sábado, 24 de agosto de 2024

O tempo dos povos indo-iranianos



Os povos indo-iranianos faziam parte de um quadro muito maior referenciado pela matriz linguística indo-europeia. A diversidade dos povos indo-europeus e as suas respetivas línguas e culturas é ampla. Historicamente, os povos indo-europeus eram diversos, abrangendo desde os celtas na Europa Ocidental até aos povos indo-iranianos na Ásia. É importante destacar que o termo "ariano" foi distorcido no século XX, especialmente pelos nazis que usaram a palavra para promover um conceito racial falso, associando-a erroneamente a uma suposta "raça superior" do norte da Europa. Esse uso não tem base científica e distorce a realidade histórica e linguística.

O termo "ariano" originalmente refere-se aos povos que falavam línguas indo-iranianas, uma subfamília do grupo indo-europeu. Ele tem raízes na palavra "Arya", que em sânscrito e avéstico (linguagens antigas da Índia e do Irão, respetivamente) significava "nobre" ou "senhor". Esses povos habitavam principalmente as regiões do Irão (o próprio nome "Irão" deriva de "Aryan") e do norte da Índia. Por outro lado, o conceito de "povos indo-europeus" refere-se a um conjunto de grupos que falavam línguas pertencentes à família indo-europeia, que se espalhou pela Europa e parte da Ásia. Essa família linguística inclui línguas como o latim, o grego, o sânscrito, o celta, o germânico, o eslavo, entre outras. A associação dos povos arianos à matriz indo-europeia apenas faz sentido do ponto de vista linguístico, pois as línguas indo-iranianas são parte do grande tronco comum indo-europeu. Contudo, o uso de "ariano" para se referir a todos os povos indo-europeus é incorreto, pois "ariano" se refere especificamente aos povos indo-iranianos.

Os povos indo-iranianos correspondem a uma vasta região que inclui o Afeganistão, o Irão e o norte da Índia, que abrange aspetos linguísticos, culturais, religiosos e históricos. Os últimos conhecimentos, baseados em pesquisas arqueológicas, estudos linguísticos e genéticos, ajudam a esclarecer essa influência de maneira mais detalhada. A migração indo-europeia diz respeito a um grupo de povos nómadas que habitavam as estepes a norte do Mar Negro e à volta do Mar Cáspio. Estes povos, por volta do ano 3.000 a.C., começaram a se expandir para Sul. Essas migrações deram origem a diversos grupos, incluindo os indo-iranianos. 
Essas migrações levaram à disseminação da língua indo-europeia original que viria a dar origem às línguas como o sânscrito na Índia, o avéstico, e o persa. 

Essas línguas indo-europeias substituíram ou coexistiram com as línguas locais de povos que já aí habitavam. Por exemplo, o sânscrito tornou-se a língua litúrgica dos textos védicos, que foram fundamentais para o desenvolvimento do Hinduísmo. No Irão, a língua avéstica e a língua persa antiga tornaram-se as línguas dos textos sagrados do Zoroastrismo e dos registos reais do Império Aqueménida. Os Vedas, os textos sagrados mais antigos do Hinduísmo, descrevem rituais, mitos e deidades como Indra, Agni, e Varuna, que compartilham semelhanças com deidades iranianas. No Irão o Zoroastrismo desenvolveu-se a partir de antigas tradições indo-iraniana. Zoroastro (Zaratustra) foi um reformador dessas crenças introduzindo o monoteísmo com Ahura Mazda como a deidade suprema. Portanto, a mitologia persa também compartilha muitas características dos Vedas, refletindo uma herança cultural comum.

A chegada dos indo-iranianos à Índia introduziu mudanças significativas nas estruturas sociais e culturais das regiões afetadas. Na Índia, isso resultou na formação das castas (varnas) descritas nos Vedas, que organizaram a sociedade em uma hierarquia que ainda tem ressonância hoje. As práticas religiosas e rituais védicas, bem como a literatura e a filosofia têm raiz indo-iraniana. De qualquer modo, convém recordar que se verificou uma interação da cultura indo-iraniana com civilizações vizinhas, como os dravidianos no sul da Índia, e os povos mesopotâmicos e egípcios, promovendo trocas culturais, comerciais e tecnológicas.

