sábado, 31 de maio de 2025

A educação cívica de Tucídides a Orwell


Lendo alguns dos nomes, que apresento a seguir, e que fazem parte da literatura da educação cívica e da política, todos eles sustentam, cada um à sua maneira, que o ser humano 
é moral sobretudo por conveniência ou medo, e que tem impulsos egoístas mais fortes que os altruístas. É facilmente corrompido quando a vigilância desaparece, quando as circunstâncias estão à sua mercê, como no adágio popular: "a ocasião faz o ladrão". São por assim dizer autores que reforçam a ideia daqueles que se classificam como pessimistas antropológicos. Uma tradição crítica que rejeita a idealização do ser humano e aponta para a necessidade de estruturas -- instituições, leis, vigilância, educação profunda -- que compensem esse déficit moral de origem.

Tucídides (século V a.C.) -- é conhecido pela História da Guerra do Peloponeso. É um dos primeiros exemplos claros de um pessimista antropológico. Para ele, a guerra revela a verdadeira natureza humana, escondida em tempos de paz. Ele mostra como, em momentos de crise, os homens abandonam rapidamente as leis, a moral e o sentido de justiça. “A guerra é um mestre violento e expõe o caráter das pessoas com nitidez.”

Nicolau Maquiavel (1469–1527) -- muitas vezes mal compreendido, não era cínico por prazer, mas por realismo político. Ele via o homem como volúvel, ingrato, mentiroso e motivado principalmente pelo interesse próprio. O governante, dizia ele, deve partir do princípio de que os homens agirão mal sempre que puderem. “Os homens hesitam menos em ofender quem se faz amar do que quem se faz temer.”

Thomas Hobbes (1588–1679) -- descreve a vida humana no seu estado natural como “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta.” Para ele, os homens são naturalmente movidos por medo, desejo e orgulho, e só a presença de uma autoridade forte (o Leviatã) os mantém em relativa ordem. “O homem é lobo do homem.” (Homo homini lupus)

François de La Rochefoucauld (1613–1680) -- o moralista francês escreveu centenas de máximas sobre a hipocrisia e o egoísmo humano. Para ele, quase toda a virtude é interesse disfarçado, e até os atos aparentemente nobres têm motivações ocultas. “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.”

Arthur Schopenhauer (1788–1860) -- via o ser humano como movido por uma vontade cega e insaciável, essencialmente egoísta e propenso à crueldade. A moralidade verdadeira, para ele, era rara e baseada na compaixão, não em convenções sociais. “A natureza humana é um tecido de egoísmo, vaidade, malícia e ignorância.”

Sigmund Freud (1856–1939) -- via o ego humano como um palco de conflitos entre o id (impulsos primitivos), o superego (repressões morais) e o ego (o ser real). Ele acreditava que a civilização era um compromisso frágil, que mantinha os impulsos destrutivos sob controlo, mas sempre à beira de falhar. “O homem civilizado trocou uma parcela de felicidade por uma parcela de segurança.”

George Orwell (1903–1950) -- com a sua experiência na Guerra Civil Espanhola e observando os totalitarismos do século XX, perdeu a fé em ideais puros. Ele via como o poder, a propaganda e a obediência cega dominavam facilmente a moralidade individual. “O poder não corrompe apenas os líderes. Corrompe o cidadão comum, que escolhe não ver.”

Nas redes sociais -- fóruns anónimos, comentários de notícias, etc. -- vemos uma explosão de discursos de ódio, linchamentos morais, trolling gratuito, pornografia extrema, humilhação pública. Esse tipo de comportamento sugere que, quando o superego (a censura interna) é suspensa pela ausência de consequências, emerge um eu primitivo, agressivo, egocêntrico e narcisista. Freud se cá estivesse diria que era isso que ele via: como o ser humano age quando está liberto da vergonha social e da punição jurídica. Mesmo indivíduos considerados "bons cidadãos" ou "pessoas de bem" revelam condutas chocantes quando têm poder para o fazer e se sentem impunes, que é o que acontece na malfadada corrupção do poder político. E é o que se passa nos estádios de futebol. Este último exemplo é particularmente grave: a moral humana é profundamente mimética em que o indivíduo segue ou vai atrás da manifestação que emerge do grupo no seu todo.

As plataformas digitais, por sua vez, exploram a vaidade, a comparação social, o voyeurismo, o tribalismo e o vício, tudo traços que o pessimismo antropológico denuncia há séculos. Likes e seguidores alimentam a necessidade de validação constante. Algoritmos privilegiam a indignação, o medo e o escândalo, porque geram mais cliques. O discurso moral virou produto de performance e capital simbólico. Ou seja, a própria arquitetura digital está construída de acordo com a verdadeira natureza humana que, tal como é denunciada pelos pessimistas antropológicos, é cínica.

Nunca foi tão fácil alguém pregar empatia, justiça social ou amor ao próximo num post… e no momento seguinte: ignorar a miséria alheia; tratar mal alguém no trânsito ou no trabalho; disseminar fake news contra os próprios princípios. A distância entre o discurso e a prática, que sempre existiu, hoje ganha visibilidade em tempo real, tornando mais evidente que a moral pública muitas vezes é só performance. Portanto, a virtude é ilusória sem vigilância. Hoje, como sempre, é o medo da punição, não a convicção ética, que guia a conduta. Só que agora as câmaras, os algoritmos e os registros digitais funcionam como novos deuses que tudo veem, e mesmo assim, as pessoas tentam burlar o sistema.

Se antes o pessimismo antropológico era uma hipótese, hoje ele é observável em tempo real, com dados, vídeos, capturas de tela e logs digitais. O ser humano parece, muitas vezes, indigno da imagem que criou de si mesmo. A educação cívica é uma espécie de verniz civilizacional muito fino que estala à mais pequena contrariedade.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

O egoísmo e a moral - a diferença entre a teoria e a prática


Quantas vezes as pessoas se desiludem com uma pessoa que tanta moral prega quando chega o momento da prova dos 9 ao egoísmo e falha? 
Há uma diferença profunda, e frequentemente trágica, entre o raciocínio moral e a ação moral, sobretudo no que toca ao egoísmo. Muitas pessoas conseguem raciocinar moralmente com clareza, articulando princípios elevados como empatia, altruísmo, justiça. São capazes de falar e escrever sobre moralidade com grande eloquência. No entanto, agir moralmente exige coragem, sacrifício e coerência prática, o que é bem mais raro.

A desilusão ocorre justamente quando se descobre que alguém que defendia vigorosamente valores morais - muitas vezes até com veemência - não age conforme esses valores quando é testado na prática. E por vezes, como você observa, a contradição é tão grande que a pessoa acaba revelando um egoísmo mais refinado, mais dissimulado, e até mais nocivo, do que o de quem nunca fez discursos morais. Isso acontece porque o egoísmo pode esconder-se sob a máscara da moralidade, sobretudo quando ela é apenas racionalizada, mas não vivida interiormente. A verdadeira ação moral implica renúncia, e nem todos estão dispostos a isso quando a situação exige mais do que palavras. Muitos usam o discurso moral como instrumento de autoimagem ou poder social, e não como bússola de vida.

Nietzsche, por exemplo, denunciava isso como "moral de rebanho", e autores como Pascal já diziam que "o coração tem razões que a razão desconhece", indicando que o nosso comportamento nem sempre segue o nosso raciocínio. Essa constatação pode levar ao cinismo, mas também pode tornar-nos mais humildes e atentos à coerência entre o que dizemos e o que fazemos. Afinal, como dizia Montaigne: “Dizer é fácil, fazer é difícil.”

Pela lente psicológica, a diferença entre raciocínio moral e ação moral, especialmente em relação ao egoísmo, pode ser compreendida a partir de várias dinâmicas internas e inconscientes.  
Muitos indivíduos constroem uma imagem de si mesmos baseada em valores ideais - generosidade, justiça, solidariedade. Essa imagem faz parte do que Freud chamaria de ideal do ego: um modelo de quem gostaríamos de ser. Contudo, esse ideal nem sempre corresponde às forças emocionais reais que nos governam - como o medo, o desejo de reconhecimento ou a necessidade de controlo. O discurso moral pode então servir como compensação ou máscara para aspectos mais egocêntricos ou sombrios.

Leon Festinger descreveu o fenómeno que tem a ver com a contradição de alguém que acredita que é bom ajudar os outros, e já agora pagar impostos, mas na hora da verdade falha em toda a linha. Mas, se confrontada com isso, arranjam sempre desculpas com facilidade: 
“os outros não merecem”; “ninguém ajuda, por que eu deveria?”. Assim, a mente encontra formas de proteger o ego da sensação de falha moral. Segundo autores como Daniel Kahneman e Robert Trivers, o autoengano é um mecanismo adaptativo. Em vez de mentir deliberadamente, muitas pessoas acreditam sinceramente em sua própria virtude, mesmo quando suas ações dizem o contrário. A isto se dá o nome de "dissonância cognitiva" -o que torna o egoísmo invisível para o próprio sujeito, que se vê como alguém moral e justo, apesar de seu comportamento sugerir o oposto.

O egoísmo pode ser alimentado por feridas psíquicas antigas: carências afetivas, traumas, medo do abandono. O indivíduo pode desenvolver padrões de autoproteção que parecem egoísmo, mas que são, na verdade, estratégias inconscientes de sobrevivência emocional. Muitas vezes, o discurso moral serve para controlar os outros, e não a si mesmo. Psicologicamente, isso tem um nome: narcisismo (o uso da moralidade como palco para brilhar, parecer superior, ou manipular sem verdadeira empatia).

O raciocínio moral é um produto da mente consciente e lógica. Já a ação moral exige uma integração mais profunda, envolvendo o emocional, o inconsciente e o caráter real da pessoa. É aqui que muitos falham. Apesar de bem disfarçado, o egoísta revela-se nos momentos decisivos. Esta característica humana é um dos suportes dos pessimistas antropológicos. Por exemplo, se pudessem mais gente tentaria fugir aos impostos apesar de reclamarem por um serviço nacional de saúde gratuito para todos. Ou prevaricariam seja no código de estrada, ou outras coisas se não fossem multados ou não fossem para a prisão.

Quando um pessimista antropológico diz que a maioria foge aos impostos, prevarica no código da estrada ou comete pequenas infrações morais sempre que sente que pode escapar impune, está a tocar num ponto fundamental: o sentido moral de grande parte das pessoas não é um imperativo interior, mas uma convenção exterior. O medo da punição é o principal regulador da conduta, não a consciência.

