sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Os despertares de 700 a.C. De Hesíodo a Menassés. Dos Upanishades aos Ritualistas de Lu


Na Grécia de 700 a.C., aparece Hesíodo, um dos poetas mais importantes da Grécia Antiga. Ele é considerado, junto com Homero, uma das figuras fundadoras da literatura grega. Hesíodo é conhecido principalmente por duas obras: "Teogonia" e "Os Trabalhos e os Dias". Na Teogonia, Hesíodo narra a origem dos deuses e do cosmos. Ele descreve o nascimento dos deuses, as genealogias divinas e como o mundo e os poderes divinos foram organizados. A Teogonia é essencial para a compreensão da mitologia grega, pois sistematiza as diversas lendas e mitos que circulavam na Grécia Antiga. Em Os Trabalhos e os Dias, um poema didático, aborda temas como a justiça, o trabalho e a moralidade. Hesíodo oferece conselhos práticos e éticos, abordando as dificuldades da vida rural e as virtudes necessárias para uma vida justa. O poema também introduz o mito das cinco idades da humanidade: Ouro, Prata, Bronze, Heroica e Ferro. Descreve o declínio progressivo da moral e da felicidade humana.

Hesíodo é importante não só por sua contribuição literária, mas também porque as suas obras refletem as preocupações da sociedade grega da época, como a justiça, a ordem cósmica e as responsabilidades humanas. 
Enquanto Homero é conhecido por seus épicos heroicos, como a Ilíada e a Odisseia, que exaltam os feitos de heróis e deuses em um contexto de guerra e aventura, Hesíodo foca em temas mais ligados à origem do cosmos, à justiça e à vida quotidiana, oferecendo uma visão do mundo que é mais moralista e pragmática. Assim, enquanto Homero celebra a glória heroica, Hesíodo se alinha mais com a visão cosmológica e moralista que ressoava nas tradições dos hititas e hurritas.

Hesíodo é, de facto, diferente de Homero em vários aspetos, tanto em termos de estilo literário quanto em suas preocupações temáticas e filosóficas. Há paralelos que podem ser traçados com as tradições mitológicas e literárias dos hititas e hurritas. Tanto na Teogonia de Hesíodo como nas mitologias hititas e hurritas, há narrativas detalhadas sobre a origem do mundo e dos deuses. Por exemplo, nas tradições hititas e hurritas, há mitos sobre a sucessão de deuses e o estabelecimento da ordem cósmica, algo que também aparece em Hesíodo com a ascensão de Zeus e a organização do panteão grego. A história de Cronos devorando seus filhos e sendo derrotado por Zeus tem ecos em mitos hititas, como a luta entre o deus Teshub e seu pai, Kumarbi, que também envolve temas de sucessão divina e conflitos entre gerações de deuses. Essas semelhanças podem ser atribuídas ao facto de que as culturas do Mediterrâneo e do Próximo Oriente estavam em contacto constante, trocando ideias, mitos e práticas religiosas. 

Em Israel de 700 a.C., é tempo de transição, com o início do judaísmo e a entrada em cena de Menassés. O ano 700 a.C. foi, de facto, um período de transição significativo na história de Israel, marcado por importantes mudanças religiosas e políticas, que tiveram um impacto duradouro na formação do judaísmo. Durante essa época, o Reino de Judá, no Sul, vivenciou transformações profundas, tanto em termos de liderança quanto de práticas religiosas. O Reinado de Menassés (697-643 a.C.) – Menassés foi um dos reis mais controversos de Judá, governando por cerca de 55 anos, o que faz dele o monarca mais longevo da história do reino. Ele era filho do rei Ezequias, conhecido por suas reformas religiosas que centralizaram o culto em Jerusalém e combateram a idolatria.

Ao contrário de seu pai, Menassés é descrito na Bíblia como um rei que reverteu muitas das reformas religiosas de Ezequias. Ele é frequentemente criticado por ter introduzido novamente práticas consideradas idólatras, como a adoração de Baal, deuses estrangeiros, e até mesmo por ter permitido a instalação de altares a outros deuses no Templo de Jerusalém. Essas ações são vistas como uma tentativa de alinhar-se com as práticas religiosas da Assíria, que era a potência dominante na região na época. O Reinado de Menassés é frequentemente apontado como um período em que a fé israelita passou por uma crise significativa, com uma grande mistura de práticas religiosas. No entanto, essa fase também provocou uma reação dentro de Judá, que acabou por reforçar a necessidade de uma reforma religiosa e de uma volta ao monoteísmo estrito, o que mais tarde culminaria nas reformas de Josias, seu neto.

Este período, em todo o caso marca a Transição para o Judaísmo e Monoteísmo. Embora Menassés seja frequentemente retratado como um rei que promoveu a idolatria, é importante notar que o seu reinado ocorre em um contexto mais amplo de evolução religiosa em Israel e Judá. Durante este período, ideias monoteístas começaram a se fortalecer entre alguns grupos, especialmente entre os profetas e os escritores que influenciariam as tradições bíblicas. A reação contra as práticas de Menassés e a experiência do exílio babilónico (posterior) seriam fatores cruciais na consolidação de um monoteísmo estrito que se tornaria a base do judaísmo. Durante essa época, profetas como Isaías (que atuou um pouco antes de Menassés) e, posteriormente, Jeremias, denunciaram a idolatria e a injustiça social, clamando por uma volta à fidelidade e ao Deus de Israel. Esses profetas ajudaram a moldar a visão de um Deus único e transcendente, que exigia justiça e fidelidade, preparando o terreno para as reformas de Josias e a eventual consolidação do judaísmo. Assim, o período em torno de 700 a.C. em Israel, especialmente durante o reinado de Menassés, foi um tempo de transição crucial, onde as tensões entre o sincretismo religioso e o emergente monoteísmo começaram a definir o futuro religioso do povo de Israel, eventualmente levando ao desenvolvimento do judaísmo como uma fé distinta.