Pesquisas genéticas recentes mostram como esses povos se misturaram com os povos locais que já ali vivam. Isso criou uma base genética diversificada nas regiões afetadas. Arqueologicamente, os sítios no norte da Índia, Afeganistão e Irão revelam a presença de culturas materialmente distintas que podem ser associadas a essas migrações, incluindo a Cultura da Cerâmica Pintada Cinzenta na Índia. Assim, as influências dos povos indo-iranianos no Afeganistão, no Irão, e o norte da Índia, foram profundas e duradouras, moldando a evolução linguística, religiosa e cultural dessas regiões. Embora as migrações indo-iranianas tenham sido apenas uma parte da complexa história dessas áreas, o seu impacto ainda é visível nas línguas, tradições religiosas e estruturas sociais que perduram até hoje.

Recordemos então que os povos indo-iranianos chegaram à região onde antes havia florescido a Civilização do Vale do Indo em um momento em que esta já estava em declínio ou praticamente desintegrada. Ainda há debate sobre o grau de continuidade ou influência entre a Civilização do Vale do Indo e a cultura indo-iraniana que produziu os Vedas. Alguns estudiosos sugerem que certos elementos culturais, religiosos e simbólicos da Civilização do Vale do Indo podem ter sido absorvidos pelos indo-iranianos e se refletido nos Vedas. Por exemplo, há interpretações que tentam relacionar algumas práticas religiosas védicas com possíveis cultos ou símbolos com origem em 
Harapa e Mohenjo-Daro, duas das principais cidades da Civilização do Vale do Indo. Esta civilização é, por conseguinte, também uma das mais antigas, e não menos enigmáticas, das civilizações urbanas da Antiguidade. Essa civilização floresceu entre aproximadamente 3300 a.C. e 1300 a.C. na região que hoje abrange o noroeste do subcontinente indiano, incluindo partes do Paquistão e da Índia. A Civilização do Vale do Indo é particularmente notável pelo seu alto nível de desenvolvimento urbano, práticas agrícolas e comerciais avançadas, e um sistema de escrita que permanece um dos maiores mistérios da arqueologia.

Harapa e Mohenjo-Daro são notáveis por seu planeamento urbano avançado. As cidades eram organizadas em uma grade, com ruas largas e retas, e dispunham de sistemas de drenagem e saneamento altamente sofisticados, incluindo banhos, esgotos e poços. As casas eram feitas de tijolos padronizados de barro cozido e muitas vezes tinham vários andares, o que indica um elevado grau de planeamento e organização social. A economia da Civilização do Vale do Indo era baseada na agricultura, com cultivo de trigo, cevada, ervilha e algodão, e na criação de gado. Além disso, essa civilização tinha uma rede comercial extensa, que incluía contactos com a Mesopotâmia, o que é evidenciado por achados de artefactos e selos de Harapa em regiões distantes. Eles também produziam uma variedade de produtos manufaturados, incluindo ferramentas de pedra e metal, cerâmicas finas, e joias de ouro, prata e pedras semipreciosas.

A Civilização do Vale do Indo desenvolveu um sistema de escrita, conhecido como escrita do Indo, que ainda não foi totalmente decifrada. Os símbolos encontrados em selos e outros artefactos indicam que eles possuíam algum tipo de registo escrito ou comunicação simbólica, embora a natureza exata desse sistema e seu conteúdo permaneçam desconhecidos. A religião e a estrutura social da Civilização do Vale do Indo são temas de debate entre os arqueólogos, devido à falta de textos decifrados e à escassez de evidências diretas. No entanto, escavações revelaram figuras que parecem representar deidades ou símbolos religiosos, incluindo possíveis representações de cultos à fertilidade. A organização das cidades sugere uma sociedade relativamente igualitária, com menos diferenciação marcante entre as habitações em comparação com outras civilizações antigas.

Civilização do Vale do Indo começou a declinar por volta de 1900 a.C., e as razões para esse colapso ainda não são completamente compreendidas. Fatores sugeridos incluem mudanças climáticas, que teriam afetado os sistemas fluviais essenciais para a agricultura, terramotos, mudanças no curso dos rios, e invasões ou migrações de outros povos. Esse declínio levou ao abandono gradual das grandes cidades como Harapa e Mohenjo-Daro. O estudo dessa civilização é crucial para entender as origens da cultura do sul da Ásia e a evolução das sociedades humanas. Harapa e Mohenjo-Daro representam, portanto, um legado cultural e histórico de grande importância, que continua a fascinar pesquisadores e historiadores.

