quarta-feira, 28 de agosto de 2024

O antissemitismo


O preconceito contra o povo judeu, conhecido como antissemitismo, tem raízes profundas e complexas, que se desenvolveram ao longo dos séculos. Ele surgiu a partir de uma combinação de fatores religiosos, económicos, culturais e políticos.

Durante o período do Império Romano, os judeus eram uma minoria que praticava o monoteísmo, em contraste com a maioria politeísta. Essa diferença religiosa frequentemente gerava desconfiança e hostilidade. A recusa dos judeus em adorar os deuses romanos ou o imperador foi vista como uma ameaça à ordem pública. Em várias ocasiões, houve revoltas judaicas contra o domínio romano, o que levou a represálias severas e à destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C., marcando o início da Diáspora judaica. Com a ascensão do Cristianismo como a religião dominante na Europa, os judeus passaram a ser vistos como os "assassinos de Cristo". Essa visão teológica foi propagada pela Igreja Católica, alimentando hostilidades contra os judeus. Durante a Idade Média, os judeus foram frequentemente proibidos de possuir terras e de exercer muitas profissões. Eles se voltaram para o comércio e, em particular, para a atividade de empréstimo de dinheiro, já que o Cristianismo proibia a usura (cobrança de juros). Essa atividade gerou ressentimento, levando à propagação do estereótipo do judeu avarento e explorador.

O primeiros relatos conhecidos em documentos escritos de usura praticada por judeus na Península Ibérica que datam do século XII, que se transformaram em preconceito com a acusação de usura, remetem para uma prática de emprestar dinheiro com juros de dez por cento que tinha a ver com o dez do dízimo, e que era uma prática de contributo religioso que já vinha da Antiguidade do tempo das rebeliões na Judeia quando estava sob administração do Império Romano. 
Por conseguinte, o preconceito associado aos judeus em relação a essa prática, tem uma longa história, mais complexa do que a ideia que nos é apresentada por esse preconceito. No entanto, é correto afirmar que a associação entre judeus e usura se institucionalizou como patognomónico dos judeus a partir do século XII. Ora, como é típico da hipocrisia das instituições religiosas que o adágio "Bem prega Frei Tomás ... " nos faz recordar, na Alta Idade Média os bispos da Igreja Católica proibiram os cristãos de praticarem a usura, o que criou um vácuo no sistema financeiro que os judeus, que não estavam sujeitos à mesma proibição, começaram a preencher. 

Essa situação não foi universal, mas em muitos casos, ficou colada à pele dos judeus a prática de emprestar dinheiro com usura devido às restrições impostas aos cristãos. Portanto, enquanto a associação entre judeus e usura passou a ser muito badalada a partir do século XII, na verdade o empréstimo de dinheiro com juros era uma prática universal que vinha de muitos séculos atrás. Por isso, o que se tornou mais recente foi o preconceito por causa de outras complicações que se geraram com o antijudaísmo por parte da cristandade, sobretudo a católica. Foi um processo gradual, influenciado por mudanças económicas, sociais e religiosas.

Façamos então uma viagem ao tempo dos 
Romanos no Médio Oriente. Os romanos , nunca conseguiram fazer dos judeus grandes escravos. Rebeliões sucessivas faziam dos judeus um caso à parte. Os romanos tiveram uma relação complexa com os judeus, especialmente no contexto das sucessivas rebeliões na província da Judeia. Embora os romanos utilizassem a escravidão em larga escala em todo o seu império, o tratamento dos judeus teve particularidades importantes devido à natureza das rebeliões judaicas e às políticas romanas na região. Houve várias rebeliões judaicas significativas contra o domínio romano, das quais podemos destacar: a Grande Revolta Judaica (66-73 d.C.); a Revolta de Kitos (115-117 d.C.); e a Revolta de Bar Kokhba (132-135 d.C.). Estas rebeliões foram violentamente reprimidas pelos romanos. Daí resultou a muito conhecida Diáspora Judaica; e a destruição quase total de Jerusalém. 

Em resposta às rebeliões, as medidas dos imperadores romanos foram mesmo severas com a destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C. Muitos judeus foram mortos, e outros fugiram. Após a Revolta de Bar Kokhba, a repressão romana foi ainda mais dura, com o exílio maciço da população judaica que ainda restava. Os judeus, devido à sua forte identidade religiosa e cultural, foram muitas vezes tratados de maneira diferente pelos romanos. A resistência ao culto imperial, e a rebeldia violenta às disposições da lei romana, contribuiu para que a relação entre a autoridade romana e a comunidade judaica tivesse sido sempre muito tensa e diferenciada. Os romanos viram-se obrigados a reconhecer a singularidade da religião judaica, o que às vezes levava a concessões especiais, mas também a severas repressões em tempos de revolta.

