sábado, 24 de agosto de 2024

Cântico de Débora


A perplexidade ao ler o poema "Cântico de Débora”, ou "Canto de Vitória", junto com as notícias contemporâneas da Faixa de Gaza, reflete a sensação de que, ao longo de milénios, os conflitos, as guerras e as disputas pela terra e poder não cessaram. O "Cântico de Débora", encontrado no Livro dos Juízes, capítulo 5 da Bíblia, é um dos mais antigos exemplos de poesia hebraica e celebra uma vitória militar sobre os opressores do povo de Israel.

O poema exalta o triunfo de uma aliança de tribos israelitas, lideradas por Débora, uma juíza e profetisa, e Baraque, sobre as forças cananeias comandadas por Sísera. A celebração do êxito militar, da justiça divina e da libertação de um povo oprimido ressoa de forma inquietante quando se reflete sobre os conflitos atuais na Faixa de Gaza. O ciclo de violência, os sentimentos de vingança, a luta por sobrevivência e a busca por justiça continuam a ser temas presentes, mesmo milhares de anos depois. Essa continuidade histórica pode causar uma profunda reflexão sobre a natureza humana e a complexidade das questões políticas, religiosas e territoriais que perpetuam o conflito no Médio Oriente. A história parece que se repete em padrões trágicos, onde as vitórias e derrotas de um grupo sobre o outro trazem consequências duradouras, mas não resolvem as raízes do conflito.

Ler o "Cântico de Débora" à luz dos eventos contemporâneos na Faixa de Gaza pode ser um lembrete sombrio de que a paz duradoura ainda é uma meta distante, e que os desafios para a alcançar requerem uma compreensão profunda, além das memórias históricas e religiosas que continuam a moldar as ações humanas. A existência do pequeno reino de Judá, governado pela dinastia de David, é amplamente aceite pelos estudiosos e arqueólogos, embora os detalhes sobre a extensão e o poder deste reino durante os séculos X a VII a.C. sejam objeto de debate. A inscrição da Estela de Tel Dã (datada do século IX a.C.), descoberta em 1993 no norte de Israel, menciona a "Casa de David" (Beit David). Esta é uma das evidências mais claras de que David foi uma figura histórica e que a sua dinastia governou sobre Judá. Outras inscrições, como a Estela de Mesa (ou Pedra Moabita), também fazem referências indiretas ao reino de Judá e a reis israelitas, sugerindo a existência de uma entidade política significativa na região.

Em Jerusalém e em outros sítios atribuídos ao reino de Judá, como Arad e Lakish, foram encontrados restos de fortificações, palácios, templos, e outros artefactos que indicam a presença de um reino organizado. No entanto, o tamanho e a influência deste reino, especialmente em comparação com o reino de Israel ao norte, parecem ter sido limitados, pelo menos até ao século VIII a.C. A cidade de Jerusalém, que serviu como capital de Judá, apresenta evidências de ocupação contínua e fortificações que sugerem que, mesmo sendo menor que o reino de Israel, Judá era um centro político e religioso importante.

O reino de Judá era menor e menos poderoso que o reino de Israel ao norte, que era mais rico, mais populoso e tinha um território mais extenso. Israel teve uma influência maior nos assuntos regionais e foi mais integrado nas redes comerciais e políticas do Próximo Oriente. A narrativa bíblica enfatiza a importância de Judá e a centralidade de Jerusalém e da dinastia de David, mas os estudos históricos e arqueológicos indicam que o poder e a influência de Judá cresceram principalmente após a queda do reino de Israel para os assírios em 722 a.C. Com a destruição de Israel, Judá tornou-se o principal reino israelita, absorvendo muitos dos refugiados do Norte e, consequentemente, expandindo sua população e importância. As evidências arqueológicas e textuais sustentam o que foi dito, mesmo que a história bíblica possa ter sido influenciada por ideologias posteriores que buscavam exaltar a linhagem de David e o papel de Judá.

É possível que antes disso, a antiga sociedade tribal israelita ainda não era monoteísta. Tal como Baal, Javé era um dos filhos de El. É bastante possível que a antiga sociedade tribal israelita não tenha sido monoteísta em seus primórdios e que Javé tenha sido originalmente concebido como um dos deuses do panteão cananeu, possivelmente um dos filhos de El. Essa ideia é sustentada por várias evidências históricas, arqueológicas e textuais. O politeísmo era a norma, e o panteão cananeu, que influenciou os antigos israelitas, incluía divindades como El, Baal, Astarte e Asherá. El era frequentemente visto como o deus supremo, o "pai dos deuses", enquanto Baal era um deus da tempestade e da fertilidade. El era adorado como o deus criador e líder do panteão, e seu nome aparece em várias formas em textos ugaríticos (cuneiformes) do segundo milénio a.C., encontrados na cidade de Ugarit (moderna Ras Shamra, na Síria).

Inicialmente, Javé pode ter sido uma divindade menor associada a um território ou tribo específicos. As referências a "Javé de Temã" ou "Javé vindo do Sinai" sugerem que ele era inicialmente um deus associado ao deserto e ao sul do Levante. Existem evidências de que, em suas origens, Javé poderia ter sido um deus da guerra ou da tempestade, semelhante a Baal. Com o tempo, porém, Javé foi assimilado e transformado em uma divindade suprema, fundindo características de outros deuses cananeus.

