domingo, 18 de agosto de 2024

Como vai a Democracia quando a organização tribal ainda se sobrepõe com significado em alguns Estados?


A predominância da forma tribal na organização social e política, que ainda se exerce em países como o Afeganistão, a Arábia Saudita ou o Irão, pode ser explicada por uma combinação de fatores históricos, culturais, geográficos e políticos. As estruturas tribais nesses países remontam a milhares de anos, muito antes da formação de Estados modernos. As tribos funcionavam como as unidades básicas de organização social, responsáveis por segurança, justiça e bem-estar dos membros. A identidade tribal é uma parte integral da cultura e da história desses povos. A lealdade ao clã ou à tribo muitas vezes supera a lealdade ao Estado, já que a tribo é vista como a provedora imediata de proteção e apoio.

Muitas dessas regiões são caracterizadas por geografias difíceis, como montanhas e desertos, que dificultam a administração centralizada e favorecem a autonomia local das tribos. O isolamento geográfico das tribos em áreas rurais ou remotas reforça a autossuficiência e a necessidade de estruturas de governo próprias. A incapacidade de estabelecer um governo central forte faz com que as tribos mantenham a sua influência. Conflitos prolongados, tanto internos como externos - guerras civis e intervenções estrangeiras - têm enfraquecido ainda mais as tentativas de centralizar o poder, deixando espaço para que as estruturas tribais se perpetuem.

Em alguns casos, como na Arábia Saudita, o Estado central apoia-se nas tribos para manter a ordem e legitimidade. A monarquia saudita, por exemplo, mantém alianças com líderes tribais, integrando-os na estrutura de poder como forma de controlo político. A corrupção, ineficiência e alienação do governo central contribuem para que as populações locais confiem mais nas estruturas tradicionais. Em muitos desses países, as leis e normas tribais (muitas vezes ligadas à interpretação local da lei islâmica) são mais respeitadas e praticadas do que as leis do Estado. Isso reforça a importância das tribos como instituições sociais e jurídicas.

A China, em que a democracia também não é apelativa, em contrapartida é um exemplo com tradição de governos fortes e centralizados. As raízes, numa história milenar de impérios, estão profundamente mergulhadas num forte poder central. Essa centralização do poder é uma característica marcante da civilização chinesa e pode ser explicada por vários fatores históricos, culturais e geográficos. A história da China é marcada por dinastias poderosas, como a Dinastia Qin (221-206 a.C.), que unificou a China pela primeira vez e estabeleceu um governo central forte. Ao longo dos séculos, outras dinastias - Han, Tang, Song e Ming - mantiveram e reforçaram essa centralização. A filosofia confucionista, que influenciou profundamente a política chinesa, enfatiza a importância da hierarquia, ordem social e autoridade centralizada. O Estado é visto como uma extensão da família, com o governante (o "Filho do Céu") no topo da pirâmide, garantindo a harmonia e estabilidade social.

Desde a Dinastia Han, a China desenvolveu um sistema de exames imperiais para selecionar burocratas mais com base no mérito do que no nascimento. Isso ajudou a criar uma classe de funcionários leais ao Estado central, capaz de administrar vastos territórios de maneira eficiente. A centralização foi facilitada por uma burocracia altamente organizada, com níveis claramente definidos de autoridade que respondiam diretamente ao imperador. Essa estrutura permitia ao governo central exercer controlo sobre regiões distantes. A geografia da China, com vastas planícies e rios que facilitavam a comunicação e transporte, favoreceu a unificação e centralização. Ao contrário das regiões montanhosas e desérticas do Médio Oriente, a geografia chinesa permitiu o estabelecimento de um Estado centralizado mais facilmente. Grandes rios como o Yangtzé e o Huang He (Rio Amarelo) foram fundamentais para a agricultura e o desenvolvimento económico, criando a necessidade de projetos de irrigação, e controlo das inundações, que exigiam coordenação centralizada.

A adoção de uma escrita comum, que transcendeu dialetos regionais, foi um fator crucial para a unidade cultural e política da China. Mesmo que diferentes regiões falassem dialetos diversos, a escrita chinesa padronizada ajudou a manter uma identidade cultural e administrativa unificada. A longa história de uma civilização contínua, e relativamente homogénea, ajudou a China a desenvolver uma forte identidade cultural que reforçou a centralização política. A necessidade de defender o território contra invasões estrangeiras, especialmente dos nómadas das estepes, incentivou a manutenção de um governo central forte capaz de mobilizar recursos e coordenar a defesa em grande escala. O conceito de "Mandato do Céu" (Tianming) legitimava a autoridade central e fornecia uma base ideológica para o governo unificado. Se um imperador perdesse o mandato devido a desastres naturais ou a revoltas, a legitimidade do poder passaria para uma nova dinastia, mantendo a centralização.