Essa é, aliás, uma das grandes constatações de autores como Hobbes, que via o homem como essencialmente movido por interesses próprios e medo da punição, e por isso defendia a necessidade de um Estado forte. Freud acreditava que a civilização só é possível reprimindo impulsos individuais perigosos, em que a moral é mais uma construção do superego baseada no medo e na culpa. Jung, que dizia que o "bem" não é espontâneo na maioria das pessoas, exige um trabalho profundo de autoconhecimento e integração da sombra. A maioria dos seres humanos não é espontaneamente moral, mas condicionado a sê-lo. E, quando a vigilância externa desaparece, a moralidade também tende a evaporar. Isto não é misantropia gratuita; é uma observação empírica, quase estatística. E talvez por isso seja tão doloroso para alguns, porque desmascara o verniz civilizacional. Este tipo de pessimista não é ser um niilismo desesperado, mas um realista lúcido.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

A Social-democracia está a chegar ao fim


Os nossos concidadãos acabaram por se desencantar da social-democracia (de espetro alargado) capturada pela permissividade pós-moderna. Daí o colapso da autoridade simbólica e o esvaziamento moral do discurso político. O “estou farto” é o grito de um cansaço civilizacional. Hoje, muitos europeus votam na extrema-direita, não por adesão ideológica, mas por uma raiva visceral. Durante décadas, a social-democracia equilibrou liberdade com responsabilidade, mercado com redistribuição, progresso com coesão. Mas, nas últimas décadas, rendeu-se à cultura da culpa do “si” para desculpar o “Outro” (“coitadinho estrutural” na gíria do metaforista). E assim cresceu o ressentimento.

Sentindo-se órfão e inseguro da sua própria identidade, fartou-se da erosão das suas instituições que abandonaram os valores do esforço e da responsabilidade individual; da importação acrítica de modelos identitários desconectados da sua própria realidade; que a extrema-direita hoje instrumentaliza com destreza. Porque a esquerda, refugiando-se no “politicamente correto” abdicou da coragem normativa, deixando que as bases sociais se desagregassem. Não é sede de fascismo, mas voto de protesto. Um grito: “Se não posso confiar nas elites que abdicaram de me proteger e representar, então vou confiar em quem me ouça e me proteja, mesmo que isso seja feito à bruta.”

Como o chavão “anda tudo ligado” tem, de facto, muito que se lhe diga, “não é por acaso” que ‘coincidências e nexos de causalidade’ sempre deixaram os seres humanos – os que pensam e meditam com o cérebro – perplexos com os paradoxos dos que pensam com os pés e as mãos. Mas quem leia História Universal todos os dias, ou a Bíblia de vez em quando, sabe que sempre houve migrações, êxodos e viajantes. E que estes movimentos nunca foram pacíficos em lado nenhum. Moisés ou Eurico o Presbítero que o digam. Ou os Romenos.

A empatia é boa, mas quando em excesso é bloqueadora da ação eficaz da proatividade em benefício da sociedade. De certo modo, paradoxal, a empatia, em sua essência, é fundamental para a coesão social e a justiça. Ela permite que compreendamos o sofrimento alheio e que sejamos movidos a ajudar. No entanto, quando levada ao excesso ou mal direcionada, pode tornar-se um obstáculo à ação eficaz. Isso ocorre por algumas razões.

Uma empatia excessiva pode gerar sofrimento vicário tão intenso que a pessoa se torna incapaz de agir. Fica paralisada emocionalmente. Sente tanto a dor do outro que entra em estado de angústia ou impotência. A empatia excessiva pode fazer com que alguém se perca em casos particulares e não consiga priorizar ações mais amplas e sistémicas, necessárias ao bem comum. Há um desvio da racionalidade por dissonância cognitiva. A dissonância cognitiva tem a ver com um mal-estar provocado por um conflito entre o que uma pessoa pensa, o que sente e o que faz. É o caso da pessoa que se vê como honesta, mas se pega mentindo para não ter de dar maiores explicações, e depois acaba se sentindo mal por isso.

Às vezes, a empatia pode levar a decisões contraproducentes do ponto de vista social, como proteger alguém próximo mesmo quando isso prejudica outros ou a sociedade como um todo (por exemplo, decisões judiciais ou políticas lenientes motivadas por comoção). Cansaço moral: Excesso de empatia em contextos cronicamente dolorosos – desastres, guerras, miséria – pode esgotar a capacidade de reação e gerar um tipo de "fadiga empática". Nesse sentido, muitos pensadores como Paul Bloom, em Against Empathy defendem que a empatia deve ser equilibrada com racionalidade, justiça e responsabilidade. Um agente verdadeiramente proativo age não só por empatia, mas por um sentido ético mais amplo, que inclui compaixão organizada, análise estratégica e prioridades claras.

Quando sofremos demais as dores do próximo ficamos de tal maneira angustiados que só nos apetece desaparecer. Essa é uma constatação profunda e humana. Quando sentimos demasiado as dores do outro, a angústia torna-se tão insuportável que não resta em nós impulso de ajudar, apenas o desejo de desaparecer. Não devemos ser obstinados em calçar os sapatos dos outros. O excesso de identificação pode desfigurar tanto o caminho alheio como o nosso.

Tropeça não por falta de empatia, mas por excesso dela. Empatia não é mimetismo. Calçar os sapatos dos outros, se feito com obstinação, descalça-nos da lucidez. E quando for preciso dar corda aos cordões dos sapatos, ficamos paralisados. Quem vive nos sapatos dos outros, tropeça nos próprios cordões.

Invenção da roda


A roda, enquanto artefacto tecnológico, parece ter sido inventada apenas uma vez, no sentido mais estrito da palavra, e depois espalhada por diferentes culturas. As evidências arqueológicas conhecidas apontam para uma origem única, na região da Mesopotâmia, por volta de 3500 a.C., sendo inicialmente usada em tornos de oleiro, antes de ser aplicada ao transporte.

As primeiras rodas conhecidas surgem na Suméria, na antiga Mesopotâmia (atual Iraque), como parte de carros rudimentares com eixo fixo e rodas maciças de madeira. A roda parece ter se difundida gradualmente para a Europa, Ásia Central, Índia e China. A invenção da roda dependia de tecnologias prévias: domínio do trabalho com madeira, ferramentas adequadas, domesticação de animais de tração e superfícies de terreno razoavelmente planas. Isso explica porque não surgiu espontaneamente em todos os lugares.

E quanto às Américas ou África Subsaariana? Nas civilizações pré-colombianas – Maias, Astecas ou Incas – não se conhece o uso da roda para transporte, embora tenham usado brinquedos com rodas. Isso indica conhecimento do conceito, mas ausência de aplicação prática, talvez por fatores relacionados com o terreno montanhoso (como nos Andes). Ausência de animais de tração adequados. Outras formas de transporte mais eficientes para o contexto (como redes de caminhos pedonais ou uso de canoas). Na África Subsaariana, também não há evidência de uso independente da roda antes do contacto com culturas afro-asiáticas.

Todas as evidências conhecidas sugerem uma invenção única e posterior difusão cultural. No entanto, o conceito em si (objeto circular giratório) pode ter sido intuído em diferentes lugares (como os brinquedos com rodas nas Américas), mas sem desenvolvimento tecnológico completo. Mas há diversos exemplos de tecnologias e invenções que surgiram independentemente em culturas diferentes que não tinham contacto entre si. Este fenómeno é conhecido como invenção paralela ou invenção independente, e ocorre quando sociedades distintas, enfrentando problemas semelhantes, chegam a soluções semelhantes por conta própria.

A Agricultura desenvolveu-se independentemente em pelo menos sete regiões do mundo: Crescente Fértil (Mesopotâmia); China; Nova Guiné; Mesoamérica; Andes; África Ocidental; Sudeste dos EUA. Cada uma domesticou plantas e animais diferentes, adaptadas ao seu ecossistema. É quase certo que o uso controlado do fogo tenha sido desenvolvido independentemente por diferentes grupos humanos arcaicos (como Homo erectus) em vários continentes, há cerca de 1 milhão de anos ou mais. Arco e flecha surgiu em diferentes épocas em diversas partes do mundo: África (~70.000 a.C.); Europa (~20.000 a.C.); Américas (~10.000 a.C.). É provável que tenha sido reinventado mais de uma vez, dadas as suas formas variadas.

A ideia de construir abrigos com materiais locais (barro, madeira, pedra) surgiu independentemente em várias culturas. Canoas, jangadas e navios primitivos foram desenvolvidos em várias regiões isoladas, como: Ilhas do Pacífico; Nilo; Bacia Amazónica; Europa pré-histórica. Os maias, os babilónios e os chineses criaram sistemas de numeração complexos sem contacto entre si. Por exemplo, os maias usavam um sistema vigesimal com símbolo para o zero, algo também raro na Antiguidade. Egípcios, maias, chineses e babilónios desenvolveram calendários baseados em observações astronómicas, ajustando-se a ciclos solares e lunares. Tudo isso sem contacto entre si. A fundição do cobre e do ferro surgiu independentemente em várias regiões. Cobre: Mesopotâmia, Andes, Europa Central. Ferro: Anatólia, Índia, África Subsaariana (a famosa metalurgia de ferro no Níger e em Nok, Nigéria).

O conceito de representar ideias com símbolos surgiu separadamente, como Escrita pictográfica (ou proto-escrita). Cuneiforme (Mesopotâmia). Hieróglifos (Egito). Escrita chinesa arcaica. Sistema olmeca/maia (Mesoamérica).

A história humana está repleta de convergências culturais: sociedades enfrentam problemas semelhantes (comida, abrigo, violência, tempo, saúde, transporte) e chegam a soluções semelhantes, mesmo que nunca tenham tido contacto. Isso mostra que, embora a criatividade humana seja diversa, ela é também limitada pelas condições materiais e ambientais. Além do mais – Estruturas morais como tabu de incesto, regras sobre homicídio, roubo, etc., surgiram de forma espontânea e paralela em todas as sociedades humanas, mesmo sem contacto. Estas invenções paralelas revelam um ponto fascinante sobre a natureza humana: dada uma condição semelhante, a mente humana tende a encontrar soluções parecidas. Isso sugere que há padrões universais de criatividade, necessidade e adaptação, mesmo num mundo outrora totalmente desconectado.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Sociopatia e educação infantil


Será verdade que nesta década de 2020 se regista um índice de mais sociopatas do que na década de 1980 que culminou com a queda do Muro de Berlim. E que isso se explica com a doutrina de não punir as crianças na idade devida?

A ideia de que há mais sociopatas hoje do que nas décadas passadas, como a de 1980, é controversa e difícil de comprovar empiricamente. A sociopatia (ou perturbação de personalidade antissocial) não é algo fácil de medir ao longo do tempo, pois depende de diagnósticos clínicos, contextos culturais e mudanças nos critérios diagnósticos (como os do DSM).

Contudo, podemos considerar que nas últimas décadas houve uma mudança cultural significativa no Ocidente quanto à forma de educar crianças. Muitos modelos passaram a valorizar mais a autoestima, o diálogo e a não punição imediata, em oposição aos métodos autoritários do passado. Há estudos que mostram que a ausência de limites claros e de consequências para comportamentos agressivos na infância pode dificultar o desenvolvimento da empatia e da responsabilidade social. Alguns psicólogos do desenvolvimento alertam que a chamada "parentalidade permissiva" pode criar crianças com menor tolerância à frustração e maior tendência a manipular ou desrespeitar normas. E este modelo educativo parece reforçar traços compatíveis com comportamentos sociopáticos leves.