A diáspora judaica expandiu-se significativamente após as revoltas, com comunidades judaicas estabelecendo-se em muitas partes do império. A severidade da repressão romana após as rebeliões judaicas teve consequências duradouras para a população judaica na Judeia e para as comunidades judaicas em todo o império. A destruição do Templo e a proibição de os judeus entrarem em Jerusalém após a Revolta de Bar Kokhba foram momentos decisivos na história judaica. 

A religião judaica era monoteísta e exclusivista, o que contrastava fortemente com o politeísmo inclusivo dos romanos. Os judeus recusavam-se a participar no culto aos deuses romanos e no culto imperial, o que muitas vezes era visto como um comportamento antissocial e uma afronta à ordem pública e à coesão do império. As práticas religiosas e sociais judaicas, como a observância do sábado, as leis dietéticas e a circuncisão, eram diferentes das práticas romanas e frequentemente incompreendidas ou vistas com suspeita. As sucessivas rebeliões judaicas contra o domínio romano exacerbaram a tensão e o preconceito. A resistência armada dos judeus e os consequentes conflitos violentos levaram a uma visão negativa e estereotipada dos judeus como perturbadores da ordem pública. Antes mesmo do domínio romano, havia uma história de conflitos entre judeus e outros grupos na região, como os gregos. Esses conflitos históricos também moldaram atitudes e preconceitos. A literatura e a propaganda romanas frequentemente retratavam os judeus de maneira negativa. Escritores romanos como Tácito e Juvenal descreveram os judeus de forma pejorativa, reforçando estereótipos e preconceitos. Em algumas regiões, os judeus eram bem-sucedidos economicamente, o que gerava ressentimento e inveja de uma prosperidade económica associada à sua identidade distinta. Embora a religião fosse um fator central no preconceito contra os judeus, o comportamento antissocial atribuído a eles pelos romanos também refletia uma série de mal-entendidos, tensões políticas e conflitos culturais. 

A partir do século XII, com a expansão do comércio e da economia monetária na Europa, a necessidade de crédito aumentou. A prática de empréstimos a juros tornou-se mais visível, e os judeus, muitas vezes forçados a viver em guetos e proibidos de muitas outras profissões envolveram-se em atividades financeiras, incluindo empréstimos. Durante este período, a acusação de usura tornou-se uma forma de ganância e exploração. O Terceiro Concílio de Latrão em 1179, e o Quarto Concílio de Latrão em 1215 reforçaram a condenação da usura o que levou a que se implementassem medidas que restringiam ainda mais os judeus. Esses concílios contribuíram para a institucionalização do preconceito contra os judeus, associando-os de forma negativa à prática da usura. Em muitos casos, os governantes europeus toleravam e até protegiam os judeus como fonte de crédito e impostos. No entanto, essa dependência económica também gerava ressentimento entre a população geral e podia ser explorada politicamente, resultando em pogroms e expulsões, como as expulsões dos judeus da Inglaterra em 1290 e da França em 1306 e 1394. As representações apareceram em sermões, peças de teatro, e outras formas de comunicação popular, enraizando profundamente o preconceito anti-judaico na cultura europeia.


No final do século XIX, o antissemitismo começou a tomar uma forma mais secular e racial. O surgimento do nacionalismo exacerbou as tensões, e os judeus passaram a ser vistos como uma raça inferior e uma ameaça ao "caráter nacional" dos países europeus. As ideias pseudocientíficas do racismo também influenciaram o antissemitismo, com figuras como Wilhelm Marr, que cunhou o termo "antissemitismo" em 1879. Nesta época, surgiram teorias da conspiração que afirmavam que os judeus controlavam secretamente o mundo através das finanças, dos órgãos e comunicação e da política. Uma das manifestações mais conhecidas dessas teorias foi o documento falsificado chamado Os Protocolos dos Sábios de Sião.

O antissemitismo alcançou o seu ponto mais trágico e violento com o Holocausto, perpetrado pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Seis milhões de judeus foram sistematicamente assassinados em campos de extermínio, culminando em uma das maiores tragédias da história humana. Embora o antissemitismo tenha sido amplamente condenado após a Segunda Guerra Mundial, ele não desapareceu. Manifestações contemporâneas do preconceito antijudaico ainda ocorrem, com raízes nas mesmas ideias erradas e teorias da conspiração de séculos anteriores. Nas últimas décadas, o conflito com os palestinos, tem sido a maior dor de cabeça para todos nós. Embora a crítica à política do Estado de Israel seja legítima, em alguns casos, ela tem sido usada como uma cobertura para o antissemitismo, confundindo as críticas políticas com preconceito étnico ou religioso contra judeus. Por conseguinte, o antissemitismo é um fenómeno multifacetado que evoluiu ao longo do tempo, refletindo e amplificando as ansiedades e preconceitos de diferentes épocas.

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