas uma pequena fração dos exilados voltou para Jerusalém e Judá. Este grupo, liderado por figuras como Zorobabel e, mais tarde, Esdras e Neemias, foi fundamental para a reconstrução do Templo e o restabelecimento da comunidade judaica em Jerusalém. No entanto, a maioria dos judeus continuou a viver fora da terra de Israel, contribuindo para a formação de uma vibrante e duradoura diáspora judaica. Passados 70 anos, a confusão  era total. 

Setenta anos passados, a confusão 
no meio de filisteus, moabitas, amonitas, edomitas, árabes e fenícios, deve ter sido grande quando regressaram. Quando os judeus exilados voltaram, encontraram uma região drasticamente transformada em termos políticos, sociais e demográficos. Vários fatores contribuíram para essa situação difícil. Durante o exílio babilónico, a região de Judá não ficou desocupada. Outros povos, como filisteus, moabitas, amonitas, edomitas, árabes e fenícios, continuaram a habitar ou migraram para a área. Estes grupos estabeleceram suas próprias comunidades e economias na região, ocupando terras que antes pertenciam aos judeus. O retorno dos exilados criou tensões com essas populações, que viam os recém-chegados como intrusos ou concorrentes. Os retornados precisavam reclamar e reassentar as terras que uma vez foram suas. Contudo, essas terras já estavam sendo utilizadas por outros grupos, o que levou a conflitos territoriais. Os judeus retornados enfrentaram resistência desses grupos que agora consideravam Judá como seu lar.

A Jerusalém que os exilados encontraram estava em ruínas, incluindo o Templo, que era o centro religioso e cultural do povo judeu. A tarefa de reconstruir a cidade e o Templo foi monumental e cercada de dificuldades, tanto material quanto política. A liderança dos judeus retornados, como Zorobabel, Esdras e Neemias, teve que lidar com a falta de recursos e mão de obra, além das constantes ameaças de ataques ou sabotagens por parte de vizinhos hostis. Havia também divisões entre os próprios judeus. Aqueles que permaneceram na terra durante o exílio, muitas vezes chamados de "povo da terra", podem ter desenvolvido práticas religiosas ou sociais diferentes dos exilados que retornaram. Isso gerou conflitos internos, especialmente quando os retornados tentaram impor suas visões sobre a pureza religiosa e as tradições, como a proibição de casamentos com pessoas de outros povos, o que criou atritos dentro da própria comunidade judaica.

Portanto, o retorno não foi uma simples voltar à "normalidade", mas sim um período de complexidade e adaptação. As dificuldades de reintegração e reconstrução foram enormes, mas também ajudaram a moldar a identidade e as práticas religiosas dos judeus naqueles tempos, o que teve um impacto duradouro na história de Israel e do judaísmo. No entanto, lá acabaram por reconstruir o Templo, o Segundo Templo. Apesar dos desafios significativos, os judeus retornados conseguiram reconstruir o Templo de Jerusalém, conhecido como o Segundo Templo. Este processo ocorreu em várias etapas e envolveu a colaboração de várias figuras chave e o apoio de autoridades persas. A reconstrução do Segundo Templo começou em 536 a.C., logo após o decreto de Ciro a permitir o retorno dos exilados. O início da construção do Templo é atribuído a Zorobabel, um líder da tribo de Judá, e a Jesua (ou Josué), o sumo sacerdote. O trabalho começou com a construção do altar e da fundação do Templo.

A reconstrução enfrentou várias interrupções devido a oposições de povos vizinhos, como os samaritanos, e questões políticas. Houve períodos em que o trabalho quase parado fez arrastar a reconstrução por alguns anos. A situação mudou com o apoio dos governantes persas subsequentes. Em 520 a.C., o rei persa Dario I deu apoio renovado à reconstrução, o que acelerou o progresso. Os profetas Ageu e Zacarias também desempenharam papéis importantes em encorajar o povo a continuar o trabalho. A construção do Segundo Templo foi finalmente concluída em 515 a.C., aproximadamente 70 anos após a destruição do Primeiro Templo, conforme relatado no Livro de Esdras. O Segundo Templo era um esboço, em comparação com o Primeiro Templo, mas representou a restauração da adoração a Deus em Jerusalém e teve um papel central na vida religiosa e cultural dos judeus. Como a reconstrução do Templo original havia sido modesta, o rei Herodes, no final do século I a.C., iniciou um grande projeto de expansão e renovação, tornando o Segundo Templo novamente grandioso e imponente.

"Quatro mitos sobre as Cruzadas" – por Paul Crawford


Paul Crawford escreveu um artigo intitulado "Quatro mitos sobre as cruzadas" em que ele discute as visões equivocadas comumente associadas às Cruzadas. Neste texto, Crawford visa esclarecer mal-entendidos, e oferece uma perspetiva mais equilibrada sobre esse período histórico.


As Cruzadas foram um ataque provocado contra o mundo muçulmano pacífico. Esse é o mito, que sugere que as Cruzadas foram um ato de agressão injustificado por parte do Ocidente cristão contra uma sociedade islâmica pacífica. Crawford argumenta que, na realidade, as Cruzadas foram, em parte, uma resposta às invasões muçulmanas e ao controlo de territórios cristãos, incluindo a Terra Santa. Ele contextualiza as Cruzadas como reações defensivas a séculos de expansão muçulmana.

Os cruzados estavam interessados apenas em riqueza e poder. É outro mito comum, o de que os cruzados eram motivados principalmente por ganância e pela busca de poder. Crawford contesta essa visão, afirmando que muitos cruzados foram movidos por um genuíno sentimento de devoção religiosa e desejo de realizar uma peregrinação. Embora houvesse benefícios materiais possíveis, a motivação espiritual era a força mais importante para muitos.

As Cruzadas introduziram o colonialismo ocidental no Médio Oriente. Este mito considera as Cruzadas como o começo do imperialismo ocidental no Médio Oriente. Crawford argumenta que isso é um anacronismo, já que as Cruzadas não eram empreendimentos coloniais no sentido moderno. Em vez disso, os cruzados viam suas campanhas como uma defesa dos territórios cristãos e uma tentativa de restabelecer o controlo sobre as terras sagradas.

As Cruzadas ainda são a principal causa do conflito entre o Islão e o Ocidente. Este mito sugere que as Cruzadas são a raiz do conflito moderno entre o mundo islâmico e o Ocidente. Crawford afirma que embora as Cruzadas sejam um ponto importante na história das relações entre cristãos e muçulmanos, muitos dos conflitos contemporâneos têm origem em eventos muito mais recentes e em contextos políticos, económicos e sociais que não estão diretamente relacionados com as Cruzadas.

Paul Crawford busca, portanto, desmistificar as Cruzadas e proporcionar uma visão mais equilibrada e historicamente precisa, levando em conta as complexidades do contexto medieval. Em certos aspetos é quase inevitável haver períodos em que correm certas teses como se fosse uma moda. Certas teses ou interpretações históricas ganham popularidade e se espalham como uma moda. O Contexto Sociopolítico é muito importante. As interpretações históricas frequentemente refletem as preocupações e as tensões da época em que são formuladas ou ganham popularidade. Por exemplo, durante períodos de conflitos internacionais, pode haver uma tendência a interpretar acontecimentos históricos de uma maneira que justifique ou explique esses conflitos.

Quando uma nova interpretação ou teoria é promovida por académicos influentes, ela pode rapidamente se tornar a dominante em certos círculos, podendo se espalhar com rapidez tanto mais nos dias de hoje com a grande difusão da cultura pelos órgãos mediáticos. Livros populares, filmes, documentários e outros meios de comunicação de massa têm o poder de popularizar certas interpretações históricas, mesmo que sejam simplificadas ou distorcidas. Quando uma tese histórica é adotada por esses meios, ela pode-se espalhar amplamente e ganhar credibilidade para o público em geral. Há uma tendência natural para buscar narrativas simples e coerentes que expliquem fenómenos complexos. E essa é a armadilha, que induz a aceitação de teses que, apesar de serem simplificadas, são falaciosas.

Sem desvalorizar os ciclos de revisão historiográfica que se impõem devido a novas descobertas, a verdade é que nem as Academias estão imunes às “modas” de cada tempo, pelo que é sempre necessário ter presente um olhar crítico, reconhecendo que a popularidade de uma ideia não garante a sua precisão ou factualidade. Em certos casos, incluindo o meio académico, fazem por ignorar que também houve as conquistas islâmicas a partir de 632 de regiões em que os cristãos já lá habitavam há muito tempo.