Por outro lado, punições severas e autoritarismo, também estão associados ao desenvolvimento de traços antissociais, portanto, o problema pode não ser a falta de punição em si, mas a ausência de estrutura, afeto e orientação consistentes.

A ideia de que a infância até aos 8 anos como período crítico tem fundamento na psicologia do desenvolvimento. Os primeiros anos de vida são essenciais para a formação do superego (a parte moral da mente, segundo Freud) e da empatia. Crianças pequenas, por natureza, podem apresentar comportamentos que parecem sociopáticos: egocentrismo, pouca empatia, impulsividade. No entanto, isso é normal e tende a se resolver com o amadurecimento cerebral e a socialização adequada. Quando não há uma boa orientação emocional e social durante esses anos, alguns estudos sugerem que há mais risco de o padrão se fixar como traço duradouro de personalidade.

É possível que o que hoje se perceba como “aumento de sociopatas” seja, em parte, um efeito de mais diagnósticos (por maior atenção à saúde mental). Mas é um facto que a maior exposição mediática e às redes sociais por parte das crianças fomenta comportamentos narcisistas, manipuladores ou egocêntricos. A mudança nos valores sociais, que valorizam a performance individual, a competição e a imagem é algo que pode legitimar ou mesmo premiar traços sociopáticos leves (como frieza emocional ou manipulação).

A credibilidade do método dedutivo popperiano quando falta o estudo empírico


Um determinado estado de coisas que hoje se verifica nos comportamentos desviantes revela que a permissividade pós-moderna, sustentada por um discurso complacente com o ‘espírito do coitadinho’, produziu mais efeitos deletérios do que benefícios. Se há 30 anos essa hipótese poderia parecer reacionária ou precipitada, hoje os dados sociais, psicológicos e culturais autorizam-nos a enunciá-la com seriedade crítica.

Possuímos um forte respaldo lógico, mesmo quando os dados empíricos ainda são escassos ou difíceis de obter com precisão, se adotarmos a estrutura dedutiva popperiana — ou seja, partindo de hipóteses plausíveis que resistem à falsificação.

A criança, nos primeiros anos (até cerca dos 7-8 anos), naturalmente manifesta comportamentos egocêntricos e impulsivos – o que inclui agressividade, mentira, manipulação e baixa empatia. Esses comportamentos não são patológicos em si, mas fazem parte do desenvolvimento e precisam de modelagem social e afetiva para serem superados. Nas últimas décadas, muitos contextos culturais ocidentais adotaram uma pedagogia do “laissez faire”, em que os adultos evitam punições, limites e confrontos com a criança, influenciados pelo preconceito ideológico de que isso podia ser confundido com autoritarismo. Ou seja, arrasaram o conceito de autoridade com o conceito de autoritarismo. Esta abordagem, embora bem-intencionada, deixou de oferecer à criança os freios emocionais e morais necessários ao desenvolvimento da empatia e do respeito pelo outro.

E é aqui que entramos com a hipótese dedutiva que consiste em admitir que se o comportamento sociopático pode emergir de uma infância em que os impulsos egocêntricos não foram contidos nem orientados, então podemos deduzir que ambientes permissivos e negligentes tenderão a produzir mais indivíduos com traços sociopáticos, sobretudo se esses traços forem reforçados culturalmente (por exemplo, pelo culto ao sucesso individual, narcisismo digital, ou banalização da mentira). E usando o método de Karl Popper, esta hipótese pode ser testada, criticada ou falseada com dados empíricos (por exemplo, comparando gerações com diferentes estilos parentais e seus índices de comportamento antissocial). Enquanto os dados são incompletos, o raciocínio tem consistência lógica e se mantém como uma hipótese plausível, exigindo atenção crítica da sociedade.

O argumento – de que a educação nos primeiros anos é uma espécie de "linha de montagem" moral – é compatível com as teorias clássicas de Jean Piaget, Erik Erikson e Kohlberg, que identificam estágios críticos do desenvolvimento moral e social. E também com John Bowlby (teoria do apego) e Wilhelm Reich (que alertava para os extremos tanto do autoritarismo como da permissividade). Assim, mesmo sem dados definitivos, faz todo o sentido usar o método dedutivo para alertar que, numa sociedade em que os impulsos infantis não são educados nem canalizados, cresce o risco de se normalizarem comportamentos antiéticos, egocêntricos ou, no extremo, sociopáticos.

A parentalidade permissiva, segundo Diana Baumrind (1927-2018), em “Effects of Authoritative Parental Control on Child Behavior” (1966), tende a produzir crianças impulsivas, com baixa autorregulação e maior tendência a desrespeitar normas. E segundo James Garbarino – Lost Boys: Why Our Sons Turn Violent and How We Can Save Them (1999) – crianças violentas são muitas vezes produto de negligência emocional e ausência de vínculos seguros. A falta de contenção emocional pode ser um fator para o desenvolvimento de frieza afetiva.

Jonathan Haidt – The Coddling of the American Mind (2018, com Greg Lukianoff) – defende uma tese mais sofisticada: A superproteção (e não apenas a permissividade) das crianças nas sociedades atuais compromete o desenvolvimento da resiliência e da moralidade madura. Essa posição não é isolada: ela vem ganhando força entre psicólogos do desenvolvimento, sociólogos, criminologistas e filósofos da educação, que passaram a observar que o relativismo moral absoluto e a recusa sistemática de autoridade criaram terreno fértil para o aumento de comportamentos narcisistas e manipuladores. Se por um lado seja inegável que as desigualdades sociais são um cadinho perene das injustiças sociais, por outro lado, a banalização da irresponsabilidade individual sob o pretexto de traumas ou desigualdades contribui para a deterioração dos vínculos de reciprocidade e das normas de convivência. Isso provocou um esvaziamento da figura da autoridade legítima – pais, professores, polícias, juízes – em nome da suspeita generalizada.

Hoje, com 30 anos de observação social, já se pode dizer que a pedagogia da complacência emocional não tornou os indivíduos mais empáticos. O excesso de complacência não formou melhores cidadãos. A recusa em educar pelo limite e pela frustração não produziu maior liberdade interior, mas sim impulsividade e fragilidade emocional.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Como explicar a transição de voto no sul de Portugal


Como se explica que os distritos do Sul, que a seguir à Revolução de Abril eram maioritariamente comunistas e socialistas, e hoje são maioritariamente do Chega? A transição do voto comunista para o socialista e, mais recentemente, para o Chega em alguns distritos de Portugal pode parecer contraditória à primeira vista, mas faz sentido quando analisada sociologicamente, historicamente e emocionalmente.

Os distritos onde o PCP foi forte no pós-25 de Abril -- Beja, Évora, Setúbal, Portalegre -- eram zonas rurais, operárias ou de latifúndio, marcadas pela pobreza, baixa escolaridade e exploração laboral. O voto comunista representava uma resposta de revolta e desejo de justiça social. Com o tempo, o envelhecimento do eleitorado do PCP, mas também a perda de ligação por modificação do tipo de classe trabalhadora, levou parte do novo eleitorado a procurar também novos canais de protesto. Primeiro passou a escolher o PS, visto como mais viável e moderado, já sem a rigidez ideológica comunista. Mas hoje, em clima de desilusão com o sistema democrático, esse mesmo eleitorado encontra no Chega um novo instrumento de protesto, mais emocional e menos ideológico.

Muitos desses territórios sentem-se esquecidos pelo poder central. Há poucos serviços, oportunidades de emprego e degradação do tecido social. Antes, a esquerda canalizava esse descontentamento. Agora, com a percepção de que todos os partidos do “sistema” são iguais, o Chega entra como a voz contra as elites. E como um mal nunca vem só, por último juntou-se a imigração, a começar pela percepção de que beneficiam de apoios do Estado que não merecem. Ao contrário do que muitos pensam, os antigos eleitores do PCP nunca foram progressistas em termos de costumes. Muitos eram conservadores nos valores: trabalho, disciplina, ordem. O discurso de Ventura, apesar de ser, além do mais, conservador ressoa com esses valores tradicionais.

Hoje o voto também já não é tão ideológico como era há cinquenta anos. Hoje é mais afetivo e reativo. Um eleitor pode ter votado comunista, socialista e agora Chega, sem pensar nas contradições programáticas, mas apenas no que sente em relação ao estado atual das coisas. A política tornou-se uma expressão emocional de medo, raiva e frustração. A esquerda tradicional não renovou o discurso para as novas ansiedades sociais (segurança, imigração, declínio económico, falta de mobilidade social). Ao manter uma retórica ancorada em velhas ideologias que já pouco sentido fazem nos dias de hoje, essa esquerda perdeu o contacto com as angústias reais de parte da população. O Chega, com mensagens simples e fortes, aproveitou esse vazio.

Bem. Para desdramatizar digo que estas mudanças eleitorais não estão a acontecer apenas em Portugal. A começar pela França, já há mais tempo que no norte industrial o voto é de Le Pen. Regiões como Pas-de-Calais e Nord, que até aos anos 80 eram bastiões do Partido Comunista Francês, hoje votam em massa no Rassemblement National (antigo Frente Nacional), de Marine Le Pen. E a explicação está na desindustrialização brutal que levou à perda de empregos e degradação urbana. O comunismo perdeu relevância e o Partido Socialista passou a ser visto como parte do “sistema”. Le Pen soube canalizar a raiva popular com mensagens simples: proteger os franceses, fechar fronteiras, castigar delinquentes. E foi assim que o antigo operário comunista se tornou o novo eleitor nacional-populista.

Após a reunificação, muitos ex-cidadãos da RDA (antiga Alemanha comunista) votaram nos sociais-democratas (SPD) e, mais tarde, migraram para a esquerda radical (Die Linke). Hoje, cada vez mais votam na AfD (Alternativa para a Alemanha), partido de extrema-direita. Porquê? Sentimento de injustiça histórica. Muitos sentiram que foram “colonizados” pela Alemanha Ocidental. Desemprego e emigração jovem agravaram o ressentimento. Perda de identidade e valores tradicionais gerou anseio por ordem e autoridade, que a AfD promete restaurar. Regiões do centro e norte italiano, antes fiéis ao Partido Comunista Italiano (PCI), passaram a votar em Matteo Salvini (Liga) e, mais recentemente, em Giorgia Meloni (Fratelli d’Italia). Salvini e Meloni usam uma retórica “popular”, evocando Deus, Pátria, Família, e atacando imigrantes, elites e a UE. O mesmo povo que antes pedia proteção contra os patrões, agora pede proteção contra os migrantes e os burocratas europeus. 

Moral da história: O voto radical migra facilmente, mas a base afetiva e cultural do eleitorado permanece: desejo de ordem, justiça e reconhecimento. Quando a esquerda não responde a isso, a direita populista ocupa esse espaço, mesmo que com uma ideologia oposta à anterior.