Por fim, e por outro lado, a democracia. A tradição greco-romana, combinada com a influência do cristianismo, desempenhou um papel fundamental na formação dos sistemas políticos do Ocidente, incluindo a eventual adoção da democracia. Essa herança histórica e cultural ajudou a criar condições propícias para a aceitação e desenvolvimento de sistemas democráticos na Europa. A seguir são elencados os principais fatores que contribuíram para essa evolução.

A Grécia Antiga, especialmente Atenas, é frequentemente considerada o berço da democracia. Embora o sistema ateniense fosse limitado em muitos aspectos (como a exclusão de mulheres, escravos e estrangeiros), ele introduziu a ideia de governo pelo povo e de participação cidadã nas decisões políticas. Essa ideia continuou a influenciar o pensamento político ocidental, mesmo após o declínio das cidades-estado gregas. A tradição filosófica grega, em que os escritos de Platão e Aristóteles tiveram um papel decisivo na forma de se debaterem os assuntos da política ancorados no principio da Razão, ajudou a moldar o pensamento ocidental favorável à democracia. 
Durante o Renascimento, houve uma redescoberta dos textos clássicos gregos e romanos, que reintroduziram os ideais de cidadania, liberdade e participação pública no pensamento europeu. 

A República Romana desenvolveu um sistema de governo com elementos que mais tarde seriam vistos como democráticos, como a separação de poderes, a eleição de representantes e o princípio do império da lei (a supremacia da lei sobre os indivíduos). Esses conceitos foram fundamentais para a construção dos sistemas políticos ocidentais. O desenvolvimento do direito romano, com sua ênfase na justiça, equidade e direitos individuais, influenciou profundamente os sistemas legais e políticos europeus. A ideia de que todos são iguais perante a lei é uma base fundamental das democracias modernas.

O cristianismo introduziu e difundiu a ideia de que todos os seres humanos são iguais aos olhos de Deus, o que, ao longo do tempo, contribuiu para a promoção da igualdade e dos direitos humanos. Essa visão teológica influenciou a crença na dignidade e nos direitos intrínsecos de cada indivíduo, conceitos centrais na democracia. Embora a Igreja Católica tenha exercido grande poder temporal na Idade Média, o conceito de separação entre a autoridade espiritual e temporal acabou por se desenvolver, especialmente após a Reforma Protestante. Essa separação pavimentou o caminho para a ideia moderna de separação entre Igreja e Estado, fundamental para o desenvolvimento de sistemas democráticos. A ética cristã, com sua ênfase na justiça social, na caridade e na proteção dos mais fracos, influenciou a criação de sistemas políticos que visam o bem-estar comum e a proteção dos direitos dos cidadãos.

O Iluminismo, um movimento intelectual do século XVIII, foi profundamente influenciado tanto pela herança greco-romana quanto pelos princípios cristãos. Filósofos como John Locke, Montesquieu e Rousseau defenderam a liberdade, a igualdade, os direitos naturais e a soberania popular, ideias que se tornaram pilares das democracias modernas. A evolução das instituições políticas na Europa, como o desenvolvimento de parlamentos na Inglaterra e em outros países, foi um passo importante para a construção de sistemas democráticos. Essas instituições frequentemente se inspiravam nos princípios de governo e direito herdados do mundo greco-romano e eram moldadas por conceitos cristãos de moralidade e justiça. Revoluções como a Revolução Inglesa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa foram impulsionadas por ideias de liberdade, igualdade e soberania popular, enraizadas na tradição greco-romana e cristã, e resultaram na formação de democracias modernas.

Em resumo, a combinação da herança greco-romana, com o seu legado de participação cívica, racionalismo e direito, e a influência do cristianismo, com sua ênfase na dignidade humana e na justiça social, criou um ambiente cultural e filosófico que facilitou a adoção e o desenvolvimento de sistemas democráticos nos países ocidentais. Essas tradições moldaram as fundações intelectuais e morais sobre as quais as democracias modernas foram construídas.

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