Na Índia de 700 a.C., surgem os Upanishades, o foco já não é o rito exterior, mas a introspeção. Representam uma fase importante no desenvolvimento do pensamento religioso e filosófico na Índia antiga. Diferentemente dos Vedas anteriores, que enfatizavam os rituais exteriores e a prática sacrificial, os Upanishades marcam uma transição para a introspeção e a exploração espiritual interna. Esses textos, considerados parte da literatura védica, focam em questões profundas sobre a natureza da realidade, o conceito de Brahman (o princípio universal) e Atman (a alma ou eu interior). A ideia central dos Upanishades é que a compreensão e a realização do Atman como uma manifestação do Brahman é o caminho para a libertação espiritual (moksha), afastando-se da ênfase anterior nas práticas rituais.

Essa mudança de foco dos ritos exteriores para a meditação e a sabedoria introspetiva simboliza um movimento em direção a uma filosofia mais contemplativa, que influenciaria profundamente o desenvolvimento das religiões e filosofias indianas posteriores, como o Hinduísmo, o Budismo e o Jainismo. Nos Upanishades, o conceito de Atman não é semelhante ao niilismo. Na verdade, os dois conceitos são bastante distintos, tanto em suas origens quanto em suas implicações filosóficas. 
O niilismo é uma filosofia que nega a existência de valores ou significados objetivos na vida. No niilismo, não há uma essência eterna ou uma verdade última a ser descoberta; em sua forma mais extrema, o niilismo afirma que a vida e o universo carecem de propósito ou sentido intrínseco. Essa visão pode ser considerada pessimista ou desencantada, em contraste com a abordagem espiritual dos Upanishades. 

Atman é o eu interior, a essência imortal de um indivíduo, que é visto como idêntico ao Brahman, a realidade última ou o princípio cósmico universal. A realização de que o Atman é, na verdade, o Brahman leva à libertação (moksha) do ciclo de renascimento e morte (samsara). Esse conceito é profundamente espiritual e positivo, indicando a existência de uma verdade suprema e eterna dentro de cada ser. Portanto, enquanto o Atman nos Upanishades representa a busca por uma verdade universal e transcendente, o niilismo rejeita a ideia de que tal verdade ou propósito exista. As duas perspetivas têm abordagens filosóficas e espirituais muito diferentes.

Na China de 700 a.C., na civilização chinesa, é o tempo dos príncipes, do li e dos ritualistas de Lu evocando o antigo rei e sábio Shun. Ocorre um período de transformações significativas, marcado pelo que é chamado de Período das Primaveras e Outonos (aproximadamente 770 a.C. - 476 a.C.). Esse período é caracterizado pela fragmentação do poder central e o surgimento de estados regionais governados por príncipes, conhecidos como Zhuhou (诸侯), que exerciam poder em nome do rei Zhou, mas com considerável autonomia. Os príncipes dos estados regionais começaram a ganhar força e se tornaram as figuras centrais do poder político. Apesar de reconhecerem a autoridade nominal do rei Zhou, eles exerciam um governo independente em suas próprias regiões, muitas vezes entrando em conflitos uns com os outros. Esses príncipes são lembrados por suas tentativas de consolidar e expandir seus territórios, bem como por suas alianças e rivalidades complexas.

O li (礼), que pode ser traduzido como "ritos", "etiqueta" ou "protocolo", tornou-se uma parte central da cultura e da política chinesa. Ele não apenas regulava as cerimónias religiosas, mas também ditava as normas de comportamento social e político. O conceito de li é crucial para a manutenção da ordem social, refletindo uma sociedade hierarquicamente estruturada, onde cada indivíduo tinha um papel e um comportamento esperado. Os príncipes, em particular, deveriam seguir estritamente esses ritos para legitimar sua autoridade e demonstrar o seu respeito pelo céu e pelos ancestrais.

Os Ritualistas de Lu e o Rei Shun:- Durante esse período, o estado de Lu, conhecido por sua adesão rígida aos rituais e à cultura tradicional, destacou-se como um centro de aprendizagem e preservação dos antigos costumes. Os Ritualistas de Lu, a que mais tarde viria a pertencer Confúcio (nascido em 551 a.C.), dedicaram-se a estudar e reviver as práticas rituais da antiguidade, especialmente as associadas ao antigo rei sábio Shun, que era visto como um modelo de virtude e governo ideal. O rei Shun, uma figura lendária dos tempos antigos, era exaltado por sua sabedoria, humildade e governação justa. Ele simbolizava a harmonia perfeita entre o governante e os governados, e a sua memória foi evocada pelos ritualistas como um ideal a ser seguido em tempos de crescente desordem política. Portanto, esse período na China foi caracterizado por um retorno às tradições e ao culto dos antigos sábios, à medida que os estados regionais buscavam legitimidade e orientação moral no contexto da fragmentação política. A figura de Shun, em particular, serviu como um símbolo de um passado idealizado, onde a justiça e a moralidade guiavam a ação governativa.


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