O estado da arte performativa


Hoje em dia, no mundo do espetáculo, veja-se a Eurovisão da Canção, o standard, o estado da arte performativa, é o excêntrico, ao ponto de um leigo lhe custar distinguir se é homem ou mulher. Isto tem sido tema de muitas reflexões no campo da estética contemporânea, da sociologia da cultura e até da filosofia da arte. O mundo do espetáculo – e a Eurovisão é um dos seus palcos mais emblemáticos – tem vindo a deslocar o eixo do “convencional” para o “excêntrico”, o “fluido” e o “ambíguo”. Isso não acontece por acaso, nem é meramente gratuito: está enraizado em transformações profundas da sociedade ocidental nas últimas décadas.

Nos últimos anos tem-se vivido a performatividade da identidade inspirada por pensadores como Judith Butler, que fez nascer o conceito de que género e identidade são performativos, e não apenas dados biológicos fixos. Ao mesmo tempo a cultura da arte evoluiu no sentido do triunfo do espetáculo sobre o conteúdo. A lógica do entretenimento massificado, especialmente a partir da televisão e, mais recentemente, das redes sociais, explorou o que é mais fácil para despertar a atenção das audiências. E o que satisfaz essa estratégia é o que é “diferente”, o que rompe com expectativas visuais e simbólicas. A distinção clara entre homem e mulher deixa de ser uma referência estável e torna-se um campo de experimentação estética e simbólica.

No mercado do espetáculo, onde há uma superabundância de oferta, ser diferente é uma estratégia de sobrevivência. A ambiguidade de género e a extravagância performativa deixam de ser tabu e passam a ser capital estético. A crise do modelo clássico de beleza e de harmonia, que outrora foi considerado belo ou artisticamente elevado, deu lugar à provocação, ao ruído, à desconstrução. O belo clássico foi substituído pelo interessante, pelo transgressor. Esse é um sintoma de uma época em que os antigos valores de ordem, clareza e distinção (inclusive sexual) foram colocados em xeque. A dessacralização das formas, e a ironia pós-moderna, fez com que vivêssemos num tempo em que o sublime e o ridículo muitas vezes se confundem. A fronteira entre arte e paródia tornou-se difusa. Para muitos leigos o que está no palco parece um carnaval sem hierarquia de sentido, onde o “bom gosto” tradicional já não tem lugar.

A Eurovisão e outros espetáculos semelhantes são, hoje, palcos de uma batalha simbólica entre a permanência de certas referências clássicas e o advento de novas expressões de identidade, muitas vezes caóticas, híbridas ou “líquidas”. Para uns, isso é libertação. Para outros, decadência. Para muitos, simplesmente confusão. Quer queiramos ou não, essa estética do excêntrico é uma assinatura da nossa época, e talvez daqui a algumas décadas, seja vista como um estilo tão reconhecível como é o caso do estilo barroco.

A História, indiferente a ideais, costuma premiar quem sabe mover-se com ela


Há uma tensão clássica entre convicção moral e legalidade institucional. Mariana Mortágua, como figura destacada do Bloco de Esquerda, frequentemente adota posições que transcendem o "legalismo" estrito, ancorando seu discurso em princípios de justiça social radical, que são pós-convencionais no sentido kohlbergiano do termo. Ela defende que os bancos, mesmo operando dentro da lei, não cumprem um dever ético para com os mais vulneráveis. Então defende a nacionalização como forma de subordinar o capital financeiro ao interesse coletivo. Mas essa posição escorrega para uma forma de fundamentalismo ético, na medida em que recusa a mediação com a complexidade institucional da vida económica, e mesmo do mundo real democrático.

O pendor do justicialismo social impõe uma visão de mundo que pode tornar-se tão totalizante como o que critica. Nega, inclusivamente, a legitimidade da pluralidade de valores numa sociedade democrática. É um risco frequente neste tipo de discursos de redenção social, que, estando ao serviço dos "outros", acaba por subjugar esses mesmos "outros" à sua própria conceção do bem. Ora isso pode ser tanto mais perigoso quanto mais bem-intencionado for.

É um raciocínio inspirador, mas demagógico, porque em nome de uma bondade, seja lá o que isso for, cultiva um desprezo por quem pensa de maneira diferente, com uma arrogância intelectual insuportável. A convicção moral elevada torna-se repugnante. O discurso, ainda que inspirado por ideais de justiça e solidariedade, ganha uma tonalidade quase messiânica, como se só houvesse uma forma correta de interpretar o bem comum: a sua.

Isso é particularmente visível quando o antagonismo deixa de ser contra práticas concretas (evasão fiscal, abuso bancário, etc.) e passa a ser contra o próprio "modelo" de pensamento divergente. Quem defende outro tipo de organização social ou económica não é apenas um adversário político, mas alguém eticamente inferior. E aí surge o desprezo, disfarçado de lucidez moral. Esse tipo de discurso pode ser eficaz para galvanizar apoiantes do politicamente correto, mas é estruturalmente demagógico. Ao simplificar dilemas complexos em termos de bem contra mal, acaba por minar o debate democrático e excluir qualquer possibilidade de compromisso, que é precisamente o que sustenta a política num Estado pluralista.

Esse tipo de político ao acreditar sinceramente que está a ser humilde, paradoxalmente o que está a ser é arrogante intelectual. porque se vê como porta-voz dos "oprimidos". Mas a verdadeira humildade política exige a consciência de que a nossa visão do bem é sempre parcial, e, portanto, discutível. Acontece que, tendo nas últimas eleições ficado só com um deputado, ela mesma, teima em persistir na liderança apesar de uma grande discordância à sua volta. Um traço preocupante da sua personalidade política: uma fidelidade quase inabalável à sua própria visão, mesmo diante de sinais claros de desgaste e rejeição. A perda drástica de representatividade do Bloco de Esquerda nas últimas eleições não parece ter gerado nela a autocrítica esperada num regime democrático maduro, onde a legitimidade vem, em última instância, do voto popular.

Persistir na liderança numa situação assim pode ser lido de duas formas: ou como coragem e coerência num momento adverso, o que os seus apoiantes dirão, ou como teimosia e cegueira política, típica de quem confunde a própria causa com a única via possível de redenção coletiva. A discordância à sua volta, mesmo entre setores da esquerda, mostra que muitos não se reveem nesse estilo autorreferencial de liderança. Em última instância, isso enfraquece o próprio campo político que ela diz defender, porque fecha o Bloco de Esquerda sobre si mesmo, isolando-o da sociedade real e tornando-o uma espécie de seita ideológica. Coerente, sim, mas impotente. E a impotência política disfarçada de pureza moral é um luxo que só serve para alimentar a frustração do eleitorado que esperava mudança concreta.

Nesse aspeto só tem paralelo com o Partido Comunista Português, outros que tais, "antes o suicídio do que ceder à realidade dos tempos que correm”. Ambos partilham uma rigidez doutrinária que roça o anacronismo: preferem manter a coerência interna das suas convicções ideológicas, mesmo que isso signifique a irrelevância política ou o isolamento social. Há uma espécie de orgulho trágico nisso. Trata-se de uma fidelidade quase litúrgica a um quadro interpretativo do mundo que já não dialoga com a complexidade da sociedade contemporânea. O problema é que essa obstinação acaba por alienar não apenas os opositores, mas também os potenciais aliados, sobretudo os mais jovens ou moderados, que buscam soluções pragmáticas e adaptadas às circunstâncias.

O resultado é o enfraquecimento da esquerda transformadora, fragmentada entre uma moral de pureza e uma realpolitik que desprezam. E enquanto isso, forças populistas ou conservadoras ocupam os espaços que esses partidos recusam por orgulho, mas que a política, como a natureza, detesta deixar vazios. O mais curioso é que, ao recusarem “ceder”, tanto o BE quanto o PCP acabam por perpetuar exatamente o que mais criticam: uma ordem social onde continuam a ser marginais. Mas agora por opção.

Infelizmente é uma ideologia que deixou de dar frutos desde a queda do Muro, salvo exceções muito semelhantes na Venezuela, Cuba, ou a sacrossanta Coreia do Norte. A China é que lhes mostrou como é que o comunismo faz oitos com as pernas dos noves (metáforas à parte) – a plasticidade quase acrobática do modelo chinês: nominalmente comunista, mas materialmente capitalista em grau muitas vezes superior ao próprio Ocidente. É um realismo estratégico que contrasta brutalmente com a rigidez ideológica do PCP ou do Bloco: partidos que parecem congelados num tempo anterior à queda do Muro de Berlim.

A ideologia que animava a esquerda radical na Guerra Fria sobrevive hoje mais como símbolo identitário do que como proposta concreta de sociedade. Cuba, Venezuela e Coreia do Norte são os últimos bastiões desse modelo fechado, onde o “povo” é constantemente invocado, mas raramente ouvido. São regimes que servem mais como fantasmas retóricos para alimentar discursos de resistência do que como inspirações viáveis para o futuro. Já a China, com todas as suas contradições – autoritarismo político e liberalismo económico seletivo – é, de facto, o grande “contraexemplo bem-sucedido” da ortodoxia marxista. Mostrou que o poder pode sobreviver e expandir-se não através da fidelidade doutrinária, mas da sua adaptação instrumental. O paradoxo é que isso exige abandonar precisamente o que Mortágua, o PCP e afins recusam largar: o conforto moral da coerência.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Convicção moral em política


Tendo em conta os trabalhos dos psicólogos Martin Hoffman e Jonathan Haidt – em que a intuição moral leva a melhor sobre o raciocínio lógico e racional sobre a moral consciente – o raciocínio moral é por vezes flagrantemente ilógico. E é neste ponto que André Ventura deu nas últimas eleições uma cabazada a Mariana Mortágua. Martin Hoffman e Jonathan Haidt são fundamentais para compreender como a moral humana funciona. O sistema moral não funciona tanto como um sistema lógico, ao contrário do que muito pensador pensa, mas como uma resposta emocional instintiva, à qual o raciocínio serve mais como advogado do que como juiz. Haidt, sobretudo, mostrou com elegância que a maior parte das decisões morais já estão tomadas antes da reflexão consciente, e que esta muitas vezes serve apenas para justificar aquilo que já sentimos.

E é exatamente aí que se percebe a eficácia de André Ventura e a fragilidade de Mariana Mortágua, do ponto de vista da comunicação política. Ventura compreende intuitivamente (ou talvez até maquiavelicamente) que a moral política das massas se move mais por sensações fortes – medo, indignação, pertença, ressentimento – do que por coerência ideológica. Ele fala diretamente ao “elefante” da metáfora de Haidt (as emoções), enquanto Mortágua tenta convencer o “condutor” (a razão), num estilo moralista e condescendente que acaba por irritar até quem poderia simpatizar com ela.

Mas o logro não fica por aqui. Todos os comentadores da bolha bem-pensante ficaram de boca aberta por terem falhado nas previsões, ao verem o Chega como segunda força no parlamento e o partido socialista, pela primeira vez em terceiro lugar. Porque o povo tem razões que a razão desconhece. O povo tem razões que a razão desconhece, e a elite comentadora continua, eleição após eleição, a cair no mesmo erro: confundir convicções próprias com diagnóstico da realidade.

