terça-feira, 27 de maio de 2025
A História, indiferente a ideais, costuma premiar quem sabe mover-se com ela
Há uma tensão clássica entre convicção moral e legalidade institucional. Mariana Mortágua, como figura destacada do Bloco de Esquerda, frequentemente adota posições que transcendem o "legalismo" estrito, ancorando seu discurso em princípios de justiça social radical, que são pós-convencionais no sentido kohlbergiano do termo. Ela defende que os bancos, mesmo operando dentro da lei, não cumprem um dever ético para com os mais vulneráveis. Então defende a nacionalização como forma de subordinar o capital financeiro ao interesse coletivo. Mas essa posição escorrega para uma forma de fundamentalismo ético, na medida em que recusa a mediação com a complexidade institucional da vida económica, e mesmo do mundo real democrático.
O pendor do justicialismo social impõe uma visão de mundo que pode tornar-se tão totalizante como o que critica. Nega, inclusivamente, a legitimidade da pluralidade de valores numa sociedade democrática. É um risco frequente neste tipo de discursos de redenção social, que, estando ao serviço dos "outros", acaba por subjugar esses mesmos "outros" à sua própria conceção do bem. Ora isso pode ser tanto mais perigoso quanto mais bem-intencionado for.
É um raciocínio inspirador, mas demagógico, porque em nome de uma bondade, seja lá o que isso for, cultiva um desprezo por quem pensa de maneira diferente, com uma arrogância intelectual insuportável. A convicção moral elevada torna-se repugnante. O discurso, ainda que inspirado por ideais de justiça e solidariedade, ganha uma tonalidade quase messiânica, como se só houvesse uma forma correta de interpretar o bem comum: a sua.
Isso é particularmente visível quando o antagonismo deixa de ser contra práticas concretas (evasão fiscal, abuso bancário, etc.) e passa a ser contra o próprio "modelo" de pensamento divergente. Quem defende outro tipo de organização social ou económica não é apenas um adversário político, mas alguém eticamente inferior. E aí surge o desprezo, disfarçado de lucidez moral. Esse tipo de discurso pode ser eficaz para galvanizar apoiantes do politicamente correto, mas é estruturalmente demagógico. Ao simplificar dilemas complexos em termos de bem contra mal, acaba por minar o debate democrático e excluir qualquer possibilidade de compromisso, que é precisamente o que sustenta a política num Estado pluralista.
Esse tipo de político ao acreditar sinceramente que está a ser humilde, paradoxalmente o que está a ser é arrogante intelectual. porque se vê como porta-voz dos "oprimidos". Mas a verdadeira humildade política exige a consciência de que a nossa visão do bem é sempre parcial, e, portanto, discutível. Acontece que, tendo nas últimas eleições ficado só com um deputado, ela mesma, teima em persistir na liderança apesar de uma grande discordância à sua volta. Um traço preocupante da sua personalidade política: uma fidelidade quase inabalável à sua própria visão, mesmo diante de sinais claros de desgaste e rejeição. A perda drástica de representatividade do Bloco de Esquerda nas últimas eleições não parece ter gerado nela a autocrítica esperada num regime democrático maduro, onde a legitimidade vem, em última instância, do voto popular.
Persistir na liderança numa situação assim pode ser lido de duas formas: ou como coragem e coerência num momento adverso, o que os seus apoiantes dirão, ou como teimosia e cegueira política, típica de quem confunde a própria causa com a única via possível de redenção coletiva. A discordância à sua volta, mesmo entre setores da esquerda, mostra que muitos não se reveem nesse estilo autorreferencial de liderança. Em última instância, isso enfraquece o próprio campo político que ela diz defender, porque fecha o Bloco de Esquerda sobre si mesmo, isolando-o da sociedade real e tornando-o uma espécie de seita ideológica. Coerente, sim, mas impotente. E a impotência política disfarçada de pureza moral é um luxo que só serve para alimentar a frustração do eleitorado que esperava mudança concreta.
Nesse aspeto só tem paralelo com o Partido Comunista Português, outros que tais, "antes o suicídio do que ceder à realidade dos tempos que correm”. Ambos partilham uma rigidez doutrinária que roça o anacronismo: preferem manter a coerência interna das suas convicções ideológicas, mesmo que isso signifique a irrelevância política ou o isolamento social. Há uma espécie de orgulho trágico nisso. Trata-se de uma fidelidade quase litúrgica a um quadro interpretativo do mundo que já não dialoga com a complexidade da sociedade contemporânea. O problema é que essa obstinação acaba por alienar não apenas os opositores, mas também os potenciais aliados, sobretudo os mais jovens ou moderados, que buscam soluções pragmáticas e adaptadas às circunstâncias.
O resultado é o enfraquecimento da esquerda transformadora, fragmentada entre uma moral de pureza e uma realpolitik que desprezam. E enquanto isso, forças populistas ou conservadoras ocupam os espaços que esses partidos recusam por orgulho, mas que a política, como a natureza, detesta deixar vazios. O mais curioso é que, ao recusarem “ceder”, tanto o BE quanto o PCP acabam por perpetuar exatamente o que mais criticam: uma ordem social onde continuam a ser marginais. Mas agora por opção.
Infelizmente é uma ideologia que deixou de dar frutos desde a queda do Muro, salvo exceções muito semelhantes na Venezuela, Cuba, ou a sacrossanta Coreia do Norte. A China é que lhes mostrou como é que o comunismo faz oitos com as pernas dos noves (metáforas à parte) – a plasticidade quase acrobática do modelo chinês: nominalmente comunista, mas materialmente capitalista em grau muitas vezes superior ao próprio Ocidente. É um realismo estratégico que contrasta brutalmente com a rigidez ideológica do PCP ou do Bloco: partidos que parecem congelados num tempo anterior à queda do Muro de Berlim.
A ideologia que animava a esquerda radical na Guerra Fria sobrevive hoje mais como símbolo identitário do que como proposta concreta de sociedade. Cuba, Venezuela e Coreia do Norte são os últimos bastiões desse modelo fechado, onde o “povo” é constantemente invocado, mas raramente ouvido. São regimes que servem mais como fantasmas retóricos para alimentar discursos de resistência do que como inspirações viáveis para o futuro. Já a China, com todas as suas contradições – autoritarismo político e liberalismo económico seletivo – é, de facto, o grande “contraexemplo bem-sucedido” da ortodoxia marxista. Mostrou que o poder pode sobreviver e expandir-se não através da fidelidade doutrinária, mas da sua adaptação instrumental. O paradoxo é que isso exige abandonar precisamente o que Mortágua, o PCP e afins recusam largar: o conforto moral da coerência.
Sem comentários:
Enviar um comentário