Em alguns contextos, a narrativa histórica tem subestimado e omitido aspetos das conquistas islâmicas após a morte de Maomé em 632. Essas conquistas tiveram um impacto profundo em regiões onde comunidades cristãs e outras religiões já existiam há séculos. Após a morte de Maomé, o mundo islâmico entrou numa fase de rápida expansão territorial. O califado islâmico conquistou vastas áreas, incluindo partes significativas do Império Bizantino e da Pérsia Sassânida. Regiões como o Egito, Síria, Palestina e Norte da África, que tinham populações cristãs consideráveis, foram incorporadas no mundo islâmico. Essas áreas já possuíam uma presença cristã estabelecida desde o século I d.C., e muitas delas foram centros importantes para o cristianismo primitivo. Em algumas narrativas autorremetidas para a correção da culpa e do ressentimento, verifica-se a tendência para recortar apenas a brutalidade das Cruzadas Francas e Romanas, sem considerar as legítimas reações dos dois lados. E, no entanto, o descalabro histórico das conquistas muçulmanas que varreram todo o Norte de África e a Península Ibérica, não foi despiciendo no que respeita aos seus efeitos nas comunidades cristãs locais.

Primogenitura e o sistema de linhagem agnática



Primogenitura é a tradição comum de herança de toda a riqueza, estado ou função dos pais pelo primeiro filho; ou, na falta de uma criança, por parentes próximos, de forma a manter o status da linhagem familiar. Entre irmãos, o filho de um irmão mais velho falecido tem prioridade sobre um irmão mais novo. Na falta de filhos, o sucessor é o segundo irmão mais velho. Na falta de descendentes do sexo masculino, há variações de primogenitura que entregam a herança a uma filha, ou um outro parente, seguindo uma ordem específica de preferência. Na primogenitura agnática, o grau de parentesco é determinado observando descendência comum do ancestral mais próximo pelos ancestrais do sexo masculino. Pessoas com parentesco de sanguinidade masculina são denominados agnáticos, e têm preferência sobre cognáticos, que têm parentesco exclusivamente pelo lado das mulheres, ou por ambos.

Houve diferentes tipos de sucessão baseados na primogenitura agnática, todos partilhando do princípio de que herança é relativa a antiguidade do nascimento e antiguidade da linhagem entre parentes agnáticos, primeiramente, entre os filhos do monarca ou chefe da casa dinástica, sendo os filhos e seus descendentes masculinos herdeiros antes de irmãos e seus descendentes. Mulheres e descendentes do sexo feminino são excluídas da linhagem sucessória. Nesse tipo de primogenitura, um descendente do sexo feminino pode ascender ao trono somente na ausência de irmãos vivos ou seus descendentes legítimos do sexo masculino. Os filhos varões e seus descendentes todos possuem direito ao trono antes das filhas mulheres e seus descendentes. Filhos mais velhos e seus descendentes possuem preferência com relação a filhos mais novos e seus descendentes. De igual maneira, filhas mais velhas possuem preferência em relação a irmãs mais jovens e seus descendentes.

Para percebermos os ainda preconceitos na relação masculino/feminino temos de remontar à época das antigas linhagens a que os antropólogos chamaram agnáticas. A linhagem agnática refere-se a sistemas sociais e familiares patriarcais em que a descendência e a herança são transmitidas através da linha masculina, que o mesmo é dizer paterna. Essas estruturas muitas vezes estabeleciam normas rígidas sobre os papéis e estatutos dos géneros, reforçando desigualdades que ainda podem influenciar as atitudes contemporâneas. A análise desses sistemas ajuda a compreender como as normas históricas moldaram as relações de género e como essas influências continuam a afetar as perceções e comportamentos atuais. Nessas tradições ancestrais, pelo casamento, era a mulher a abandonar a sua família original para se ir juntar à família do marido. Esse é o perfil de muitos sistemas patriarcais históricos. O casamento era visto como uma transferência de propriedade. 

O sistema de linhagem agnática ainda pode ser encontrado em algumas sociedades contemporâneas. Ele reflete a forma como as normas sociais e os preconceitos de género moldaram as expectativas e relações familiares. Hoje, muitas sociedades estão questionando e reavaliando essas tradições, promovendo mais igualdade e escolhas mais equilibradas no casamento e na família. A mulher só ganhava o devido estatuto quando desse à luz um descendente masculino. Em muitas sociedades patriarcais antigas, o nascimento de um "filho homem" era crucial para garantir a continuidade da linha familiar, e para assegurar a herança e o estatuto social da família. Essa prática refletia a crença de que os homens eram os principais herdeiros e responsáveis pela perpetuação do nome e da riqueza familiar. Como resultado, as mulheres eram frequentemente valorizadas principalmente por sua capacidade de gerar filhos homens, o que podia impactar profundamente o seu prestígio e papel social. Embora essas práticas tenham sido desafiadas e mudado ao longo do tempo, o legado dessas normas pode ainda influenciar algumas perceções e expectativas sobre o papel das mulheres na sociedade moderna.

Convém recordar que sociedades matrilineares não são a mesma coisa que sociedades matriarcais, 
embora ambos os termos se relacionem com a estrutura e organização das sociedades. Nas sociedades matrilineares a descendência e a herança são transmitidas através da linha materna. Isso significa que a linhagem e a propriedade são passadas de mãe para filho(a). Em uma sociedade matrilinear, o estatuto e a identidade de uma pessoa são determinados pela família da mãe, mas isso não necessariamente implica que as mulheres detenham o poder político ou social predominante. Estas são as sociedades matriarcais. São aquelas em que as mulheres exercem a autoridade e o poder dominante nas esferas política, social e/ou económica. Nesses sistemas, as mulheres ocupam posições de liderança e têm um papel central na tomada de decisões. Portanto, enquanto uma sociedade matrilinear se concentra na transmissão de identidade e propriedade através da linha materna, uma sociedade matriarcal se caracteriza pela liderança e influência predominantes das mulheres. 

No entanto, famílias matriarcais é possível que existam, mas sociedades verdadeiramente matriarcais não parece que tenham existido. O conceito de sociedades verdadeiramente matriarcais é amplamente debatido. Existem algumas evidências de estruturas sociais onde as mulheres têm um papel proeminente e significativo, como em algumas comunidades indígenas ou em sociedades matrilineares, mas um sistema matriarcal completo, onde as mulheres exercem o poder predominante em todos os aspetos da vida social e política, é raro e, até agora, não foi amplamente documentado em termos históricos ou antropológicos.

Famílias matriarcais, onde a mulher tem um papel central na gestão e organização do lar e da descendência, podem existir, mas essas estruturas muitas vezes coexistem com sistemas sociais mais amplos onde o poder pode ser mais equilibrado ou predominantemente masculino. A ausência de sociedades matriarcais amplamente reconhecidas não nega a importância e a influência das mulheres em várias culturas, mas destaca a complexidade dos sistemas sociais e das dinâmicas de poder. E também sociedades matrilineares são mais raras do que as patrilineares. A maioria das sociedades ao longo da história tem adotado sistemas patrilineares, onde a linhagem e a herança são transmitidas através da linha paterna. Isso reflete uma tendência histórica mais ampla de estruturas patriarcais que privilegiam a linha masculina na sucessão e na transmissão de propriedades e de estatuto.

Sociedades matrilineares, onde a descendência e a herança são passadas através da linha materna, são menos comuns, mas não são inexistentes. Exemplos históricos e contemporâneos incluem algumas comunidades indígenas e sociedades de diferentes partes do mundo, como os Minangkabau da Indonésia e certos grupos na Índia e na Melanésia. Nessas sociedades, o estatuto e a propriedade passam através das mulheres, embora isso não implique necessariamente um sistema matriarcal ou que as mulheres exerçam controlo total em todas as esferas da vida social e política.

A prevalência de sistemas patrilineares pode estar relacionada a fatores históricos, culturais e económicos que moldaram a organização social ao longo dos milénios. Os cientistas sabem que é o instinto biológico que unifica as famílias, mas nos antigos era a crença religiosa dos seus antepassados mortos. A ideia de que o instinto biológico ou a crença religiosa desempenha um papel na formação e na coesão das famílias é, contudo, uma questão complexa. Do ponto de vista da biologia, o instinto de cuidar e proteger a prole é uma característica comum em muitas espécies, incluindo os seres humanos. Esse instinto pode influenciar a formação de laços familiares e a estrutura social, pois as pessoas tendem a formar e manter unidades familiares para garantir a sobrevivência e o bem-estar de seus descendentes.

Em muitas sociedades antigas, a crença na influência de ancestrais e de seres sobrenaturais era fundamental para a coesão familiar e social. As tradições e rituais relacionados aos antepassados frequentemente reforçavam laços familiares e sociais, criando um sentido de continuidade e pertença. Essas crenças ajudavam a estabelecer normas e práticas que unificavam os grupos e promoviam a coesão social. Portanto, enquanto os instintos biológicos e as necessidades práticas desempenham um papel significativo na formação das famílias, as crenças culturais e religiosas também desempenham uma função crucial na construção e manutenção dessas unidades sociais, especialmente em contextos históricos e em diversas culturas. Ambos os fatores — biológicos e culturais — contribuem para a complexidade das relações familiares e sociais.