A chamada “bolha bem-pensante” – composta por académicos, jornalistas, analistas e militantes que orbitam em torno de um consenso progressista – vive muitas vezes num ecossistema moral e cultural autocentrado. Nesta bolha, o Chega é visto como uma aberração moral, um “erro do sistema” que mais tarde ou mais cedo será corrigido. E, por isso, os analistas falham, porque projetam o que deveria ser em vez de escutarem o que está a ser. A emergência do Chega como segunda força e a queda do Partido Socialista para terceiro são, no fundo, o reflexo de uma erosão profunda: uma crise de confiança num sistema político que já não representa nem acolhe o desconforto real das pessoas comuns – aquelas que lidam com salários baixos, insegurança, imigração desordenada, degradação dos serviços públicos, ou um sentimento difuso de perda de controlo sobre a sua própria vida.

E o Chega, com todos os seus excessos, nomeia esses desconfortos – enquanto os outros partidos muitas vezes os racionalizam, os relativizam ou os ignoram com um tom de paternalismo. O “logro” maior talvez não esteja na ascensão de Ventura, mas na cegueira autoindulgente de quem, em vez de tentar compreender as emoções políticas dos eleitores, prefere rotulá-las como “populismo”, “irracionalidade” ou “retrocesso”. E nesse gesto, reforçam exatamente o ressentimento que fingem combater. O povo sente antes de pensar. E quem não entende isso está sempre atrasado.

Não me querendo armar em psicólogo, Mariana Mortágua terá ficado congelada nalgum ponto da adolescência a caminho do seu amadurecimento para a vida adulta. Filha, com a irmã gémea, de um grande revolucionário comunista que combateu Salazar, e os bancos à mão armada, tal aspeto não deve ser subestimado na análise destas figuras públicas: o peso do legado familiar como molde da personalidade política.

Mariana Mortágua parece, de facto, encarnar uma espécie de prolongamento afetivo-ideológico do seu pai, Camilo Mortágua, figura lendária da resistência armada ao salazarismo e à banca como símbolo do poder opressor. Crescer sob essa herança, ainda por cima partilhada com uma irmã gémea, pode ter criado nela uma missão existencial: dar continuidade a uma luta que já vinha marcada como nobre, justa e épica.

O problema é que a adolescência ideológica – essa fase em que o mundo se divide nitidamente entre o bem e o mal – só se torna um problema quando persiste na idade adulta, sem abertura para a ambiguidade, para o compromisso e para a dúvida. E a política democrática, por muito frustrante que seja, vive dessas zonas cinzentas. É por isso que o raciocínio analítico sobre um certo “congelamento” emocional ou simbólico faz sentido. Mortágua talvez nunca tenha deixado de ser a filha do guerrilheiro – o que, em vez de ser apenas um dado biográfico, parece ter-se tornado o centro da sua identidade pública. E quando a identidade está alicerçada numa fidelidade emocional ao passado, a mudança deixa de ser uma possibilidade e passa a ser vivida como uma traição. Nesse sentido, há algo de profundamente pessoal, e até trágico, na sua persistência política: ela não luta apenas por ideias; luta, talvez, para continuar a ser quem é.

Ou seja, Mortágua joga xadrez num tabuleiro de emoções; Ventura joga futebol num estádio cheio, com bandeiras, cânticos e gritos de guerra. E isso explica a “cabazada” eleitoral: não foi só uma vitória política, foi uma vitória sobre um discurso que soa a superioridade moral, muitas vezes desligado do sentimento comum. A esquerda como a de Mortágua continua a acreditar que basta estar “do lado certo da História”. Ventura percebeu que basta parecer estar do lado do povo.

domingo, 25 de maio de 2025

A ideia de Spinoza – “Deus sive Natura”


Spinoza (1632–1677) é talvez o primeiro grande pensador ocidental a romper, de forma sistemática, com a ideia de um Deus pessoal, criador e separado do mundo. No lugar disso, ele propõe que Deus é a própria Natureza - Deus sive Natura. Ou seja, Deus não é uma mente fora do mundo que cria o mundo. Deus é o conjunto de tudo o que existe - a substância infinita e todas as suas leis. Para Spinoza, não há criação no sentido de um início - a substância existe necessariamente, eternamente.

O Universo ou a Natureza é determinado por suas próprias leis, não há milagres, não há vontades externas. Não há "antes" do ser, nem necessidade de uma inteligência pessoal "criadora". Spinoza no seu tempo, foi por isso considerado um ateu, mesmo usando a palavra "Deus". O seu Deus não era o Deus tradicional. Deus, como necessidade no sentido filosófico, tinha o mesmo sentido que: dois mais dois ser igual a quatro (2 + 2 = 4). Não há espaço para um Deus voluntarista. E também não há espaço para o Nada (absoluto). Necessariamente (por necessidade) sempre existiu algo.

Spinoza foi muito fino, muito profundo, na filosofia da mente e da epistemologia. O cérebro humano não percebe a realidade tal como ela é. Ele modela uma realidade, a partir dos seus próprios mecanismos internos – evolução, sobrevivência, medo, desejo, linguagem, cultura. "Deus", então, é uma criação mental, uma projeção: uma resposta simbólica a medos profundos, sobretudo ao medo do caos, do sofrimento, da morte. O facto de termos criado a ideia de Deus não implica em absoluto que Deus exista objetivamente fora das nossas categorias mentais. Schopenhauer, por exemplo, dizia: "O mundo é uma representação." Ou seja, tudo o que conhecemos – inclusive as grandes categorias metafísicas: Deus; Alma; Causalidade; Tempo – são modos de organização mental, não janelas puras para uma realidade em si.

E isso está em sintonia com descobertas recentes da neurociência: o nosso cérebro prefere explicações causais lineares, porque fomos moldados evolutivamente para sobreviver (não para conhecer a verdade última). Quando confrontados com a vastidão, o vazio, o absurdo, nós projetamos sentido. Deus, nesse contexto, surge como a máxima projeção de sentido, estabilidade e segurança. No fundo, Deus é uma resposta emocional estruturada, antes de ser um conceito lógico necessário. Não precisamos de Deus para explicar o Universo. Precisamos apenas de coragem para viver sem um "fundamento" exterior.

Nietzsche (1844–1900) mais tarde, dá um passo ainda mais radical: Ele declara a "morte de Deus", isto é, a morte do conceito de Deus como suporte da realidade e da moralidade. Para ele, o Universo carece de sentido, não tem nenhuma finalidade imposta. O Mundo é um eterno fluxo de forças e formas. Em alguns escritos tardios, como nas anotações sobre o Eterno Retorno, Nietzsche ensaia a ideia de um Cosmos eternamente recorrente: tudo o que acontece já aconteceu infinitamente e acontecerá novamente infinitamente. Embora o Eterno Retorno seja apresentado mais como um teste - "você suportaria viver a sua vida infinitamente?" - há nele uma intuição cosmológica. O universo é cíclico, sem começo nem fim, sem criador, sem causa primeira. Assim como no budismo e em certos modelos físicos modernos - o Ser é simplesmente um facto bruto, um dado, não algo que pede explicação através de uma vontade superior.

sábado, 24 de maio de 2025

A hipermediatização de certos tipos de atentados violentos



A hipermediatização de certos tipos de atentados violentos, como tiroteios em escolas, ataques à facada e abalroamentos de multidões -- está ligado a um ciclo complexo entre exposição mediática, imitação (ou contágio comportamental) e distúrbios mentais graves, sobretudo em indivíduos com perfis psicóticos, psicopáticos ou personalidades antissociais.

Vários estudos em criminologia e psicologia demonstram que a exposição repetida a atos violentos pode gerar um efeito de imitação, sobretudo quando o ato é altamente publicitado. Este fenómeno é conhecido como “Efeito Werther” (no caso de suicídios) ou “Copycat Effect” (em atos violentos). Especificidade do ato: Quando um atentado tem uma "assinatura" clara (ex.: tiroteios escolares nos EUA, ataques com faca em França, ou atropelamentos em feiras na Alemanha), é mais provável que seja imitado em atos semelhantes. Muitas vezes são indivíduos marginalizados, com distúrbios mentais, que veem no ato violento uma forma de afirmação, vingança ou notoriedade.

Os meios de comunicação tradicionais e digitais, ao darem cobertura intensa, muitas vezes quase "espetacular", podem amplificar o impacto simbólico do atentado: Nome e rosto do agressor são muitas vezes divulgados — algo que várias instituições hoje evitam. Ora, as redes sociais alimentam loops emocionais e visibilidade entre pares. Algoritmos (YouTube, TikTok, X) podem recomendar conteúdos semelhantes, facilitando o mergulho de pessoas vulneráveis num ambiente simbólico violento.

Para pessoas com psicoses delirantes, transtornos paranoides ou traços psicopáticos, estes atentados funcionam como modelos simbólicos: O gesto violento pode ser interpretado como “missão”, “vingança justa”, “prova de superioridade” ou mesmo “redenção”. Em contextos de solidão extrema ou isolamento digital, o ataque torna-se uma última tentativa de existir socialmente, mesmo que de forma destrutiva. Um ponto mais profundo é este: quanto mais problemática uma sociedade se torne em relação ao sentido e à identidade, quanto mais atomizada, mais estes gestos extremos acontecem como formas torcidas de comunicação. Para o psicopata, é uma demonstração de poder. Para o psicótico, pode ser uma "missão messiânica". Para ambos, é uma reação niilista à invisibilidade, à ausência de sentido.

Portanto, é importante evitar dar nome, rosto e história pessoal dos agressores. E atuar ao nível da sociedade onde ela é mais vulnerável - a falta de laços humanos – visto que ao nível da psiquiatria é mais difícil por razões que para aqui agora não importam a não ser a intervenção precoce em casos de distúrbios mentais e isolamento. E a redes sociais carecem de mais regulação algorítmica para conter o contágio digital. É um fenómeno civilizacional. É um espelho sombrio do que acontece quando o indivíduo deixa de se sentir parte de um todo e encontra no gesto destrutivo um símbolo de afirmação. A hipermediatização apenas acelera e globaliza o processo.

As televisões deviam ser muito mais discretas -- especialmente na divulgação de imagens, identidades e detalhes operacionais dos atentados. Há um crescente consenso entre especialistas de que a forma como os média reportam estes eventos pode alimentar novos atos violentos, sobretudo por meio do efeito de contágio.

Ao mostrar o rosto, o nome e até imagens do ataque em ação, os média transformam o agressor num símbolo -- ainda que negativo, é uma forma de reconhecimento. Para certos perfis psicopáticos, a infâmia vale tanto quanto a fama. Imagens cruas ou repetidas podem plantar a ideia em pessoas vulneráveis. A violência passa a ser visualizável, mentalmente ensaiável.

