sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A relação entre as três religiões do Livro


Nos primeiros séculos do Islão, as relações entre as três religiões do livro tornaram-se ainda mais complexas do que até aí entre cristãos e judeus. Muitos territórios que eram do domínio do Império Romano do Oriente, cuja religião oficial era o cristianismo ortodoxo ou bizantino, passaram para as mãos dos muçulmanos, de religião islâmica. Povo do Livro, dhimmis em expressão muçulmana, era o que concedia a cristãos e judeus uma certa proteção, ainda que tivessem que pagar um imposto especial chamado jizya. Apesar de serem cidadãos de segunda classe, os judeus agora em terra de muçulmanos desfrutavam de um grau de liberdade religiosa e económica maior do que os judeus da Europa Ocidental cristã da mesma época. Inclusivamente na Península Ibérica, quando se tornou quase toda islâmica - Al-Andalus - a cultura judaica floresceu. Aliás, o mesmo se passara na Bagdade dos abássidas. No entanto, a relação entre muçulmanos e judeus acabou por azedar. Passou a haver momentos de tensão, especialmente quando emergiu o tempo das Cruzadas.

Enquanto o antissemitismo na Europa cristã teve uma base fortemente teológica e se traduziu em perseguições violentas e segregação social, no mundo islâmico, a discriminação em relação aos judeus foi geralmente mais ligada ao estatuto de dhimmi, com regras de convivência específicas, mas menos brutal do que na Europa. A perceção de que "os islâmicos foram pelo mesmo caminho dos cristãos em relação aos judeus" pode estar relacionada ao recrudescimento das tensões entre muçulmanos e judeus no século XX, especialmente no contexto do conflito na Palestina, que tem raízes políticas, territoriais e identitárias profundas.

A Inquisição em relação aos chamados "cristãos-novos", sobretudo em Portugal, é uma página negra na história. Os cristãos-novos eram judeus convertidos ao cristianismo, muitas vezes à força, durante o final do século XV e início do século XVI, especialmente após a expulsão dos judeus da Espanha em 1492, e a conversão forçada em Portugal em 1497. No final do século XV, Portugal, como outros países europeus, estava sob forte influência da Igreja Católica, que buscava eliminar qualquer heresia dentro de suas fronteiras. Com a expulsão dos judeus da Espanha pelos Reis Católicos em 1492, muitos judeus se refugiaram em Portugal, onde inicialmente encontraram relativa segurança. No entanto, em 1496, o rei Manuel I de Portugal, sob pressão de Isabel de Castela, assinou um decreto que ordenava a expulsão dos judeus que se recusassem a conversão ao cristianismo.

Os cristãos para se desculparem apontavam a teimosia dos judeus em recusarem reconhecer a natureza divina de Jesus Cristo, o Messias. Durante a Idade Média, e até aos tempos modernos, essa era a narrativa com que muitos cristãos justificavam a hostilidade e a perseguição contra os judeus. Esse argumento foi um dos principais pretextos para o antissemitismo cristão e desempenhou um papel significativo na forma como os judeus foram tratados. Na teologia cristã medieval, a crença central era que Jesus era o Messias prometido e a encarnação de Deus. Para os cristãos, a aceitação de Jesus como Salvador e Messias era fundamental para a salvação. A recusa dos judeus em aceitar essa crença era vista não apenas como um erro religioso, mas como uma rejeição direta da verdade divina.

Os judeus eram frequentemente acusados de incredulidade e de ser obstinados por não reconhecer a divindade de Cristo. Esse era o argumento frequentemente utilizado para legitimar as políticas de discriminação e violência contra os judeus, assim como a expulsão e a conversão forçada. Como resultado, muitos judeus foram forçados a se converter ao cristianismo, tornando-se os chamados "cristãos-novos". Apesar da conversão, muitos desses cristãos-novos continuaram a praticar secretamente o judaísmo, o que os tornava alvos fáceis para a Inquisição. O alvo do tribunal da Inquisição eram os hereges, neste caso os falsos cristãos-novos que praticavam o judaísmo em segredo, o criptojudaísmo.