Os teóricos de conspirações

 

Os “Jogadores da Bolsa”, e os exegetas bíblicos, são pessoas muito experimentadas naquela máxima muito conhecida das “profecias que se autorrealizam”. A profecia autorrealizável é, no início, uma definição falsa da situação, que suscita um novo comportamento e assim faz com que a conceção originalmente falsa se torne verdadeira. A crença de que uma crise financeira ou um colapso económico está iminente, alimentada por teorias da conspiração, pode levar indivíduos e empresas a retirar os seus investimentos, vender ativos ou poupar excessivamente. Essas ações podem então precipitar uma crise económica real, cumprindo a profecia inicial. Sim, a ideia de profecias autorrealizáveis está intimamente ligada ao impacto das teorias da conspiração na política e na sociedade. Uma profecia autorrealizável ocorre quando uma crença ou expectativa, mesmo que inicialmente falsa ou infundada, leva a comportamentos que acabam por fazer com que essa crença se torne realidade.

Quando grupos acreditam que seus adversários políticos estão tramando contra eles, podem agir de forma mais radical ou intransigente, aumentando a polarização. Essa polarização, por sua vez, pode criar um ciclo de ação e reação que intensifica os conflitos, confirmando a crença original de que há uma conspiração ou um conflito irreconciliável. Esse é o efeito do comportamento de massa. Se uma grande parte da população acredita que uma determinada ação ou evento é inevitável (como uma eleição fraudulenta ou uma guerra), essa crença pode levar a comportamentos coletivos que realmente tornam esse evento mais provável. A crença coletiva em uma fraude eleitoral, por exemplo, pode levar a protestos em massa, desobediência civil, ou até tentativas de golpe, criando a instabilidade que inicialmente era apenas uma teoria.
Os teóricos de conspirações são um nicho muito peculiar que junta literatura, espiões e serviços secretos, crime e muita paranoia. São um grupo deveras intrigante. Combinam elementos de literatura de suspense, onde espiões e serviços secretos desempenham papéis centrais, com uma boa dose de mistério e crime, criando narrativas onde quase tudo pode estar ligado a uma conspiração maior e invisível. A paranoia, muitas vezes, surge como combustível dessas teorias, alimentando a crença de que há sempre algo escondido ou um poder maior a manipular os acontecimentos. Esse nicho mistura realidade e ficção, levando muitos a ver padrões onde talvez não existam. É um campo onde o discernimento entre facto e invenção se torna nebuloso, e onde a busca por verdades ocultas pode ser tanto fascinante quanto perigosa.

Quando pessoas famosas morrem, especialmente em circunstâncias inesperadas ou misteriosas, isso quase sempre gera teorias da conspiração. Esses eventos raramente escapam à especulação de que houve algum tipo de atentado, muitas vezes atribuído a figuras ou organizações poderosas como governos, serviços secretos, ou grupos secretos. As teorias da conspiração tendem a reciclar certos vilões "clássicos", como a CIA, a KGB, ou sociedades secretas como o Grupo Bilderberg. Essas teorias prosperam na ideia de que há uma mão invisível que manipula os acontecimentos, especialmente em casos que envolvem figuras públicas com grande impacto social ou político. Assim, mortes como as de John F. Kennedy, Marilyn Monroe, Princesa Diana e até mesmo Michael Jackson, por exemplo, estão repletas de especulações que envolvem planos sinistros e interesses ocultos, em vez de explicações mais simples ou oficiais.

Isso reflete a desconfiança em relação às explicações oficiais e uma tendência a acreditar que, por trás de cada evento trágico envolvendo uma celebridade, há uma trama mais sombria em andamento. Tanto a morte de Francisco Sá Carneiro quanto os acontecimentos em torno de Papas, especialmente as suas mortes, têm sido terreno fértil para teorias da conspiração. No caso de Francisco Sá Carneiro, que morreu num acidente de aviação em 1980, a especulação sobre um possível atentado surgiu quase imediatamente. Apesar das investigações oficiais terem concluído que se tratou de um acidente, muitos acreditam que houve envolvimento de forças políticas ou serviços secretos, o que continua a alimentar debates e investigações alternativas até hoje.

Quanto aos Papas, as teorias da conspiração têm sido abundantes, especialmente em torno das mortes misteriosas ou repentinas. O caso do Papa João Paulo I, que faleceu apenas 33 dias após ter sido eleito, é um dos mais notórios. A rapidez de sua morte e a falta de uma autópsia oficial levaram a inúmeras teorias que sugerem envenenamento, possivelmente ligado a questões internas do Vaticano ou a fações secretas que não queriam certas reformas na Igreja. Esses exemplos mostram como eventos envolvendo figuras públicas de grande importância, seja no âmbito político ou religioso, são frequentemente envolvidos em teorias que vão além das explicações oficiais. Isso reflete não apenas a complexidade das situações, mas também a tendência humana de buscar explicações alternativas quando os factos parecem insuficientes ou suspeitos.

O atentado às Torres Gémeas em 11 de setembro de 2001 é um desses casos, no contexto de teorias da conspiração. Apesar da vasta documentação, investigações oficiais, e os relatos de testemunhas, o acontecimento deu origem a um dos mais abrangentes e persistentes conjuntos de teorias da conspiração na história recente. Algumas das teorias mais comuns sugerem que o ataque foi orquestrado ou permitido pelo próprio governo dos Estados Unidos, seja para justificar intervenções militares no Médio Oriente, seja para aumentar o controlo sobre a população americana através de medidas de segurança mais rigorosas. Outra teoria amplamente difundida é a de que as torres não desmoronaram devido ao impacto dos aviões e ao fogo subsequente, mas sim por uma demolição controlada, possivelmente organizada por elementos dentro do governo ou por outras entidades poderosas. A magnitude deste acontecimento foi de tal ordem que nada ficou como dantes. Muita coisa mudou, muita coisa ficou por explicar, e quando é assim é inevitável que surjam especulações, e é isso que é apetecível para os teóricos de conspirações.

O tipo de mente mais propenso a acreditar em teorias da conspiração geralmente apresenta um conjunto de características psicológicas e sociais específicas. Estas podem variar, mas podem incluir: desconfiança e ceticismo; tendência para os padrões com significado; em suma, mente paranoica. As pessoas com tendências paranoicas, que acreditam que o mundo está constantemente contra elas ou que são vítimas de tramas ocultas, podem ser mais suscetíveis a teorias da conspiração. Essas características podem ser exacerbadas por transtornos de personalidade ou outros problemas psicológicos.

Pessoas que tendem a desconfiar de autoridades, instituições governamentais estão mais inclinadas a aceitar explicações alternativas para eventos complexos. A mente humana é naturalmente predisposta a procurar padrões e significados em eventos, especialmente quando se depara com situações confusas ou assustadoras. Isso pode levar a ver conexões entre eventos desconexos e a interpretar coincidências como evidências de uma conspiração.

Em tempos de incerteza ou crise, como durante pandemias ou desastres, algumas pessoas recorrem a teorias da conspiração como uma forma de dar sentido ao caos. Acreditar que eventos são manipulados por uma força controladora pode ser, paradoxalmente, uma forma de recuperar a sensação de controlo sobre o ambiente. Essas pessoas consideram-se mais "acordadas" do que a maioria, sentem que têm acesso a uma verdade oculta que os outros não conseguem ver. Pessoas que estão socialmente isoladas, ou que fazem parte de comunidades que partilham certas crenças ou ideologias, tendem a reforçar-se e a isolar-se ainda mais. As redes sociais, em particular, criam bolhas de informação onde as pessoas são expostas principalmente a conteúdos que reforçam as suas crenças preexistentes.

Esses fatores, muitas vezes combinados, criam um ambiente mental onde as teorias da conspiração não só fazem sentido, mas também oferecem uma narrativa alternativa que satisfaz necessidades emocionais e psicológicas que as explicações convencionais não conseguem. Daí que esta tendência seja bem empregue no acto de escrever romances ou literatura fantástica. A tendência de buscar padrões, desconfiar de autoridades e explorar cenários alternativos torna a mentalidade conspiratória uma fonte rica de inspiração para a escrita de romances e literatura fantástica. Autores podem usar essas ideias para construir narrativas cheias de reviravoltas, segredos ocultos e desconfianças, mantendo os leitores envolvidos e ansiosos para desvendar a verdade.

Na literatura fantástica, o conceito de conspiração pode ser expandido para criar mundos inteiros onde a realidade é manipulada por forças invisíveis. Isso pode incluir sociedades secretas, governantes sombrios ou até entidades sobrenaturais que controlam os eventos de forma oculta, desafiando a perceção da realidade. Em romances e literatura fantástica, autores podem jogar com a ideia de que a realidade não é o que parece. Conspirações podem levar os leitores a questionar o que é real e o que é fabricado, criando um sentimento de desconforto e fascínio. Muitas histórias que envolvem teorias da conspiração terminam de forma ambígua, deixando ao leitor a tarefa de decidir o que realmente aconteceu. Essa ambiguidade pode ser poderosa, incentivando os leitores a refletir sobre o enredo e até mesmo criar suas próprias teorias.