Quanto mais familiar a cena, mais fácil se torna repeti-la. A divulgação excessiva muitas vezes se torna uma violação do sofrimento alheio, além de revitimizar sobreviventes. O foco deve ser nas respostas da sociedade, nas histórias das vítimas e lições a tirar — não na personalidade do perpetrador ou na espetacularidade da violência. A responsabilidade dos média não é apenas informar. É também educar, proteger e construir uma memória pública saudável. Num mundo onde os atentados se tornaram quase "formatos replicáveis", cada imagem conta. Menos visibilidade aos agressores pode significar menos ataques futuros.

Filosofia da Cultura: decadência ou metamorfose?


A visão “decadentista” de autores como Oswald Spengler (A Decadência do Ocidente), Arnold Toynbee ou Christopher Lasch (A Cultura do Narcisismo) apontam para uma erosão do sentido nas culturas tardias. A arte deixa de ter uma missão espiritual ou comunitária e passa a ser mero reflexo da fragmentação do eu. A excentricidade dos tempos modernos é sintoma de uma cultura que perdeu o seu eixo e se refugia na forma vazia, no ruído, no exibicionismo, ou seja, torna-se numa cultura sem alma.

A visão “libertadora” (pós-moderna), por outro lado, que remete para pensadores como Foucault, Derrida, Butler ou Baudrillard, abandonou os grandes discursos normativos (sexo, nação, religião, identidade fixa) e abriu caminho para uma pluralidade radical de expressões. Tratou-se de uma revolução simbólica que pôs fim à metafísica binária.

No fundo, o estado atual da arte - monopolizada pela performativa - pode ser lido como um espelho de uma sociedade onde os referenciais clássicos se diluíram. É um sintoma de um certo esgotamento civilizacional.  É mais um tipo de ruído para quem sente que a arte perdeu clareza, beleza e sentido espiritual. Nada disto é novo à superfície da História. Lembremos o fim do Império Romano, e depois o Renascimento na Baixa Idade Média, seguida de novo com o Romantismo no fim do século XIX até chegarmos aos dias de hoje com o mundo do espetáculo mediatizado e pós-moderno.

No século IV-V d.C., Roma já não era o coração espiritual do Império. Constantinopla substituíra Roma como novo centro de poder e fé. As elites viviam cada vez mais voltadas para o hedonismo, o luxo, os espetáculos de massas (lutas de gladiadores, competições, festivais), enquanto a estrutura moral e religiosa antiga se esfarelava. Como hoje, a cultura romana tardia deu primazia ao excesso e à forma, mesmo quando o conteúdo espiritual e ético já estava esvaziado. Os espetáculos públicos tornaram-se mais viscerais, violentos, grotescos, como forma de manter a atenção das massas. Tal como hoje, muitos espetáculos usavam o choque, a ambiguidade e o excesso como mecanismo central.

A incapacidade de distinguir o essencial do acessório, o belo do depravado, era vista por autores como Agostinho e Salviano como sinais da decadência moral de Roma. Entre os séculos XIII e XV, estamos já nos finais da Idade Média. Da passagem de um mundo teocêntrico para o humanismo renascentista. A Europa vivia uma tensão: a ordem feudal e religiosa começava a dar lugar a novas forças: o comércio, as cidades, as universidades, e os Estados nacionais. Ao mesmo tempo, surgia uma nova visão do homem: não mais só pecador ou servo de Deus, mas criador, artista, e pensador.

A arte começa a abandonar o esquema simbólico e fixo da iconografia medieval (Cristo, santos, julgamento) e passa a explorar corpo, emoção, movimento, ambiguidade (Giotto, depois Botticelli, Michelangelo). Aparece a figura do artista-exceção, o “génio” que pode reinventar o mundo (Dante, Leonardo ... No final do século XIX, muitos intelectuais e artistas europeus (particularmente em França, Áustria, Alemanha) expressavam uma profunda fadiga cultural. A civilização burguesa parecia tecnicamente avançada, mas espiritualmente estéril. Figuras como Oscar Wilde, Baudelaire, Joris-Karl Huysmans ou Klimt exploraram o artificial, o andrógino, o barroco, o perverso, ou seja, tudo aquilo que desafiava o “normal”. Havia uma angústia existencial, uma sensação de fim de ciclo — algo que também se nota hoje, muitas vezes disfarçado de euforia ou libertação.

Hoje também vivemos uma época em que os velhos referenciais estão em colapso, e uma nova visão do ser humano: fluido, híbrido, autoconstruído. Emerge, à semelhança do “novo homem” renascentista. A diferença está no conteúdo: o Renascimento acreditava profundamente na dignidade do homem; hoje, muitos artistas trabalham na chave da desconstrução e ironia, não da exaltação ou transcendência. A estética dominante hoje passa pela ambiguidade sexual, esteticismo extremo, culto da artificialidade, exaltação do exótico, do mórbido, do “estranho”. Tudo é performativo: até a identidade, o género, a dor, o prazer, a política. As categorias clássicas (masculino/feminino, sagrado/profano, belo/feio, arte/mercado) tornaram-se voláteis ou irrelevantes.

A arte não quer mais transcender ou ensinar; quer desorientar, exibir, multiplicar identidades, ocupar a tela visionada. A estética da Eurovisão, por exemplo, não é mais “musical” no sentido clássico. É um produto total de estilo, visualidade, sexualidade performada, que serve mais para criar efeito de singularidade do que para transmitir uma mensagem transcendental.

Podemos dizer que o nosso tempo - tal como Roma decadente, o fim da Idade Média ou o século XIX vive o fim de uma forma de organização simbólica do mundo. Mas enquanto os períodos anteriores preparavam um novo nascimento (o cristianismo, o Renascimento, a modernidade), o nosso parece oscilar entre a dissolução permanente e a espera de algo ainda não nomeado. Talvez uma nova ordem espiritual, ou uma nova relação com a técnica e com a verdade.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Mapa das cores políticas por concelho



A ascensão do Chega em concelhos marcados por pobreza, criminalidade, presença significativa de imigrantes e dependência de apoios sociais reflete um padrão observado em várias democracias europeias. Este fenómeno está enraizado em fatores socioeconómicos e percepções sociais que influenciam o comportamento eleitoral.

O Chega obteve votações expressivas em municípios com elevada percentagem de população estrangeira, como por exemplo Albufeira, Vila do Bispo ou Odemira. No Algarve, região com níveis de escolaridade baixos, pobreza acima da média nacional e mercado de trabalho caracterizado por sazonalidade e precariedade, o Chega conseguiu vitórias significativas. Quase um quarto da população algarvia tem nacionalidade estrangeira, e a falta de habitação adequada agrava as tensões sociais.

Os concelhos mais pobres, com mais criminalidade visível, mais população imigrante e mais dependência de apoios sociais são os que mostram maior receptividade a discursos securitários, nacionalistas e anti-sistema. Nessas zonas, há falta de oportunidades, serviços públicos precários, abandono escolar e um sentimento generalizado de impotência. O Chega aponta o dedo aos "responsáveis" - elites políticas, beneficiários de apoios considerados injustos, imigrantes, “bandidos que a polícia não pode prender”. As pessoas votam em quem parece falar a sua linguagem - sem filtros, sem rodeios. Ventura faz isso com eficácia. Mesmo quando os dados não mostram um aumento dramático da criminalidade, a percepção de insegurança é suficiente para gerar medo. Quando crimes ocorrem em zonas degradadas, especialmente envolvendo jovens estrangeiros ou minorias, o discurso do Chega encontra terreno fértil: promete “lei e ordem”, penas mais duras, polícia mais forte.

A esquerda, muitas vezes, evita o tema da segurança, com medo de parecer conservadora. E isso deixa o campo livre à extrema-direita. Não é que os eleitores do Chega vivam rodeados de estrangeiros, muitas vezes, bastam alguns casos mediáticos ou experiências diretas negativas. Em comunidades pobres, a concorrência por recursos escassos (casas, empregos, apoios) gera ressentimento: “eles recebem mais do que nós”, “nós trabalhamos, eles vivem dos nossos impostos”. O Chega explora esse ressentimento com habilidade, ao mesmo tempo que silencia os casos de imigração bem-sucedida. Zonas com elevado número de beneficiários do RSI (Rendimento Social de Inserção) tendem a gerar um ambiente ambíguo: Quem precisa do apoio sente-se estigmatizado. Quem não recebe acha que os outros estão a abusar do sistema. O Chega capitaliza esse mal-estar, propondo cortes, fiscalização apertada, e associando os apoios a "preguiça" ou "fraude". Mesmo sendo simplista, essa retórica ressoa com a frustração das pessoas comuns.

O sintoma social, que é a deriva do eleitorado para o Chega, usando uma metáfora médica, deve-se à doença civilizacional do Ocidente marcada por : stress crónico + retração empática = voto de protesto. Este artigo é a continuação do artigo neste blog do dia anterior sob o título "Stress crónico, retração empática e o voto de protesto: a ascensão do Chega como sintoma social". Tinha como ponto de partida um artigo de jornal de Helena Bento no Expresso online:《o consumo de medicamentos sem prescrição médica entre os jovens é uma preocupação crescente na Europa. Ansiolíticos e sedativos são os mais usados de forma indevida, seguidos dos analgésicos, revela o mais recente estudo “European School Survey Project on Alcohol and Other Drugs”. O relatório mostra ainda que o número de jovens que apostam online quase duplicou nos últimos cinco anos.》

O recente resultado das eleições parlamentares em Portugal: o Chega ultrapassar o Partido Socialista em número de deputados; e a extrema-esquerda sofrer um colapso eleitoral - não deve ser lido apenas como um realinhamento ideológico do eleitorado para a direita. Trata-se, acima de tudo de um sintoma social profundo que tem a ver com um crescente mal-estar emocional da sociedade em grande escala. O resultado do Chega não é nada desejável, mas é tudo menos surpreendente. Os sinais estão e estavam na realidade, mas foram e são desprezados pela atmosfera progressista que se respira na bolha mediática; uma atmosfera que coloca demasiados véus e biombos entre nós e a realidade, demasiados tabus, demasiados temas que não podem ser vistos e debatidos, demasiados temas que só podem ser debatidos de uma dada maneira.

O Chega cresce nestes tabus e silêncios. Muita gente não quis acreditar nas evidências. A esquerda ficou refém de políticas de identidade. A direita do Chega convocou para si esse ressentimento de classe que antes era da extrema-esquerda. Isto aconteceu noutros países, da França aos EUA: as zonas da esquerda saltaram para a extrema-direita. Estamos há uma geração na estagnação e isso obviamente gera um eleitorado zangado e desesperado por mudança. A grande fatia de eleitores do Chega não são “fascistas”, são pessoas desesperadas por melhores condições de vida, por uma possibilidade de esperança além desta estagnação.