Os Vedas são considerados os textos mais antigos da tradição literária indo-iraniana, compostos em sânscrito védico. O Rigveda, o mais antigo dos quatro Vedas, foi provavelmente composto por volta de 1500 a.C. a 1200 a.C. Os outros Vedas (Sama Veda, Yajur Veda e Atharva Veda) foram compilados nos séculos seguintes. Portanto, os Vedas foram compostos depois do declínio da Civilização do Vale do Indo, durante um período em que os povos indo-iranianos se estabeleceram na região do noroeste do subcontinente indiano. Os Vedas são, de facto, textos compostos depois do desaparecimento das grandes cidades da Civilização do Vale do Indo. Eles representam o início da tradição literária e religiosa que se desenvolveu com o sânscrito no subcontinente indiano, marcando um novo capítulo na história cultural da região após o fim da Civilização do Vale do Indo.

O Zoroastrismo, fundado por Zoroastro (ou Zaratustra), é uma outra religião que surgiu nas terras iranianas. A dualidade entre o bem e o mal, a luta cósmica entre Ahura Mazda (o deus do bem) e Angra Mainyu (o espírito maligno), bem como algumas ideias escatológicas e práticas rituais, fazem parte da tradição iraniana. O conceito de céu e inferno, a escatologia e alguns aspetos da ética e da jurisprudência do Zoroastrismo pode ter favorecido a disseminação e assimilação do Islão por estas paragens.  O contexto cultural e religioso deve ter influenciado a forma como o Islão foi articulado. De facto, o Irão é um dos locais onde o sincretismo entre o Islão e elementos das tradições anteriores pode ser mais evidente. Isso ocorre por diversas razões históricas e culturais que moldaram a interação entre essas duas tradições religiosas ao longo dos séculos. Antes da chegada do Islão, o Zoroastrismo era a religião dominante no Império Sassânida, que governava a Pérsia (atual Irão). Com a conquista islâmica da Pérsia no século VII, houve uma transição gradual da maioria da população para o Islão, mas as influências culturais e religiosas do Zoroastrismo não desapareceram de imediato. Em vez disso, muitos elementos dessa antiga religião foram assimilados de diversas formas.

O Zoroastrismo introduziu conceitos escatológicos, como a batalha final entre as forças do bem e do mal, que também aparecem no pensamento islâmico, especialmente no xiismo. A noção de um julgamento final, com a separação dos justos e dos ímpios, é compartilhada pelas duas religiões, embora com diferenças significativas. Algumas práticas culturais e festividades no Irão moderno, como o Nowruz (Ano Novo Persa), têm origens mais antigas e foram adaptadas ao contexto islâmico. Apesar de ser uma celebração pré-islâmica, o Nowruz continua a ser amplamente celebrado no Irão, inclusive entre os muçulmanos, e foi reinterpretado em alguns aspetos para se alinhar com o Islão.

Por outro lado, a estrutura clerical do Islão xiita no Irão, pode ter sido influenciada pela organização hierárquica dos sacerdotes de Zoroastro, conhecidos como "mobed" ou "herbad". Essa hierarquia não é encontrada de maneira tão formalizada no sunismo. Alguns aspetos da filosofia islâmica no Irão, como o sufismo e a teosofia, mostram influências do Zoroastrismo, especialmente em suas abordagens sobre a dualidade da luz e das trevas, o papel do fogo como símbolo de pureza, e a relação entre o espiritual e o material. O xiismo, que é a corrente predominante do Islão no Irão, tem algumas características que podem ter sido influenciadas pela antiga religião de Zoroastro, como a ênfase na luta entre o bem e o mal, a veneração de figuras sagradas e mártires (como o Imam Hussein), e uma rica tradição de ritualismo e simbolismo.

Assim, Sincretismo Cultural, além das influências religiosas diretas, é evidente na cultura iraniana mais ampla, onde práticas, símbolos e crenças de origem no Zoroastrismo coexistem no Islão. Isso se reflete na literatura, na poesia (por exemplo, nos trabalhos de Rumi e Hafez), nas artes e nos costumes diários. No Irão, o sincretismo entre o Islão e o Zoroastrismo é mais visível e tem raízes profundas na história e na cultura do país. Embora o Islão se tenha tornado a religião dominante, as antigas tradições continuam a influenciar a vida religiosa, cultural e filosófica no Irão, criando uma fusão única que diferencia a prática islâmica iraniana de outras regiões do mundo muçulmano.

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