Por outro lado, a numerologia, a cabala, o exoterismo, a superstição, parapsicologia, completam o figurino deste mundo paralelo ou alternativo. Numerologia trata da crença de que números têm significados ocultos ou influências místicas. E na verdade é uma ferramenta excelente para a criação de enigmas e padrões misteriosos. Autores podem usar numerologia para criar códigos, profecias ou até mesmo para guiar o destino de personagens. Ou a Cabala, que deriva de uma tradição judaica mística. A Cabala oferece uma rica simbologia e conceitos esotéricos que podem ser usados para criar narrativas complexas e profundas. A Árvore da Vida, as Sephirot, e os textos sagrados cabalísticos fornecem uma base para tramas envolvendo conhecimento oculto, magia, e a conexão entre o divino e o humano.

O esoterismo, com o seu foco em conhecimentos secretos e espirituais acessíveis apenas a poucos iniciados, é um terreno fértil para a literatura que explora sociedades secretas, rituais antigos e saberes ocultos. Esse elemento adiciona uma camada de profundidade às narrativas, sugerindo que há mais no mundo do que o que é visível à primeira vista. As superstições, com suas raízes em crenças populares e tradições orais, podem dar cor e autenticidade a mundos fictícios, especialmente em narrativas que exploram culturas ou comunidades específicas. Objetos amaldiçoados, presságios, e tabus são ferramentas literárias que podem intensificar a tensão e o suspense em uma história. A Parapsicologia é, por assim dizer, o estudo de fenómenos psíquicos, como telepatia, clarividência e experiências fora do corpo, e oferece uma ponte entre o natural e o sobrenatural. Na literatura, a parapsicologia pode ser usada para explorar as capacidades ocultas da mente, desafiar as leis da física e questionar os limites do conhecimento humano.

Ora, como a política é um mundo entrelaçado de contactos em grande escala, até que ponto as teorias da conspiração influenciam a mente dos decisores políticos é uma questão que não deve ser excluída. As teorias da conspiração podem ter uma influência significativa sobre a mente dos decisores políticos, afetando tanto as suas perceções assim como as suas ações. Em alguns casos, políticos podem explorar teorias da conspiração como ferramentas de manipulação. Eles podem promover ou apoiar certas teorias para mobilizar a base de eleitores, desviar a atenção de questões críticas ou enfraquecer adversários políticos. Por exemplo, teorias da conspiração podem ser usadas para criar medo ou desconfiança em relação a grupos específicos, o que pode ser explorado para ganhos eleitorais. Políticos que dão crédito a teorias da conspiração frequentemente desconfiam de especialistas e da ciência. Isso pode levar a uma rejeição de dados científicos, como no caso das mudanças climáticas ou de pandemias, resultando em políticas que ignoram ou contradizem as melhores evidências disponíveis.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Dos marranos e da diáspora





Marrano é um termo que se refere aos judeus convertidos ao cristianismo na Península Ibérica desde os tempos dos Reis Católicos, mas acusados de criptojudaísmo. 
Especialmente entre os séculos XV e XVII, a palavra marrano foi usada extensiva e pejorativamente para designar todos os judeus convertidos e seus descendentes, carregando implicitamente a insinuação de cristianismo fingido.

A diáspora judaica, que já havia começado antes da destruição do Segundo Templo em 70 d.C., se intensificou significativamente após esse evento, marcando um ponto de inflexão na história do povo judeu. A destruição do Templo, realizada pelos romanos sob o comando do futuro imperador Tito, foi uma resposta à Grande Revolta Judaica (66-70 d.C.), e suas consequências foram profundas para a comunidade judaica. Após a queda do Império Romano do Ocidente, a Palestina continuou a ser administrada pelo Império Bizantino até à conquista muçulmana no século VII. Durante o período bizantino, a região tornou-se um importante centro cristão, antes de ser brevemente ocupada pelos sassânidas e, finalmente, incorporada ao mundo islâmico, marcando o início de uma nova era na história da Palestina.

Os sefarditas é aquela parte do povo judeu que emigrou para a Península Ibérica desde tempos imemoriais e que depois foram expulsos pelos Reis Católicos em 1492. E a partir daqui das duas uma: ou se convertiam ao catolicismo ou tinham novamente que emigrar. Por isso, também estão incluídos nesta definição os convertidos que nunca deixaram Portugal ou Espanha, muitos dos quais têm redescoberto suas raízes judaicas nas últimas décadas. Deram origem a uma das duas principais tradições judaicas de hoje, juntamente com os Ashkenazim. Os sefarditas também incluem os Mizrahis do Império Otomano, que adotaram principalmente o rito sefardita durante os seus contactos com os judeus emigrados na época da sua maior diáspora vinda da Ibéria.

Recordemos então o que foi a grande diáspora no contexto da Revolta em 70 d.C. Durante o conflito, os judeus tinham conseguido controlar Jerusalém por alguns anos. Em 70 d.C., após um longo cerco, as legiões romanas tomaram Jerusalém e destruíram o Segundo Templo, que era o centro religioso e cultural do judaísmo. A destruição marcou o fim do judaísmo centrado no Templo e no sacrifício, levando a uma transformação na prática religiosa judaica, com a sinagoga e a Torá tornando-se os novos focos da vida religiosa.

Com a destruição do Templo, muitos judeus foram mortos, e outros foram vendidos como escravos. E a grande maioria teve de abandonar a Judeia.  Alguns foram para Roma, onde foram exibidos como prisioneiros de guerra e serviram como escravos. Essa dispersão inicial espalhou ainda mais a população judaica para várias partes do Império Romano. A liderança judaica tradicional, centrada no Templo, foi severamente enfraquecida. Sobreviventes, como os fariseus, reorganizaram o judaísmo em torno do estudo da Torá e da sinagoga, um novo centro de autoridade rabínica. Mas houve uma Segunda Revolta em 132 d.C., quando o Templo já estava destruído há 60 anos. A revolta contra o domínio romano eclodiu sob a liderança de Simão Barcoquebas. Essa revolta foi inicialmente bem-sucedida, mas acabou sendo esmagada com ainda mais brutalidade pelos romanos. Após a revolta, o imperador Adriano renomeou a Judeia como "Síria Palestina" e proibiu os judeus de entrarem em Jerusalém, que foi reconstruída como uma cidade romana chamada Aelia Capitolina. Essas ações intensificaram a dispersão dos judeus e solidificaram a diáspora.

 Ao longo de toda a Alta Idade Média as comunidades judaicas se espalharam pela grande extensão que havia pertencido ao Império Romano na sua totalidade, que incluía o Império Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente. Por todo o Império Romano e até além dele, estabelecendo-se em regiões como a Babilónia (Iraque), o Egito, o norte da África, a Península Ibérica, a Gália (França) e até mesmo em partes da Índia e da China. Em alguns locais, como na Babilónia, os judeus conseguiram estabelecer prósperos centros de cultura, com academias que se tornaram famosas pela produção do Talmude Babilónico, uma das principais obras do judaísmo rabínico.

Havemos depois de falar da diáspora moderna nos séculos XIX e XX e que abarca as migrações para a América e o retorno à Palestina. Muitos judeus europeus emigraram para a América, buscando escapar das perseguições que volta e meia se agudizavam, e encontrar novas oportunidades económicas. Os Estados Unidos, em particular, se tornaram o lar de uma grande e influente comunidade judaica. No final do século XIX, com o surgimento do sionismo, houve um movimento significativo para o retorno dos judeus à Palestina. Esse movimento culminou na fundação do Estado de Israel em 1948, onde muitos judeus da diáspora migraram, especialmente após o Holocausto.

Por conseguinte, a diáspora judaica após a destruição do Templo em 70 d.C. foi um processo complexo e contínuo, marcado por expulsões, migrações, adaptações e a construção de novas comunidades em várias partes do mundo. Apesar das adversidades, os judeus conseguiram preservar a sua identidade cultural e religiosa, o que lhes permitiu sobreviver como um povo em exílio por quase dois milénios até ao estabelecimento do moderno Estado de Israel.

Quando os Visigodos se estabeleceram em Toledo e consolidaram o reino na Península Ibérica, a comunidade judaica na região já era significativa e bem estabelecida. A presença judaica na Península Ibérica remonta ao período romano, possivelmente desde o século I d.C. Durante a época do Império Romano, os judeus se espalharam por todo o império, incluindo a Hispânia (nome romano para a Península Ibérica). Eles se estabeleceram em várias cidades e vilas, formando comunidades que estavam bem integradas na vida económica e social local. Com o colapso do Império Romano do Ocidente em 476 d.C., e antes do domínio visigótico, a Península Ibérica passou a ser controlada pelo Império Bizantino em algumas áreas costeiras, onde a presença judaica também continuou a florescer.

Os Visigodos, um dos povos germânicos que invadiram o Império Romano, estabeleceram um reino na Península Ibérica no século V, com Toledo como capital. A princípio, os Visigodos eram arianos, uma forma de cristianismo considerada herética pela Igreja Católica, e eram relativamente tolerantes em relação aos judeus. Em 589 d.C., sob o rei Recaredo I, os Visigodos converteram-se ao catolicismo. A partir dessa conversão, a atitude em relação aos judeus começou a mudar, influenciada pela Igreja Católica, que via os judeus com crescente desconfiança e hostilidade. Ao longo dos séculos VI e VII, os reis visigodos, sob pressão da Igreja, começaram a implementar leis cada vez mais restritivas e discriminatórias contra os judeus. Essas leis incluíam a proibição de casamentos entre judeus e cristãos, a conversão forçada ao cristianismo, e a exclusão dos judeus de certas profissões. No entanto, apesar da perseguição oficial, as comunidades judaicas continuaram a resistir, embora muitas vezes em condições difíceis.