A transição do politeísmo para o monoteísmo não foi abrupta, mas sim um processo gradual. Textos bíblicos antigos, como algumas passagens dos Salmos ou dos Profetas, sugerem que Javé era inicialmente adorado ao lado de outros deuses, como Asherá, que às vezes é mencionada como sua consorte. O monoteísmo estrito, como aparece na tradição judaica posterior, começou a tomar forma durante o período monárquico, especialmente após o Exílio Babilónico (século VI a.C.). Durante este período, líderes religiosos e políticos reformularam as tradições, promovendo Javé como o único Deus verdadeiro e rejeitando outras divindades. A Bíblia Hebraica reflete este processo, mostrando vestígios de uma transição religiosa. Por exemplo, o Primeiro Mandamento ("Não terás outros deuses diante de mim") pode implicar que outros deuses existiam, mas que Javé exigia exclusividade. Achados arqueológicos, como inscrições em Kuntillet Ajrud e Khirbet el-Qom, mencionam "Javé e sua Asherá", sugerindo que, em algum momento, a adoração de Javé estava associada ao culto de outras divindades.

Na época de David, não havia ainda um "reino de Israel ao norte" separado e mais próspero. Na narrativa bíblica, David é tradicionalmente apresentado como o rei que unificou as tribos de Israel sob um único governo, estabelecendo um reino unido que incluía tanto o território do Norte (referido como Israel) quanto o do Sul (Judá). No entanto, a questão da existência e prosperidade relativa de diferentes regiões durante o período de David é complexa e depende de evidências históricas e arqueológicas que sugerem uma realidade mais cinzenta do que a narrativa bíblica apresenta.

Segundo a Bíblia, David unificou as tribos israelitas e estabeleceu um reino que se estendia do norte ao sul, com Jerusalém como capital. Isso teria incluído as tribos do Norte e do Sul sob um único governo. No entanto, as evidências arqueológicas sobre a extensão e poder desse reino são limitadas. Alguns estudiosos sugerem que a unificação pode ter sido mais uma aliança ou confederação frouxa de tribos do que um reino centralizado e unificado. Durante o século X a.C., período tradicionalmente atribuído ao reinado de David, a arqueologia indica que a região do Sul, onde estaria Judá, era menos desenvolvida e menos populosa do que as áreas do Norte. Cidades do Norte, como Hazor, Megido e Bet-Shean, mostram evidências de maior desenvolvimento urbano e fortificações substanciais, sugerindo que, mesmo que o reino de Israel como uma entidade política separada ainda não existisse, as regiões do Norte eram mais prósperas e densamente povoadas.

Após a morte de Salomão, filho de David, o reino supostamente se dividiu em dois: o Reino de Israel, ao Norte, e o Reino de Judá, ao Sul. Israel era maior, mais populoso e, aparentemente, mais próspero, com uma economia mais dinâmica e uma maior integração nas rotas comerciais do Próximo Oriente. Essa divisão teria ocorrido por volta de 930 a.C., mas durante o tempo de David, ainda se supõe a existência de um reino unido, pelo menos de acordo com a narrativa bíblica. A distinção clara entre um reino de Israel próspero ao Norte e um Judá menos desenvolvido ao Sul só se consolidaria após a divisão do reino, após o reinado de Salomão, quando Israel se tornou um reino separado e mais poderoso.

Sabemos mais sobre a religião de Judá, porque os escritores bíblicos favoreceram o reino meridional. Sabemos mais sobre a religião de Judá em grande parte porque os textos bíblicos, que chegaram até nós, foram predominantemente escritos, compilados e editados por autores que favoreceram o reino meridional de Judá. Essa preferência teve um impacto significativo na forma como a história e a religião dos antigos israelitas foram preservadas e transmitidas. Quais foram as razões para o foco em Judá?

O reino Norte foi conquistado pelos assírios em 722 a.C., e sua população foi em grande parte dispersa. Judá, por outro lado, sobreviveu como uma entidade política independente por mais tempo, até ser conquistado pelos babilónios em 586 a.C., às mãos de Nabucodonosor. Essa maior longevidade permitiu que Judá desenvolvesse uma tradição literária e religiosa mais contínua. Após a queda de Jerusalém e o Exílio Babilónico, os líderes e escribas de Judá tiveram tempo e motivação para estudar e compilar suas tradições, resultando na produção de muitos dos textos que compõem a Bíblia Hebraica.

Jerusalém, localizada em Judá, foi o centro religioso e político da nação após a suposta unificação das tribos. Com o Templo de Salomão como foco do culto a Javé, os autores bíblicos enfatizaram a centralidade de Jerusalém e o culto monoteísta a Javé, minimizando ou criticando práticas religiosas de Israel que envolviam outros locais e deuses. A teologia dos autores bíblicos, especialmente após o Exílio, favorecia a narrativa de que Judá e sua linhagem de David tinham uma relação especial com Javé. Eles viam a história através de uma lente que legitimava Judá como o herdeiro legítimo das promessas de Deus a Israel. A narrativa bíblica apresenta frequentemente o Norte (Israel) como infiel por adotar práticas religiosas que se desviavam do culto exclusivo a Javé, enquanto Judá, apesar de seus próprios lapsos, era visto como o portador legítimo da aliança divina.

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