A Inquisição acabou por se estender também aos muçulmanos convertidos ao cristianismo, que eram dados pelo nome de mouriscos. Enfrentaram discriminação e segregação. Apesar de se converterem ao cristianismo, muitos foram vistos com desconfiança, e suas práticas muçulmanas anteriores foram usadas para justificar a segregação e a perseguição. A ideia de que a origem étnica poderia influenciar o comportamento religioso e moral persistiu. Isso era o que ainda hoje é referido na linguagem comum, que está muito para lá da questão meramente religiosa, por antissemitismo em relação aos judeus, e islamofobia em relação aos muçulmanos. Esta confusão entre religião e etnia resultou na estigmatização dos conversos como diferentes ou impuros, independentemente de sua conformidade com a nova religião. Isso perpetuou a exclusão social e a marginalização remetendo-os para o modo de viver em ghettos.

Durante mais de dois séculos, a Inquisição portuguesa perseguiu, prendeu, torturou e executou milhares de pessoas acusadas de heresia. Os cristãos-novos foram frequentemente alvo de denúncias, muitas vezes motivadas por inveja, vingança pessoal ou interesses económicos. Eles eram submetidos a julgamentos injustos, torturas e, em muitos casos, condenados à morte na fogueira durante os autos-de-fé, que eram cerimónias públicas como método de execução das sentenças judiciais. A Inquisição teve um impacto devastador na sociedade portuguesa. Muitos cristãos-novos fugiram do país para escapar da perseguição, levando consigo toda a sua inteligência e conhecimentos especializados, que se estendiam dede a arte de negociar até às várias disciplinas da ciência em que avultava, por exemplo, a medicina. Aqueles que permaneceram viviam sob constante medo e suspeita, e a atmosfera de paranoia e repressão sufocou o progresso intelectual e cultural do país. Além disso, a Inquisição alimentou um profundo antissemitismo em Portugal, cujas repercussões ainda podem ser sentidas em algumas partes da sociedade. A desconfiança e o estigma contra os cristãos-novos deixaram cicatrizes duradouras na identidade nacional e nas relações comunitárias.

Hoje, a Inquisição é amplamente reconhecida como uma das mais brutais manifestações de intolerância religiosa e fanatismo na história europeia. Em Portugal, o legado da Inquisição é uma lembrança dolorosa da intolerância e da perseguição em nome da fé. O ódio religioso dos cristãos aos judeus acabou por se transformar em étnico. Na evolução das atitudes antissemitas ao longo da história, passou-se de um antissemitismo predominantemente religioso para um antissemitismo mais étnico e racial. Durante a Idade Média e o início da Modernidade, o antissemitismo era amplamente baseado em questões religiosas. Os judeus eram frequentemente perseguidos e discriminados devido às suas crenças que eram vistas como heréticas ou contrárias ao cristianismo. Isso se manifestava em acusações como a de serem responsáveis pela morte de Jesus, um elemento central da teologia cristã medieval. A partir do final do século XVIII e ao longo do século XIX, o antissemitismo começou a se transformar, passando de uma base estritamente religiosa para uma base étnica e racial.

Com o avanço do racionalismo e das ciências sociais, surgiu a ideia de que as diferenças entre grupos humanos poderiam ser explicadas através de conceitos de raça e etnicidade. Esse pensamento pseudocientífico levou à crença de que os judeus eram inerentemente diferentes e inferiores, não apenas em termos de religião, mas também de “raça”. O crescimento dos movimentos nacionalistas na Europa também influenciou o antissemitismo. Com o nacionalismo, a identidade nacional e étnica tornou-se um aspeto crucial da coesão social. Os judeus, frequentemente vistos como uma “nação” ou grupo distinto dentro de outros países, foram associados a uma ideia de “não pertencimento” ou alienação.

No século XIX e início do século XX, o antissemitismo étnico e racial começou a se manifestar de forma mais explícita e sistemática. Em muitos países europeus, a ideia de que os judeus eram uma ameaça à pureza racial e cultural tornou-se predominante. Essa forma de antissemitismo encontrou expressão em políticas e ideologias que afirmavam a superioridade de certas “raças” e buscavam a segregação ou eliminação dos judeus. Essa transformação teve a sua máxima expressão no regime nazi da Alemanha, que levou o antissemitismo étnico e racial ao extremo. O Holocausto, que visou o extermínio sistemático dos judeus europeus, foi fundamentado na ideia de que os judeus eram uma ameaça racial existencial e inferior. O antissemitismo dos nazis foi baseado em pseudociência racial, propaganda e uma ideologia de pureza racial. Um dos genocídios mais horrendos da história. O legado do antissemitismo étnico continua a influenciar a maneira como o preconceito e a discriminação contra os judeus ainda se manifesta nos dias de hoje. Muitos esforços têm sido feitos para corrigir essas injustiças históricas através da promoção do diálogo inter-religioso. 

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