 Apesar das restrições, os judeus desempenhavam um papel importante na economia, especialmente no comércio, artesanato e na agricultura. Em algumas áreas, eles também tinham um impacto cultural significativo, preservando o conhecimento da literatura hebraica e, mais tarde, contribuindo para o florescimento da cultura judaica na Península Ibérica. Muitas comunidades judaicas resistiram às pressões de conversão e mantiveram suas tradições e práticas religiosas. Houve também períodos de maior tolerância, dependendo do rei no poder e das circunstâncias políticas. Mesmo após a conversão ao cristianismo, os judeus frequentemente continuaram a enfrentar preconceito e discriminação, uma realidade que ilustra a profundidade do antissemitismo enraizado na sociedade cristã medieval.

Em 711 d.C., os muçulmanos, liderados por Tariq ibn Ziyad, invadiram a Península Ibérica e rapidamente derrotaram o Reino Visigótico. A conquista islâmica trouxe um período de maior tolerância e florescimento para as comunidades judaicas, que muitas vezes recebiam melhor tratamento sob domínio muçulmano em comparação com o que haviam experimentado sob os Visigodos.

A relação entre as três religiões do Livro


Nos primeiros séculos do Islão, as relações entre as três religiões do livro tornaram-se ainda mais complexas do que até aí entre cristãos e judeus. Muitos territórios que eram do domínio do Império Romano do Oriente, cuja religião oficial era o cristianismo ortodoxo ou bizantino, passaram para as mãos dos muçulmanos, de religião islâmica. Povo do Livro, dhimmis em expressão muçulmana, era o que concedia a cristãos e judeus uma certa proteção, ainda que tivessem que pagar um imposto especial chamado jizya. Apesar de serem cidadãos de segunda classe, os judeus agora em terra de muçulmanos desfrutavam de um grau de liberdade religiosa e económica maior do que os judeus da Europa Ocidental cristã da mesma época. Inclusivamente na Península Ibérica, quando se tornou quase toda islâmica - Al-Andalus - a cultura judaica floresceu. Aliás, o mesmo se passara na Bagdade dos abássidas. No entanto, a relação entre muçulmanos e judeus acabou por azedar. Passou a haver momentos de tensão, especialmente quando emergiu o tempo das Cruzadas.

Enquanto o antissemitismo na Europa cristã teve uma base fortemente teológica e se traduziu em perseguições violentas e segregação social, no mundo islâmico, a discriminação em relação aos judeus foi geralmente mais ligada ao estatuto de dhimmi, com regras de convivência específicas, mas menos brutal do que na Europa. A perceção de que "os islâmicos foram pelo mesmo caminho dos cristãos em relação aos judeus" pode estar relacionada ao recrudescimento das tensões entre muçulmanos e judeus no século XX, especialmente no contexto do conflito na Palestina, que tem raízes políticas, territoriais e identitárias profundas.

A Inquisição em relação aos chamados "cristãos-novos", sobretudo em Portugal, é uma página negra na história. Os cristãos-novos eram judeus convertidos ao cristianismo, muitas vezes à força, durante o final do século XV e início do século XVI, especialmente após a expulsão dos judeus da Espanha em 1492, e a conversão forçada em Portugal em 1497. No final do século XV, Portugal, como outros países europeus, estava sob forte influência da Igreja Católica, que buscava eliminar qualquer heresia dentro de suas fronteiras. Com a expulsão dos judeus da Espanha pelos Reis Católicos em 1492, muitos judeus se refugiaram em Portugal, onde inicialmente encontraram relativa segurança. No entanto, em 1496, o rei Manuel I de Portugal, sob pressão de Isabel de Castela, assinou um decreto que ordenava a expulsão dos judeus que se recusassem a conversão ao cristianismo.

Os cristãos para se desculparem apontavam a teimosia dos judeus em recusarem reconhecer a natureza divina de Jesus Cristo, o Messias. Durante a Idade Média, e até aos tempos modernos, essa era a narrativa com que muitos cristãos justificavam a hostilidade e a perseguição contra os judeus. Esse argumento foi um dos principais pretextos para o antissemitismo cristão e desempenhou um papel significativo na forma como os judeus foram tratados. Na teologia cristã medieval, a crença central era que Jesus era o Messias prometido e a encarnação de Deus. Para os cristãos, a aceitação de Jesus como Salvador e Messias era fundamental para a salvação. A recusa dos judeus em aceitar essa crença era vista não apenas como um erro religioso, mas como uma rejeição direta da verdade divina.

Os judeus eram frequentemente acusados de incredulidade e de ser obstinados por não reconhecer a divindade de Cristo. Esse era o argumento frequentemente utilizado para legitimar as políticas de discriminação e violência contra os judeus, assim como a expulsão e a conversão forçada. Como resultado, muitos judeus foram forçados a se converter ao cristianismo, tornando-se os chamados "cristãos-novos". Apesar da conversão, muitos desses cristãos-novos continuaram a praticar secretamente o judaísmo, o que os tornava alvos fáceis para a Inquisição. O alvo do tribunal da Inquisição eram os hereges, neste caso os falsos cristãos-novos que praticavam o judaísmo em segredo, o criptojudaísmo.

A Inquisição acabou por se estender também aos muçulmanos convertidos ao cristianismo, que eram dados pelo nome de mouriscos. Enfrentaram discriminação e segregação. Apesar de se converterem ao cristianismo, muitos foram vistos com desconfiança, e suas práticas muçulmanas anteriores foram usadas para justificar a segregação e a perseguição. A ideia de que a origem étnica poderia influenciar o comportamento religioso e moral persistiu. Isso era o que ainda hoje é referido na linguagem comum, que está muito para lá da questão meramente religiosa, por antissemitismo em relação aos judeus, e islamofobia em relação aos muçulmanos. Esta confusão entre religião e etnia resultou na estigmatização dos conversos como diferentes ou impuros, independentemente de sua conformidade com a nova religião. Isso perpetuou a exclusão social e a marginalização remetendo-os para o modo de viver em ghettos.

Durante mais de dois séculos, a Inquisição portuguesa perseguiu, prendeu, torturou e executou milhares de pessoas acusadas de heresia. Os cristãos-novos foram frequentemente alvo de denúncias, muitas vezes motivadas por inveja, vingança pessoal ou interesses económicos. Eles eram submetidos a julgamentos injustos, torturas e, em muitos casos, condenados à morte na fogueira durante os autos-de-fé, que eram cerimónias públicas como método de execução das sentenças judiciais. A Inquisição teve um impacto devastador na sociedade portuguesa. Muitos cristãos-novos fugiram do país para escapar da perseguição, levando consigo toda a sua inteligência e conhecimentos especializados, que se estendiam dede a arte de negociar até às várias disciplinas da ciência em que avultava, por exemplo, a medicina. Aqueles que permaneceram viviam sob constante medo e suspeita, e a atmosfera de paranoia e repressão sufocou o progresso intelectual e cultural do país. Além disso, a Inquisição alimentou um profundo antissemitismo em Portugal, cujas repercussões ainda podem ser sentidas em algumas partes da sociedade. A desconfiança e o estigma contra os cristãos-novos deixaram cicatrizes duradouras na identidade nacional e nas relações comunitárias.

Hoje, a Inquisição é amplamente reconhecida como uma das mais brutais manifestações de intolerância religiosa e fanatismo na história europeia. Em Portugal, o legado da Inquisição é uma lembrança dolorosa da intolerância e da perseguição em nome da fé. O ódio religioso dos cristãos aos judeus acabou por se transformar em étnico. Na evolução das atitudes antissemitas ao longo da história, passou-se de um antissemitismo predominantemente religioso para um antissemitismo mais étnico e racial. Durante a Idade Média e o início da Modernidade, o antissemitismo era amplamente baseado em questões religiosas. Os judeus eram frequentemente perseguidos e discriminados devido às suas crenças que eram vistas como heréticas ou contrárias ao cristianismo. Isso se manifestava em acusações como a de serem responsáveis pela morte de Jesus, um elemento central da teologia cristã medieval. A partir do final do século XVIII e ao longo do século XIX, o antissemitismo começou a se transformar, passando de uma base estritamente religiosa para uma base étnica e racial.

Com o avanço do racionalismo e das ciências sociais, surgiu a ideia de que as diferenças entre grupos humanos poderiam ser explicadas através de conceitos de raça e etnicidade. Esse pensamento pseudocientífico levou à crença de que os judeus eram inerentemente diferentes e inferiores, não apenas em termos de religião, mas também de “raça”. O crescimento dos movimentos nacionalistas na Europa também influenciou o antissemitismo. Com o nacionalismo, a identidade nacional e étnica tornou-se um aspeto crucial da coesão social. Os judeus, frequentemente vistos como uma “nação” ou grupo distinto dentro de outros países, foram associados a uma ideia de “não pertencimento” ou alienação.

