Lendo alguns dos nomes, que apresento a seguir, e que fazem parte da literatura da educação cívica e da política, todos eles sustentam, cada um à sua maneira, que o ser humano é moral sobretudo por conveniência ou medo, e que tem impulsos egoístas mais fortes que os altruístas. É facilmente corrompido quando a vigilância desaparece, quando as circunstâncias estão à sua mercê, como no adágio popular: "a ocasião faz o ladrão". São por assim dizer autores que reforçam a ideia daqueles que se classificam como pessimistas antropológicos. Uma tradição crítica que rejeita a idealização do ser humano e aponta para a necessidade de estruturas -- instituições, leis, vigilância, educação profunda -- que compensem esse déficit moral de origem.
Nicolau Maquiavel (1469–1527) -- muitas vezes mal compreendido, não era cínico por prazer, mas por realismo político. Ele via o homem como volúvel, ingrato, mentiroso e motivado principalmente pelo interesse próprio. O governante, dizia ele, deve partir do princípio de que os homens agirão mal sempre que puderem. “Os homens hesitam menos em ofender quem se faz amar do que quem se faz temer.”
Thomas Hobbes (1588–1679) -- descreve a vida humana no seu estado natural como “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta.” Para ele, os homens são naturalmente movidos por medo, desejo e orgulho, e só a presença de uma autoridade forte (o Leviatã) os mantém em relativa ordem. “O homem é lobo do homem.” (Homo homini lupus)
François de La Rochefoucauld (1613–1680) -- o moralista francês escreveu centenas de máximas sobre a hipocrisia e o egoísmo humano. Para ele, quase toda a virtude é interesse disfarçado, e até os atos aparentemente nobres têm motivações ocultas. “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.”
Arthur Schopenhauer (1788–1860) -- via o ser humano como movido por uma vontade cega e insaciável, essencialmente egoísta e propenso à crueldade. A moralidade verdadeira, para ele, era rara e baseada na compaixão, não em convenções sociais. “A natureza humana é um tecido de egoísmo, vaidade, malícia e ignorância.”
Sigmund Freud (1856–1939) -- via o ego humano como um palco de conflitos entre o id (impulsos primitivos), o superego (repressões morais) e o ego (o ser real). Ele acreditava que a civilização era um compromisso frágil, que mantinha os impulsos destrutivos sob controlo, mas sempre à beira de falhar. “O homem civilizado trocou uma parcela de felicidade por uma parcela de segurança.”
George Orwell (1903–1950) -- com a sua experiência na Guerra Civil Espanhola e observando os totalitarismos do século XX, perdeu a fé em ideais puros. Ele via como o poder, a propaganda e a obediência cega dominavam facilmente a moralidade individual. “O poder não corrompe apenas os líderes. Corrompe o cidadão comum, que escolhe não ver.”
Nas redes sociais -- fóruns anónimos, comentários de notícias, etc. -- vemos uma explosão de discursos de ódio, linchamentos morais, trolling gratuito, pornografia extrema, humilhação pública. Esse tipo de comportamento sugere que, quando o superego (a censura interna) é suspensa pela ausência de consequências, emerge um eu primitivo, agressivo, egocêntrico e narcisista. Freud se cá estivesse diria que era isso que ele via: como o ser humano age quando está liberto da vergonha social e da punição jurídica. Mesmo indivíduos considerados "bons cidadãos" ou "pessoas de bem" revelam condutas chocantes quando têm poder para o fazer e se sentem impunes, que é o que acontece na malfadada corrupção do poder político. E é o que se passa nos estádios de futebol. Este último exemplo é particularmente grave: a moral humana é profundamente mimética em que o indivíduo segue ou vai atrás da manifestação que emerge do grupo no seu todo.
As plataformas digitais, por sua vez, exploram a vaidade, a comparação social, o voyeurismo, o tribalismo e o vício, tudo traços que o pessimismo antropológico denuncia há séculos. Likes e seguidores alimentam a necessidade de validação constante. Algoritmos privilegiam a indignação, o medo e o escândalo, porque geram mais cliques. O discurso moral virou produto de performance e capital simbólico. Ou seja, a própria arquitetura digital está construída de acordo com a verdadeira natureza humana que, tal como é denunciada pelos pessimistas antropológicos, é cínica.
Nunca foi tão fácil alguém pregar empatia, justiça social ou amor ao próximo num post… e no momento seguinte: ignorar a miséria alheia; tratar mal alguém no trânsito ou no trabalho; disseminar fake news contra os próprios princípios. A distância entre o discurso e a prática, que sempre existiu, hoje ganha visibilidade em tempo real, tornando mais evidente que a moral pública muitas vezes é só performance. Portanto, a virtude é ilusória sem vigilância. Hoje, como sempre, é o medo da punição, não a convicção ética, que guia a conduta. Só que agora as câmaras, os algoritmos e os registros digitais funcionam como novos deuses que tudo veem, e mesmo assim, as pessoas tentam burlar o sistema.
Se antes o pessimismo antropológico era uma hipótese, hoje ele é observável em tempo real, com dados, vídeos, capturas de tela e logs digitais. O ser humano parece, muitas vezes, indigno da imagem que criou de si mesmo. A educação cívica é uma espécie de verniz civilizacional muito fino que estala à mais pequena contrariedade.