No ocidente inteiro, o eleitorado clássico desta nova extrema-direita tende a ser mais pobre e menos letrado. As zonas do PCP e do PS eram as mais propensas a perder votos para o Chega, como está de facto a acontecer. A ideia de que o Chega ia ser sobretudo um problema para a AD e IL, o centro-direita, era um erro de quem vê a política olhando apenas para o parlamento, como se o parlamento fosse um jogo de xadrez isolado da sociologia do país. Sociologicamente, o eleitor do Chega está mais distante do eleitor AD/IL e está mais próximo do eleitor PS. O eleitor do PS tem menos rendimento e menos estudos do que o eleitor da AD (mais rendimento e mais educação) e por isso está mais próximo do retrato típico do eleitor do Chega. Há outro fator além do rendimento e dos estudos: de forma geral, os católicos resistem ao populismo.

Cada vez mais, a classe média tem procurado seguros de saúde e colégios privados, porque os serviços públicos defendidos pela esquerda degradaram-se e perderam qualidade agravada pela luta sindical com greves atrás de greves. Quem é que permanece nas escolas públicas? Os mais pobres e remediados, os mais propensos ao ressentimento do Chega. Os pais de alunos das escolas públicas estão saturados das greves nas escolas que tornam a sua vida num inferno. Idem para as greves nos transportes públicos. Estas greves, sempre protegidas pela esquerda, são um pasto para a raiva suburbana que alimenta o Chega. O instrumento da velha luta de classes da esquerda é agora um paradoxal e indireto instrumento da luta de classes do Chega. Os média também se silenciaram em relação a queixas das alentejanas em relação a imigrantes muçulmanos. Da mesma maneira, vimos como várias reportagens de fundo mostraram que de facto há problemas no Martim Moniz gerados pela imigração.

Sociologia do Espetáculo


Guy Debord em a "Sociedade do Espetáculo" (1967), já dizia que, na sociedade capitalista tardia, “o que era vivido tornou-se representação”. Na sociedade da visibilidade o real é cada vez mais mediatizado por imagens. O espetáculo não é apenas entretenimento, é o modo de existência dominante.

Neste contexto, o valor das coisas é definido pela capacidade de atrair atenção, e não pelo conteúdo intrínseco. Por isso, quanto mais excêntrico, ambíguo ou transgressivo for o artista, maior é o seu valor performativo. Com a crescente aceitação da fluidez de género, do transhumanismo, da estética queer e da estética camp, as fronteiras tradicionais - homem/mulher, natural/artificial, belo/feio, verdadeiro/falso - tornaram-se instáveis ou até irrelevantes para grande parte do público jovem e urbano. Isto leva a uma inversão: o tradicional é percebido como enfadonho, reacionário, ou até opressor, e o indefinido é visto como sinal de autenticidade e liberdade.


Johannes Pietsch, conhecido artisticamente como JJ, é um cantor austríaco que venceu o Festival Eurovisão da Canção 2025 com a música "Wasted Love". Ele é um contratenor, ou seja, um cantor masculino com um alcance vocal que atinge notas tradicionalmente associadas a vozes femininas, como o soprano. Em relação à sua identidade de género, JJ é um homem cisgénero e abertamente queer. Ele expressou publicamente o seu orgulho em representar a comunidade LGBTQIA+, afirmando: "Sim, absolutamente. Sou queer e estou feliz por representar a comunidade e dar-lhe voz”. JJ é também o primeiro vencedor da Eurovisão com ascendência filipina, o que reforça ainda mais a sua mensagem de inclusão e diversidade no palco europeu.

Quando Johannes Pietsch (JJ) diz que é "abertamente queer", ele está a afirmar publicamente que pertence à comunidade LGBTQIA+, mas sem se identificar necessariamente com uma categoria fixa como “gay”, “bissexual”, “trans” ou outra. O termo "queer" é intencionalmente abrangente e fluido. Historicamente, “queer” era um insulto, mas foi resgatado como símbolo de orgulho por muitos que: sentem que não se encaixam nas normas tradicionais de género ou sexualidade, rejeitam rótulos estritos como “hetero” ou “homossexual”, ou adotam uma vivência não convencional da identidade sexual e/ou de género. Portanto, ao dizer que é "abertamente queer", JJ está a afirmar: que não esconde sua identidade, que vive com autenticidade, e que se sente parte de uma comunidade que celebra a diversidade de género e sexualidade, sem se limitar a classificações fixas.

Estilo vocal e estético andrógino, JJ canta como contratenor, com uma voz que atravessa o território tradicionalmente associado ao feminino (como o soprano). Isso desafia normas de género dentro da música pop e clássica, gerando um impacto estético forte e emocional. Muitos espectadores da Eurovisão 2025 disseram sentir-se “desarmados” pelo contraste entre a aparência masculina e a delicadeza vocal. Na final da Eurovisão, JJ apresentou-se com uma mistura de elementos masculinos e femininos no guarda-roupa e maquilhagem, sem seguir convenções binárias. O seu figurino foi descrito como “teatral, romântico e etéreo”, remetendo tanto à ópera quanto ao pop moderno.

A canção "Wasted Love" fala de um amor não correspondido ou desfeito, de forma muito intensa e vulnerável. Ao assumir-se queer, JJ transmite que essas emoções não têm género fixo — são humanas. Isso quebra com a rigidez das canções de amor heteronormativas e mostra uma dor universal, mas a partir de uma vivência queer. JJ não se define com rótulos fechados (como gay ou bissexual), mas afirma estar feliz por representar uma diversidade dentro da comunidade LGBTQIA+. O seu simples gesto de existir com visibilidade no palco internacional já é um ato político subtil, mas poderoso, num mundo onde ainda há preconceito.

Há um certo paralelo entre
Johannes Pietsch (JJ) e outras figuras marcantes da Eurovisão que afirmaram identidades queer através da arte: 


Conchita Wurst (Áustria, vencedora de 2014) –Identidade: Drag queen criada por Thomas Neuwirth. Conchita combinava barba com vestido de gala, desafiando o binarismo de género visual. A música “Rise Like a Phoenix” era um hino de superação e orgulho queer. A vitória foi simbólica — uma afirmação europeia de aceitação LGBT+ num momento de tensões sociais (inclusive com a Rússia). Tornou-se um ícone global de tolerância.


Duncan Laurence (Países Baixos, vencedor de 2019) – Bissexual assumido. Canção "Arcade", uma canção introspetiva, melancólica, universal — falava de amor perdido, com linguagem aberta e emocional. Embora não marcada como “política”, a presença de Duncan como artista queer que canta com autenticidade foi muito significativa. Contribuiu para normalizar artistas LGBTQIA+ como intérpretes românticos universais.


Måns Zelmerlöw (Suécia, vencedor de 2015) – caso interessante por ser heterossexual, mas envolveu-se em polémica por comentários considerados homofóbicos. Mais tarde pediu desculpa. Mostra como a Eurovisão é sensível à questão queer — o público valoriza não apenas o talento, mas a representatividade e o respeito à diversidade.

Conclusão: 
Johannes Pietsch (JJ) está na linhagem de artistas que fazem da Eurovisão mais do que um concurso musical: um palco onde se normaliza o que antes era marginal e se celebra a beleza de identidades queer em toda a sua complexidade — através de arte, emoção e estética desarmante.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

O populismo como resposta ao vazio


O que fazer com estes partidos populistas e nacionalistas? A vaga de extrema-direita não dá sinais de regredir e não há uma fórmula bem-sucedida, pelo menos até agora, para a travar. Muitos partidos de centro-direita tentaram seguir a via da "imitação" de algumas das bandeiras da extrema-direita e, em primeiro lugar, da bandeira contra a imigração. Foi assim em França ou, em parte, na Alemanha e na Áustria. O resultado não tem sido o de enfraquecer esses partidos, mas antes fortalecê-los, ao "normalizar" o seu discurso.

Em países como a Alemanha ou a França, a fórmula do "cordão sanitário" permite conclusões diversas. Na Alemanha, que não pode seguir outro caminho em face do seu passado, a AfD, que nasceu como um partido que se mobilizava apenas contra o euro, é hoje a segunda força política no Bundestag, com um discurso extremista, xenófobo, putinista e trumpista. Mesmo assim, a sua força eleitoral ainda vem significativamente dos antigos Lander da Alemanha de Leste. Na França, o sistema maioritário a duas voltas tem permitido manter a União Nacional de Marine Le Pen fora do Governo, mas não a impediu de se transformar no maior partido francês. A estratégia de Le Pen não foi a da radicalização, como a AfD, mas a da "normalização". Menos antieuropeísmo, mais "condições de vida", o mesmo discurso contra os imigrantes ilegais, sobretudo de origem islâmica.

A Áustria recebeu, proporcionalmente à sua população, mais refugiados sírios ou afegãos do que a própria Alemanha de Merkel ou a Suécia. Mas, tal como acontece, por exemplo, no Reino Unido, os apoiantes do partido de extrema-direita concentram-se mais nas regiões da província onde a imigração é menor e perdem em Viena, onde as populações migrantes se concentram. Viena continua a ser social-democracia. Desta vez, a resposta à vitória do partido de Herbert Kickl foi uma coligação entre os partidos do arco democrático, incluindo o centro-direita e o centro-esquerda. Na Suécia, Noruega e Finlândia, houve ou há governos de centro-direita que aceitam ou aceitaram o apoio parlamentar da extrema-direita. É o caso do Governo de Estocolmo, cujo primeiro-ministro, Ulf Kristersson, líder do Partido Moderado, que ficou em terceiro lugar nas últimas eleições, com os sociais-democratas em primeiro e o Partido dos Suecos, de direita nacionalista, em segundo, mas que conseguiu negociar com este último o seu apoio parlamentar a um Governo minoritário. Nos Países Baixos, o partido populista de Geert Wilders, profundamente xenófobo, venceu as últimas eleições, mas abdicou de liderar um Governo de coligação com outros partidos de direita e centro-direita a favor de um primeiro-ministro tecnocrata.

A queda do Muro de Berlim trouxe a promessa de um mundo racional guiado por consensos democráticos. No entanto, esse "fim da história" falhou em oferecer sentido, identidade ou transcendência. O neoliberalismo, ao reduzir o cidadão a consumidor, deixou um vazio que agora é ocupado por narrativas afetivas e simbólicas. Em Portugal, André Ventura, preenche esse espaço não com soluções, mas com mitos. O ressentimento é o combustível político do Chega que o faz crescer entre gente com raiva da globalização, a causa da sua decadência social por não se reconhecerem na linguagem da inclusão. Estão ressentidos com o seu país que consentiu que as elites lhes tivessem roubado estatuto em prol de minorias estranhas. Ventura não oferece um futuro melhor: oferece vingança simbólica. A sua força vem do ressentimento, não da esperança.

A política liberal e social-democrata trabalham com argumentos, compromissos, reformas. Ventura trabalha com espetáculo. Cada intervenção é um ato performativo, cada comício uma peça de teatro moral. O adversário não é um outro com quem se debate, mas um inimigo a abater. A sua figura é sempre central, carismática, muitas vezes messiânica.