No século XIX e início do século XX, o antissemitismo étnico e racial começou a se manifestar de forma mais explícita e sistemática. Em muitos países europeus, a ideia de que os judeus eram uma ameaça à pureza racial e cultural tornou-se predominante. Essa forma de antissemitismo encontrou expressão em políticas e ideologias que afirmavam a superioridade de certas “raças” e buscavam a segregação ou eliminação dos judeus. Essa transformação teve a sua máxima expressão no regime nazi da Alemanha, que levou o antissemitismo étnico e racial ao extremo. O Holocausto, que visou o extermínio sistemático dos judeus europeus, foi fundamentado na ideia de que os judeus eram uma ameaça racial existencial e inferior. O antissemitismo dos nazis foi baseado em pseudociência racial, propaganda e uma ideologia de pureza racial. Um dos genocídios mais horrendos da história. O legado do antissemitismo étnico continua a influenciar a maneira como o preconceito e a discriminação contra os judeus ainda se manifesta nos dias de hoje. Muitos esforços têm sido feitos para corrigir essas injustiças históricas através da promoção do diálogo inter-religioso. 

As ondas migratórias do Próximo Oriente a partir do século XII a.C.


Na Idade do Bronze (aproximadamente 3300-1200 a.C.), houve várias migrações e invasões de povos nómadas da estepe eurasiática, que eram frequentemente associados ao uso de cavalos domesticados e carros de guerra. Esses povos são frequentemente identificados como indo-europeus. Os nómadas das estepes trouxeram inovações militares significativas, como o uso do cavalo domesticado para mobilidade rápida e o desenvolvimento do carro de guerra, que revolucionou as táticas militares. Os carros de guerra, leves e rápidos, puxados por cavalos, deram a esses povos uma vantagem significativa em batalha contra as sociedades sedentárias da Mesopotâmia, que até então se baseavam em infantaria e fortificações estáticas.

Há razões para acreditar que as causas das ondas migratórias anárquicas na zona do Mediterrâneo Oriental, no século XII a.C., se deveram a cataclismos naturais. Esse período é conhecido por ter sido uma época de grande instabilidade, marcada pelo colapso de várias civilizações na região, incluindo os impérios micénico, hitita, e a civilização egípcia, bem como a chegada dos chamados "Povos do Mar". Evidências sugerem que houve um período de secas severas no Mediterrâneo Oriental durante o final da Idade do Bronze. Essas secas teriam afetado gravemente a agricultura, levando à fome, colapso económico e deslocamentos populacionais em massa. A região é sismicamente ativa, e há indícios de que uma série de terramotos destrutivos tenha ocorrido por volta dessa época. Esses terramotos teriam causado destruição em larga escala de cidades, como Micenas e Tirinto, cujas ruínas ainda hoje nos mostram a dimensão do colapso de estruturas que eram bem sólidas. Há especulações de que erupções vulcânicas, como a de Santorini (embora esta tenha ocorrido antes, por volta de 1600 a.C.), poderiam ter efeitos de longo prazo, alterando o clima e causando tsunamis, que também contribuíram para o colapso de civilizações costeiras. Esses fatores naturais, combinados com as tensões sociais, invasões e outros conflitos, teriam criado uma situação em que grandes populações foram deslocadas, resultando nas ondas migratórias conhecidas como "Povos do Mar", que contribuíram para o colapso da Idade do Bronze no Mediterrâneo Oriental. Assim, embora não seja possível afirmar que cataclismos naturais foram a única causa, eles certamente desempenharam um papel significativo no desencadeamento dessas migrações.

Não há evidências diretas que confirmem que os hebreus se juntaram aos Povos do Mar, mas há algumas teorias e interpretações que sugerem possíveis interações entre eles ou paralelismos em seus movimentos. Os Povos do Mar eram um conjunto de grupos étnicos diversos que, durante o final do século XIII e o século XII a.C., realizaram migrações e invasões na região do Mediterrâneo Oriental, atacando e contribuindo para o colapso de várias civilizações. Entre os mais conhecidos estão os filisteus, os aqueus, os sicelianos, os shardana, entre outros. Os hebreus, por outro lado, têm uma trajetória distinta. Segundo a tradição bíblica, eles estavam em processo de formação de uma identidade nacional própria durante esse período, associado ao Êxodo do Egito e à subsequente conquista e estabelecimento na terra de Canaã. Isso coincide cronologicamente com o final da Idade do Bronze e o início da Idade do Ferro, a mesma época em que os Povos do Mar estavam ativos.

As sociedades agrícolas da Mesopotâmia, que eram bastante desenvolvidas em termos de urbanização, escrita, e organização estatal, enfrentaram desafios militares e culturais com a chegada desses nómadas. As invasões e migrações podem ter causado a destruição ou enfraquecimento de algumas cidades estado, mas também forçaram essas sociedades a adotar novas tecnologias e estratégias militares. Com o tempo, alguns dos invasores nómadas se estabeleceram e se integraram às culturas locais, resultando numa fusão de práticas culturais e tecnológicas. Por exemplo, os Cassitas, que eram um povo originário da região montanhosa a leste da Mesopotâmia, acabaram dominando a Babilónia por vários séculos e adotaram muitos aspetos da cultura mesopotâmica. Um dos povos que exemplificam essa dinâmica foram os Hititas, que vieram das regiões próximas da Anatólia e introduziram o carro de guerra no Próximo Oriente. Eles se estabeleceram e criaram um império que se tornou uma das grandes potências da Idade do Bronze. Outro exemplo são os Hurritas, que formaram o Reino de Mitani, uma força dominante no norte da Mesopotâmia e na Síria durante a Idade do Bronze. Eles eram conhecidos por suas habilidades com cavalos e carros de guerra.

Esse choque de culturas teve um impacto profundo na evolução das sociedades do Próximo Oriente, promovendo tanto conflitos quanto trocas culturais que moldaram o desenvolvimento da civilização na região. A introdução do carro de guerra e a domesticação do cavalo tiveram consequências de longo prazo para a guerra e o poder na região, afetando a dinâmica entre nómadas e povos sedentários durante séculos.

Um grupo dos Povos do Mar, os filisteus, se estabeleceu na costa de Canaã, formando as cidades estado filisteias. Os hebreus, conforme descrito na Bíblia, entraram em conflito frequente com os filisteus durante o período dos Juízes e do início da monarquia israelita (séculos XII-X a.C.). Alguns estudiosos sugerem que a interação entre os hebreus e os Povos do Mar, particularmente os filisteus, pode ter levado a influências culturais mútuas, mas também desavenças militares entre os dois grupos. Apesar das interações e dos conflitos, os movimentos dos hebreus e dos Povos do Mar parecem ter sido distintos. Os hebreus, conforme a narrativa bíblica, estavam mais focados na consolidação de um território específico (Canaã), enquanto os Povos do Mar estavam envolvidos em ataques e migrações mais amplos em todo o Mediterrâneo Oriental. Portanto, não há evidências que sustentem que os hebreus fizeram parte dos Povos do Mar, mas certamente houve interações entre eles, especialmente no contexto dos conflitos entre hebreus e filisteus.

Em que data aparece Zoroastro a afirmar que Aura Mazda o encarregara de repor a ordem nas estepes. A figura de Zoroastro (ou Zaratustra), o profeta fundador do zoroastrismo, é envolta em certo mistério, e a datação de sua vida e da sua missão é ainda objeto de debate entre os estudiosos. Não há uma data exata e universalmente aceita para quando Zoroastro teria vivido e começado a pregar a mensagem de Ahura Mazda, o deus supremo do zoroastrismo. Estudos modernos, com base em evidências linguísticas e culturais, geralmente situam Zoroastro em algum momento entre 1500 e 1000 a.C., com algumas estimativas mais restritas apontando para cerca de 1200 a.C. Esta datação é baseada em comparações com outras línguas indo-europeias e na análise dos textos mais antigos do Zoroastrismo, os Gathas, que fazem parte do Avesta, o livro sagrado do Zoroastrismo.

Zoroastro teria vivido em uma região que poderia estar localizada no Leste do atual Irão ou possivelmente na Ásia Central, talvez no que é hoje o Turcomenistão, Afeganistão ou nas regiões fronteiriças. Ele teria pregado durante um período em que a sociedade era dominada por uma classe guerreira e nómada, que praticava o politeísmo. Segundo a tradição, Zoroastro recebeu uma revelação de Aura Mazda, o deus do bem e da sabedoria, que lhe incumbiu de restaurar a ordem (Asha) e combater as forças do caos e da mentira (Druj) que dominavam as estepes. Sua mensagem monoteísta e ética representava uma rutura significativa com as práticas religiosas anteriores.

