terça-feira, 6 de maio de 2025

Universo ou Multiverso: a rutura conceptual com a tradição



A tradição do pensamento ocidental de matriz judaica e cristã não é capaz de conceber o Cosmos ou Universo sem o conceito de causa. E daí não encontra outra explicação senão Deus, um criador. Mas o pensamento budista vai por outro caminho e admite que o Universo sempre existiu sem necessidade do conceito de ter de haver um princípio e um fim. E assim, também prescinde da necessidade de um criador. E por isso não precisa de conceber Deus.

O pensamento ocidental -- sobretudo influenciado por Platão, Aristóteles, e depois pelos grandes pensadores cristãos (como Agostinho e Tomás de Aquino) -- parte do pressuposto de que para tudo há uma causalidade: tudo o que existe deve ter uma causa, e, seguindo regressivamente até ao infinito, teria de haver uma causa primeira. A isso, a "Tradição" deu um nome: Deus. Essa é a metafísica da criação, onde o ser de cada um é algo recebido de um princípio originador. Já no budismo (especialmente nas escolas Mahayana), a visão é bastante diferente: o Cosmos é visto como uma teia de inter-relações, sem um absoluto começo, nem fim, num ciclo contínuo de surgimento e dissolução, que para o budismo é o Samsara. Em essência a  realidade não é substancial. É Vacuidade (śūnyatā).As coisas não têm um ser fixo, separadas umas das outras como independentes. Uma causa primeira no sentido ocidental, isso não existe. O que existe é interdependência (pratītyasamutpāda). Nem nunca houve criação a partir de Nada (ex nihilo). 

Assim, se o Universo (ou a realidade) sempre existiu de uma maneira ou de outra, sem precisar de uma origem absoluta, então a necessidade de conceber um Deus como criador ou causa primeira, simplesmente não se coloca. A "questão de Deus" dissolve-se, não se resolve. Esta visão, dentro de uma sensibilidade mais budista, ou até mesmo de certas correntes filosóficas ocidentais modernas, como em Spinoza, Nietzsche, Heidegger e outros, é muito coerente com a ideia de um Universo eterno, a que hoje os astrofísicos chamam: Multiverso.

Na cosmologia moderna, especialmente depois do século XX, surgiram várias hipóteses que, curiosamente, se aproximam mais da visão budista – aquela que não exige um "princípio absoluto" no estilo bíblico ou aristotélico. No século XX, alguns físicos como Friedmann e depois Richard Tolman propuseram a ideia de que o Universo poderia passar por ciclos eternos de expansão e contração – o chamado modelo cíclico ou Universo oscilante. Ou seja, não há começo absoluto. Há apenas uma sequência infinita de "big bangs" e "big crunches". Essa ideia ressoa com a concepção budista de Samsara – nascimento e morte como um ciclo sem começo nem fim.

Na física moderna, especialmente a mecânica quântica, é a noção de que o "vácuo" não é um nada absoluto, mas um campo cheio de energia e flutuações. Edward Tryon propôs em 1973 que o Universo poderia ter surgido de uma flutuação do vácuo, como algo que simplesmente "brotou" de uma instabilidade quântica, sem precisar de uma causa externa. Aqui, novamente, a ideia de "criação a partir do nada" tradicional é dispensada. É mais um "surgimento espontâneo" dentro de uma matriz que já existe.

Algumas interpretações da inflação cósmica (como as defendidas por Andrei Linde) sugerem que existem infinitos universos, brotando constantemente como bolhas de um "Multiverso" eterno. Nosso Universo observável seria apenas uma bolha entre infinitas bolhas. Não há "um começo" absoluto, apenas processos infinitos de surgimento. Em 2012, físicos como Aguirre e Gratton propuseram um modelo onde o Big Bang é apenas uma "transição" dentro de um espaço-tempo eterno. Mais recentemente, pesquisadores como Anna Ijjas e Paul Steinhardt trabalham em modelos onde o Universo passa por ciclos, mas cada ciclo é diferente do anterior, evoluindo, sem começo absoluto.

Portanto, a realidade não "precisa" de um ponto de partida absoluto. O conceito de "causa primeira" é ultrapassado por processos auto-organizados, eternos ou infinitos. Surge um tipo de visão onde ser e vir-a-ser são naturais, não exigindo uma "mente divina" para explicá-los. Ou seja, a cosmologia contemporânea acaba, curiosamente, por aproximar-se mais da intuição budista (e da sua linha de pensamento) do que da tradição judaico-cristã clássica.

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