A desconfiança generalizada nas instituições alimenta o discurso de Ventura. Ele apresenta-se como perseguido pelas elites, como vítima do sistema. A sua palavra não é apenas política: é performativa, purificadora. Onde há cinismo, ele oferece moralismo. Onde há complexidade, ele oferece dicotomias. O Chega torna-se uma seita em torno do seu corpo e da sua palavra. A democracia é esvaziada do seu conteúdo deliberativo e substituída por rituais de identificação e exclusão.

André Ventura não verbaliza o seu antieuropeísmo com demasiada energia porque sabe até que ponto os portugueses valorizam a pertença à União Europeia. Segue, aliás, a prudência de alguns dos seus amigos europeus, como Marine Le Pen, que adoçaram o seu antieuropeísmo e a sua proximidade política a Trump, mas também a Putin, para se poderem "normalizar" junto dos eleitores – ao lado do "povo" contra as elites; contra os imigrantes que são o novo inimigo "externo"; contra a chamada cultura "woke". Uma espécie de etnonacionalismo cristão, à moda de Victor Orbán, que combate o alegado declínio moral da Europa laica, liberal.

O seu sucesso vem do ressentimento de quem perdeu estatuto social de classe média. Mas também de quem pensa que os imigrantes prejudicam as escolas que os seus filhos frequentam ou o acesso aos serviços públicos de saúde ou até à habitação condigna. De quem é a culpa? Das elites. As camadas mais modestas e menos educadas estão furiosas. Tudo começou com a queda do Muro de Berlim. Basta olhar para o mapa dos resultados – zonas tradicionalmente do PCP e, depois, do PS, todas agora do Chega. Na margem sul, antigo bastião comunista e depois socialista, a única excepção foi Almada. No Alentejo, foi Évora.

Stress crónico, retração empática e o voto de protesto: a ascensão do Chega como sintoma social



Este é o resumo da imagem em epígrafe: «O consumo de medicamentos sem prescrição médica entre os jovens é uma preocupação crescente na Europa. Ansiolíticos e sedativos são os mais usados de forma indevida, seguidos dos analgésicos, revela o mais recente estudo “European School Survey Project on Alcohol and Other Drugs”. O relatório mostra ainda que o número de jovens que apostam online quase duplicou nos últimos cinco anos.»

O recente resultado das eleições parlamentares em Portugal, que viu o Chega ultrapassar o Partido Socialista em número de deputados e a extrema-esquerda sofrer um colapso eleitoral, não deve ser lido apenas como um realinhamento ideológico. Trata-se, acima de tudo, de um sintoma social profundo, ligado a fatores psicológicos coletivos e estruturais, nomeadamente o stress crónico, a retração empática e o colapso do vínculo entre política e bem-estar emocional.

O stress torna as pessoas mais egoístas, mas só nas circunstâncias mais emocionalmente intensas e pessoais. Por isso, o stress sustentado tem efeitos comportamentais bastante desagradáveis. O stress pode prejudicar a cognição, o controlo de impulsos, a regulação emocional, a tomada de decisões, a empatia e a pró-socialidade. O stress em excesso sempre foi um veneno para os adolescentes. Mas nas últimas décadas o stress tem sido maior e não menor. E isso tem as devidas consequências no comportamento da geração de adultos seguinte. E as gerações precedentes não percebem o que se está a passar porque essas influências do stress é como se fosse invisível.

As sociedades contemporâneas vivem sob um regime de stress constante: insegurança económica, pressão por desempenho, isolamento social, hiperestimulação digital e colapso do sentido comunitário. Este stress não se manifesta apenas em sintomas clínicos, mas afeta também a forma como os indivíduos percebem o Outro e se posicionam perante o coletivo.

De facto, o stress crónico e prolongado durante a adolescência tem impactos neurológicos, emocionais e sociais duradouros. E tornou-se mais difuso, mais constante e mais invisível nas últimas décadas. Há alguns fatores contemporâneos que ajudam a explicar esse aumento de stress entre adolescentes: a pressão constante por desempenho (escolar, social, físico); a hipervigilância digital — redes sociais criam uma exposição permanente à comparação e ao julgamento; a insegurança quanto ao futuro — mudanças climáticas, crise habitacional, instabilidade económica e até mesmo a inteligência artificial geram incertezas inéditas; e menor coesão comunitária e familiar — muitos adolescentes crescem em contextos mais fragmentados, sem o apoio emocional estruturado de antes. O problema é que os adultos de gerações anteriores muitas vezes não reconhecem esses fatores como legítimos ou sequer os compreendem, porque viveram numa estrutura social e emocional muito diferente. Para eles, stress era o que se sentia antes de um exame ou de uma entrevista de emprego — não uma pressão psíquica constante, difusa, quase ontológica.

Como mostram estudos neuropsicológicos (e autores como Gabor Maté), o stress crónico afeta diretamente a capacidade empática. Sob pressão constante, o cérebro humano entra em "modo de sobrevivência", reduzindo a atividade das áreas associadas à empatia, autorregulação e julgamento moral. Em vez disso, privilegia respostas defensivas, simplificadoras, e por vezes agressivas. O voto no Chega como sintoma emocional. Neste contexto, o crescimento do Chega não deve ser entendido apenas como um voto ideológico, mas também como um voto emocional. Para muitos eleitores, o partido representa não apenas a promessa de ordem, mas também uma catarse emocional, uma resposta ao ressentimento acumulado, à percepção de abandono e à perda de controlo sobre o próprio destino.

Daí que a esquerda tenha falhado com o seu moralismo estéril. Mas extrema-esquerda não só falhou como se suicidou. A esquerda, particularmente a extrema-esquerda, perdeu o vínculo afetivo com as massas. Passou a ser percebida como elitista, moralista, desligada das dores concretas das pessoas. Enquanto isso, o Chega (como outros partidos populistas noutros países) soube falar às emoções, às frustrações e à necessidade de pertença.

Por outro lado, os comentadores do mainstream também não têm ajudado. Enquanto continuarem a tratar o eleitorado com desdém ou como um corpo irracional, continuarão a falhar o essencial: o Chega cresce não porque o povo é malvado, mas porque está exausto, stressado, e sem representação afetiva. A empatia política é impossível sem segurança emocional. E ninguém vota com o cérebro totalmente racional quando vive com o corpo em estado de alerta. Se quisermos combater o populismo, temos de começar por curar o stress social que o alimenta.

O discurso público sobre o "défice de empatia" costuma ser superficial, quase moralista, como se a empatia fosse uma escolha consciente que se decide tomar ou não. Mas ignoram o mais importante: a empatia é profundamente afetada por fatores neurofisiológicos, sendo o stress crónico um dos principais bloqueadores dessa capacidade.

Sob stress intenso ou contínuo, o cérebro ativa mecanismos de sobrevivência (eixo HPA: hipotálamo–hipófise–adrenal), priorizando a autopreservação. Isso reduz a atividade do córtex pré-frontal (responsável pela autorregulação, julgamento moral e empatia) e aumenta a atividade da amígdala (reação emocional e defensiva). Resultado? Menos empatia, mais irritabilidade, mais retraimento emocional. Ou seja, a própria estrutura cerebral da empatia desliga-se parcialmente em estados de stress contínuo. Não por escolha — por necessidade fisiológica.

Mas os comentadores, em geral, fazem diagnósticos morais, e não estruturais: dizem que os jovens (ou os outros, em geral) “não querem saber”, “estão egoístas”, “estão desumanizados”. Não percebem que muitas dessas pessoas estão em modo de sobrevivência, muitas vezes desde cedo. Essa cegueira revela não só ignorância científica, mas também uma recusa em olhar para a sociedade que se construiu — uma sociedade que gera stress, competitividade tóxica, insegurança constante e depois se espanta que falte empatia.

Gabor Maté é uma das vozes mais lúcidas nesta interseção entre trauma, stress e comportamento humano. Ele defende que o comportamento “disfuncional” é muitas vezes uma adaptação a um ambiente insustentável, e que o stress crónico — sobretudo na infância e adolescência — mina a capacidade de empatia, conexão e autorregulação. Algumas ideias centrais do seu pensamento:

O stress e o trauma não são apenas eventos extremos — são contextos repetidos. Maté alarga a definição de trauma: não é apenas o que acontece contigo, mas o que não acontece quando precisas — como não receber carinho, escuta, validação emocional. Crianças (e adolescentes) sob stress contínuo, mesmo que “funcionais”, crescem com défices na sua capacidade empática, não por maldade, mas por desadaptação neurobiológica.

O corpo e o cérebro moldam-se ao stress. O cérebro de um adolescente cronicamente em modo de ansiedade reorganiza-se para sobreviver, não para compreender o Outro. Isso tem consequências no adulto em que se tornará. A cultura moderna é estruturalmente traumática. A sociedade ocidental contemporânea tornou-se numa máquina produtora de stress: isolamento, competição desenfreada, ausência de tempo para o vínculo, hiperestimulação digital. Não é só que haja indivíduos traumatizados — é a cultura em si que gera trauma coletivo. Logo, a falta de empatia que observamos não é um desvio: é um sintoma.

As “doenças mentais” são muitas vezes respostas sãs a contextos insanos. Ansiedade, défices de atenção, insensibilidade emocional, adições… não são sempre falhas individuais. Muitas vezes são formas de lidar com uma realidade que o organismo humano percebe como insegura, instável, ameaçadora. Portanto, quando os comentadores falam do "défice de empatia" sem fazer esta leitura estrutural, acabam por perpetuar o problema: culpam os indivíduos por algo que é, em boa parte, causado pelo próprio modelo de sociedade — um modelo que eles, aliás, muitas vezes ajudam a legitimar nos seus próprios comentários.

O crescimento explosivo do Chega — bem como o colapso da extrema-esquerda — não é um fenómeno isolado ou apenas político. É um sintoma coletivo, enraizado precisamente nesse stress invisível e acumulado de que falávamos antes. Stress social e político gera retração empática. Sob contextos prolongados de incerteza económica, crise habitacional, perda de sentido coletivo e ameaça cultural (real ou percebida), as populações tendem a fechar-se sobre si mesmas. É o mesmo mecanismo de defesa que falávamos a nível individual: sobrevivência psicológica. Um país exausto é um país mais vulnerável ao discurso que promete ordem, castigo, identidade e simplificação. Empatia exige segurança — sem ela, surge o ressentimento.

O Chega percebeu isso melhor do que os partidos ditos do "arco da governação": percebeu que há um eleitorado emocionalmente em ruptura, que não quer mais ser chamado a compreender minorias, migrantes, ou até valores liberais — quer sentir-se ouvido, protegido e vingado. A esquerda perdeu o vínculo afetivo com as massas. A extrema-esquerda (e até o centro-esquerda, como o PS) deixou de ser o lugar onde o povo se reconhece afetivamente. Tornou-se, aos olhos de muitos, uma elite moralista e desconectada. E quando o discurso da esquerda se reduz a condenações éticas, enquanto as vidas reais se deterioram, o eleitorado parte à procura de quem fale mais à sua dor do que à sua culpa.