Há quem diga que os conflitos que se travaram entre hebreus e filisteus ainda se reproduzem nos dias de hoje entre judeus e palestinos. A ideia de que os conflitos entre hebreus e filisteus na antiguidade se reproduzem nos dias de hoje entre judeus e palestinos é uma comparação frequentemente mencionada, mas é uma simplificação histórica que ignora a complexidade dos contextos e das identidades envolvidas. Durante a Idade do Ferro (cerca de 1200-1000 a.C.), os hebreus e filisteus eram grupos que habitavam a região de Canaã. Os filisteus, um dos povos do mar, se estabeleceram principalmente na costa, em cidades como Gaza, Asdode e Ascalom. A Bíblia narra numerosos conflitos entre os hebreus, que estavam a estabelecer-se no interior da região, e os filisteus, muitas vezes retratados como inimigos poderosos. Com o tempo, os filisteus foram assimilados ou desapareceram como grupo distinto devido a conquistas e mudanças culturais, especialmente após o avanço dos impérios assírio e babilónio.

Por volta de 1200 a.C., a civilização micénica, que dominava a Grécia continental, entrou em colapso abrupto. As causas exatas ainda são debatidas, mas podem incluir invasões de povos externos, conflitos internos, catástrofes naturais (como terramotos) e colapso económico. Após o colapso, as cidades estado micénicas foram abandonadas ou drasticamente reduzidas. O período subsequente, até cerca de 900 a.C., é marcado por uma redução drástica na produção cultural e material. Há uma diminuição significativa na construção de grandes edifícios, no comércio e na produção artística. Durante este período, os gregos também perderam a habilidade de escrever, resultando em uma lacuna documental. Gradualmente, uma nova civilização começou a emergir na Grécia, culminando na chamada Idade Arcaica (cerca de 800-500 a.C.). Essa civilização é caracterizada pelo ressurgimento da escrita (com a introdução do alfabeto grego), pela fundação das primeiras cidades estado (pólis) e pelo desenvolvimento da cultura e religião gregas que influenciaram profundamente o Ocidente.

De acordo com a tradição bíblica, após o Êxodo do Egito, os hebreus, liderados por figuras como Josué, conquistaram a terra de Canaã e começaram a se estabelecer nas terras altas, formando pequenas comunidades agrícolas. A arqueologia sugere que, em vez de uma conquista massiva, houve um processo gradual de ocupação e crescimento demográfico nas terras altas durante o final da Idade do Bronze e o início da Idade do Ferro. O período dos Juízes (aproximadamente 1200-1000 a.C.) é descrito como uma época em que as tribos de Israel eram independentes, mas se uniam em momentos de crise sob líderes carismáticos chamados juízes. Esta estrutura política é frequentemente referida como a Confederação de Tribos, uma fase anterior à formação do reino unificado sob Saul, David e Salomão. Durante esse período, as tribos israelitas desenvolveram uma identidade distinta, influenciada tanto pelas tradições cananeias quanto pelas experiências no deserto e a interação com outros povos, como os filisteus.

A falta de evidências escritas contemporâneas e a escassez de material arqueológico tornam esse período difícil de estudar. Muitas das informações disponíveis vêm de fontes posteriores, como a Bíblia Hebraica, que, embora rica em detalhes, foi compilada e redigida séculos depois dos eventos descritos. A natureza fragmentária das evidências resulta em interpretações divergentes entre os estudiosos. Alguns defendem a historicidade geral dos relatos bíblicos, enquanto outros sugerem que o processo de formação de Israel foi mais gradual e complexo do que descrito nos textos religiosos.

Na estela da vitória do faraó Mernepteh (c.1210) há a primeira menção não bíblica ao povo de Israel. A Estela de Merneptá (ou "Estela de Israel") é conhecida por conter a primeira menção não bíblica ao povo de Israel. Esta estela, datada por volta de 1210 a.C., foi erguida pelo faraó Merneptá, que governou o Egito de 1213 a 1203 a.C., e comemora suas vitórias militares na região de Canaã. A estela, escrita em hieróglifos, é principalmente um relato das campanhas militares de Merneptá, incluindo suas vitórias sobre diversos povos e cidades em Canaã e Líbia. Ela menciona várias entidades políticas e geográficas da região, como Ashkelon, Gezer, Yanoam, e Israel. Esta é a referência mais antiga fora da Bíblia ao nome "Israel", e oferece uma visão crucial sobre a presença dos israelitas em Canaã no final da Idade do Bronze. A estela sugere que, naquela época, Israel já era reconhecido como uma entidade distinta, provavelmente formada por tribos semi-nómadas nas terras altas de Canaã. A estela é uma peça de propaganda política e religiosa egípcia, exaltando as vitórias do faraó. A menção a Israel como devastado pode refletir uma campanha militar bem-sucedida de Merneptá contra as tribos nas terras altas, embora não haja outros registros detalhados sobre essa campanha.

Em 1130 a.C., os portos cananeus de Ugarit, Megido e Hazor já estavam devastados, mas a destruição dessas cidades não foi necessariamente causada por eventos naturais, embora catástrofes naturais possam ter contribuído para o colapso geral da região durante o final da Idade do Bronze. Ugarit, uma importante cidade portuária na costa da atual Síria, foi destruída por volta de 1190 a.C. Existem várias teorias sobre as causas da sua queda. A cidade foi incendiada e abandonada, e há evidências de que foi atacada por invasores, possivelmente os Povos do Mar. A destruição de Ugarit foi abrupta e está associada ao colapso geral da civilização da Idade do Bronze no Mediterrâneo Oriental.

Megido, localizada no vale de Jezreel, foi uma cidade fortificada crucial na antiga Canaã. Ela experimentou várias destruições e reconstruções ao longo dos séculos. Embora tenha sofrido destruição por volta do século XII a.C., acredita-se que as causas principais estejam relacionadas a conflitos militares, possivelmente envolvendo os Povos do Mar ou os egípcios. Não há evidências concretas de que causas naturais tenham sido a principal razão para a devastação de Megido nesse período. Hazor, uma das maiores e mais importantes cidades cananeias, também foi destruída por volta do século XIII a.C. A arqueologia sugere que Hazor foi devastada por um incêndio, e as ruínas mostram sinais de destruição violenta. A destruição de Hazor é frequentemente atribuída a conflitos militares, incluindo possivelmente campanhas israelitas conforme narrado na Bíblia, mas não há uma ligação direta com catástrofes naturais.

Os filisteus da antiguidade e os palestinos modernos não têm uma continuidade étnica ou cultural direta. Os palestinos de hoje são descendentes de diversas populações que habitaram a região ao longo dos séculos, incluindo cananeus, arameus, árabes, e outros grupos que se estabeleceram na Palestina durante o domínio romano, bizantino, islâmico, otomano, entre outros. Os conflitos entre judeus e palestinos na era moderna têm raízes no nacionalismo, colonialismo, e na disputa por terras e autodeterminação, especialmente a partir do século XX. A criação do Estado de Israel em 1948 e o deslocamento de grandes números de árabes palestinos, além de conflitos subsequentes, moldaram o cenário atual. Esses conflitos são influenciados por questões políticas, religiosas, e territoriais contemporâneas, distintas das guerras tribais da antiguidade.

A comparação entre os antigos conflitos entre hebreus e filisteus e o moderno conflito muitas vezes serve como uma metáfora ou analogia simplificada. Para alguns, essa comparação pode reforçar a ideia de uma rivalidade ancestral, mas isso ignora as complexidades e as mudanças significativas ao longo da história. Essa analogia às vezes é usada em discursos políticos ou religiosos para justificar posições ou alimentar certas narrativas, mas é importante reconhecer que ela não reflete a realidade histórica. Em resumo, embora existam paralelismos em termos de localização geográfica e a ideia de conflito por território, a situação moderna entre judeus e palestinos é muito mais complexa e não pode ser diretamente comparada aos conflitos entre hebreus e filisteus na antiguidade. A analogia tende a simplificar e distorcer as realidades históricas e políticas envolvidas.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Cristianismo e Islamismo - duas religiões de sucesso na multietnicidade



A ideia de uma cristandade unida ajudou a criar uma identidade comum entre os povos europeus, substituindo a identidade romana. A multietnicidade tem sido mais a regra do que a exceção na organização dos povos ao longo da história. A convivência de diferentes grupos étnicos em um mesmo território é um fenómeno histórico comum, resultante de várias dinâmicas, incluindo migrações, comércio, guerras, casamentos interétnicos e a formação de impérios e estados multinacionais. O sucesso do cristianismo é um fenómeno difícil de explicar na medida em que uma seita do povo judeu não era vista como fazendo parte de uma tradição antiga com raízes históricas. É um fenómeno intrigante, considerando as origens como uma seita dentro do judaísmo. No entanto, vários fatores contribuíram para a sua rápida expansão e aceitação, apesar de não ser inicialmente vista como parte de uma tradição antiga com raízes históricas profundas.

Diferentemente de muitas religiões antigas, o cristianismo apresentava uma mensagem universalista, oferecendo salvação e esperança a todos, independentemente da sua origem étnica ou classe social. Isso atraiu uma ampla gama de pessoas, que começou por predominar nos escravos, mas depois estendeu-se às elites. O Império Romano, que tinha uma fabulosa rede que facilitava as viagens, quer por terra, quer por mar, facilitou a disseminação das ideias cristãs. Os apóstolos, especialmente Paulo, puderam viajar extensivamente e espalhar a mensagem de Jesus. As primeiras comunidades cristãs estabeleceram redes eficazes de comunicação e apoio mútuo, o que ajudou a fortalecer e expandir o movimento.

Paradoxalmente, as perseguições ajudaram a fortalecer a fé dos cristãos e a divulgar a sua causa. Os mártires eram vistos como exemplos de fé e coragem, inspirando outros a se juntarem à religião. O cristianismo mostrou uma capacidade notável de se adaptar a diferentes culturas e contextos. À medida que se expandia, integrava elementos das culturas locais, tornando-se mais acessível e atraente para diversos povos. A conversão do imperador Constantino e o subsequente Édito de Milão em 313 d.C., que concedeu liberdade religiosa aos cristãos, foram pontos de viragem significativos. Com o apoio imperial, o cristianismo deixou de ser uma seita perseguida para se tornar a religião dominante do Império Romano. De um modo diferente do islamismo, esses fatores, entre outros, contribuíram para que o cristianismo, tendo começado como um movimento marginal, se tenha transformado numa das religiões mais influentes do mundo. 

Impérios antigos, como o Romano, o Otomano e o Persa, são exemplos clássicos de entidades políticas que incluíam uma grande diversidade étnica. Esses impérios administravam vastos territórios habitados por povos com diferentes línguas, religiões e culturas. A multietnicidade também era evidente em cidades comerciais ao longo das rotas da seda, onde mercadores e viajantes de diversas origens se encontravam. Mesmo em tempos modernos, muitos países são caracterizados pela diversidade étnica. Estados Unidos, Brasil, Índia e a maioria dos países africanos possuem populações etnicamente diversas. A globalização e a migração contemporânea continuam a moldar e aumentar essa diversidade.

Portanto, a multietnicidade tem sido uma característica persistente e generalizada nas sociedades humanas ao longo da história, desafiando a ideia de que os grupos étnicos vivem isoladamente. Na Europa, o cristianismo foi o cimento que serviu para unir e desvalorizar a relevância dos preconceitos entre os grupos étnicos. O cristianismo desempenhou um papel significativo na Europa como uma força unificadora, ajudando a criar uma identidade comum entre diversos grupos étnicos. Desde a sua adoção oficial pelo Império Romano no século IV, o cristianismo tornou-se a religião dominante na Europa, influenciando profundamente a cultura, a política e as relações sociais.

O latim, como a língua da Igreja e da educação, facilitou a comunicação e a troca de ideias entre diferentes regiões. A Igreja Católica Romana e mais tarde as Igrejas Ortodoxa e Protestante estabeleceram uma rede de instituições (igrejas, mosteiros, universidades) que promoveu uma identidade cristã comum. Os ensinamentos cristãos influenciaram as leis e os códigos morais, promovendo a justiça, a caridade e a coesão social. Reis e imperadores muitas vezes justificavam o seu poder através da religião, como o conceito de "direito divino dos reis".

O cristianismo pregava a igualdade de todos perante Deus, o que ajudava a atenuar preconceitos baseados na etnia. O esforço missionário para converter diferentes povos ao cristianismo ajudou a integrar diversas etnias na comunidade cristã. No entanto, é importante notar que, apesar desses aspetos unificadores, o cristianismo também foi, por vezes, fonte de divisão e conflito. Diferenças teológicas levaram a cismas, como a separação entre a Igreja Católica e a Ortodoxa em 1054, e a Reforma Protestante no século XVI. Além disso, preconceitos étnicos e religiosos não desapareceram completamente e frequentemente foram reconfigurados em novas formas de discriminação, como a hostilidade contra judeus e muçulmanos.

A Igreja Católica Romana continuou a usar o latim como língua litúrgica e administrativa, promovendo uma continuidade cultural que transcendeu a fragmentação política do império. Muitos símbolos e tradições romanas foram incorporados ao cristianismo, criando uma continuidade simbólica e cultural. A estrutura hierárquica da Igreja Católica, com o Papa em Roma como autoridade suprema, espelhava a antiga centralização administrativa do Império Romano. As dioceses da Igreja muitas vezes coincidiam com as antigas divisões administrativas romanas, proporcionando uma continuidade geográfica e administrativa. As peregrinações a lugares santos e os concílios ecumênicos ajudaram a manter uma comunicação e interação entre diferentes regiões.

Apesar de seu papel unificador, o cristianismo não conseguiu evitar completamente a fragmentação política da Europa. As invasões bárbaras, as divisões internas na Igreja (como o Grande Cisma de 1054 e a Reforma Protestante) e as rivalidades entre os reinos medievais frequentemente resultaram em conflitos e divisões. O cristianismo romano desempenhou um papel crucial na substituição da unidade política e cultural do Império Romano, oferecendo uma nova forma de coesão baseada na religião, cultura e organização eclesiástica. No entanto, essa unidade foi frequentemente desafiada por fatores políticos, sociais e religiosos ao longo da história.

O islamismo também teve uma expansão fulgurante, mas deveu-se à ideologia de conquista pela via militar. A expansão do islamismo, que também foi rápida e impressionante, teve sim um componente militar significativo, especialmente durante os primeiros séculos. No entanto, atribuir o seu sucesso exclusivamente à conquista militar seria uma simplificação excessiva. Vários fatores contribuíram para a disseminação do islamismo. Maomé conseguiu unificar as tribos árabes sob a bandeira do islamismo, criando uma comunidade coesa e motivada. Essa unificação proporcionou uma base sólida para a expansão inicial. As campanhas militares certamente desempenharam um papel importante. Após a morte de Maomé, os califas lançaram uma série de campanhas que resultaram na rápida expansão do território islâmico, abrangendo vastas áreas da Península Arábica, Norte da África, Península Ibérica e Médio Oriente. Em relação aos povos conquistados os árabes islâmicos muitas vezes adotaram políticas relativamente tolerantes. Cristãos, que já era o que mais havia, bem como judeus, eram considerados professarem um tipo de religião que tinha um Livro. E com esse estatuto de dhimmi, permitia-lhes praticar a religião em troca de um imposto - jizya. Essa tolerância relativa ajudou a prevenir rebeliões e facilitou a assimilação.

A estrutura administrativa e o sistema legal do islamismo, baseados na Sharia, proporcionaram um modelo de administração política que era eficiente e, em muitos casos, mais justo do que os sistemas anteriores. Isso aumentou a aceitação do novo poder político entre as populações conquistadas. A localização estratégica do mundo islâmico, na encruzilhada das rotas comerciais entre Europa, Ásia e África, facilitou não apenas o comércio, mas também a disseminação de ideias. Os comerciantes muçulmanos desempenharam um papel crucial na disseminação do islamismo em regiões distantes, como a África Subsaariana, Índia e Sudeste Asiático.

O islamismo também se destacou por sua florescente cultura e conhecimento. Durante a Idade de Ouro Islâmica, o mundo islâmico tornou-se um centro de cultura e inovação científica, atraindo estudiosos e intelectuais de várias partes do mundo. Esse desenvolvimento cultural e científico ajudou a consolidar a influência islâmica. Muitas conversões ao islamismo foram voluntárias, motivadas pela atração dos princípios religiosos, sociais e económicos do Islão. A igualdade e a justiça social promovidas pelo islamismo atraíram muitas pessoas que viviam em sociedades altamente estratificadas.

A combinação de fatores militares, administrativos, económicos, culturais e religiosos ajudou a garantir a duradoura influência do islamismo num tão vasto espaço geográfico e de povos. Começando em 632, já em 750 se estendia desde quase toda a Península Ibérica, a ocidente, até Cabul e Samarcanda a oriente. A expansão do Islão entre 632 e 750 é um exemplo notável de rápida disseminação religiosa e territorial. A seguir se elencam alguns dos principais eventos e fatores que explicam como essa expansão aconteceu. A unificação que se desenvolve no califado de Rashidun, começa com o califa Abu Bakr após a morte de Maomé. As suas campanhas consolidaram o controlo sobre a Península Arábica. Depois seguiu-se-lhe Umar ibn al-Khattab (634-644). Sob seu califado, os muçulmanos conquistaram grandes partes do Império Bizantino e do Império Sassânida. Tomaram Damasco (636), Jerusalém (638), e outras cidades importantes. Uthman ibn Affan (644-656) e Ali ibn Abi Talib (656-661) continuaram a expansão e a consolidação do território islâmico.

De 661 até 750 o califado prosseguiu com a dinastia Omíada. Muawiya I (661-680) foi o fundador da dinastia Omíada. Estabeleceu Damasco como a capital, centralizando o poder e promovendo a administração eficaz. E deu-se então a Expansão na África do Norte e Península Ibérica. A partir de 647, os muçulmanos avançaram pelo Norte da África, completando a conquista em 710. E em 711, liderados por Tariq ibn Ziyad, os muçulmanos atravessaram o Estreito de Gibraltar e derrotaram os visigodos na Batalha de Guadalete, estabelecendo o Al-Andalus.