Quantas vezes as pessoas se desiludem com uma pessoa que tanta moral prega quando chega o momento da prova dos 9 ao egoísmo e falha? Há uma diferença profunda, e frequentemente trágica, entre o raciocínio moral e a ação moral, sobretudo no que toca ao egoísmo. Muitas pessoas conseguem raciocinar moralmente com clareza, articulando princípios elevados como empatia, altruísmo, justiça. São capazes de falar e escrever sobre moralidade com grande eloquência. No entanto, agir moralmente exige coragem, sacrifício e coerência prática, o que é bem mais raro.
A desilusão ocorre justamente quando se descobre que alguém que defendia vigorosamente valores morais - muitas vezes até com veemência - não age conforme esses valores quando é testado na prática. E por vezes, como você observa, a contradição é tão grande que a pessoa acaba revelando um egoísmo mais refinado, mais dissimulado, e até mais nocivo, do que o de quem nunca fez discursos morais. Isso acontece porque o egoísmo pode esconder-se sob a máscara da moralidade, sobretudo quando ela é apenas racionalizada, mas não vivida interiormente. A verdadeira ação moral implica renúncia, e nem todos estão dispostos a isso quando a situação exige mais do que palavras. Muitos usam o discurso moral como instrumento de autoimagem ou poder social, e não como bússola de vida.
Nietzsche, por exemplo, denunciava isso como "moral de rebanho", e autores como Pascal já diziam que "o coração tem razões que a razão desconhece", indicando que o nosso comportamento nem sempre segue o nosso raciocínio. Essa constatação pode levar ao cinismo, mas também pode tornar-nos mais humildes e atentos à coerência entre o que dizemos e o que fazemos. Afinal, como dizia Montaigne: “Dizer é fácil, fazer é difícil.”
Pela lente psicológica, a diferença entre raciocínio moral e ação moral, especialmente em relação ao egoísmo, pode ser compreendida a partir de várias dinâmicas internas e inconscientes. Muitos indivíduos constroem uma imagem de si mesmos baseada em valores ideais - generosidade, justiça, solidariedade. Essa imagem faz parte do que Freud chamaria de ideal do ego: um modelo de quem gostaríamos de ser. Contudo, esse ideal nem sempre corresponde às forças emocionais reais que nos governam - como o medo, o desejo de reconhecimento ou a necessidade de controlo. O discurso moral pode então servir como compensação ou máscara para aspectos mais egocêntricos ou sombrios.
Leon Festinger descreveu o fenómeno que tem a ver com a contradição de alguém que acredita que é bom ajudar os outros, e já agora pagar impostos, mas na hora da verdade falha em toda a linha. Mas, se confrontada com isso, arranjam sempre desculpas com facilidade: “os outros não merecem”; “ninguém ajuda, por que eu deveria?”. Assim, a mente encontra formas de proteger o ego da sensação de falha moral. Segundo autores como Daniel Kahneman e Robert Trivers, o autoengano é um mecanismo adaptativo. Em vez de mentir deliberadamente, muitas pessoas acreditam sinceramente em sua própria virtude, mesmo quando suas ações dizem o contrário. A isto se dá o nome de "dissonância cognitiva" -o que torna o egoísmo invisível para o próprio sujeito, que se vê como alguém moral e justo, apesar de seu comportamento sugerir o oposto.
O egoísmo pode ser alimentado por feridas psíquicas antigas: carências afetivas, traumas, medo do abandono. O indivíduo pode desenvolver padrões de autoproteção que parecem egoísmo, mas que são, na verdade, estratégias inconscientes de sobrevivência emocional. Muitas vezes, o discurso moral serve para controlar os outros, e não a si mesmo. Psicologicamente, isso tem um nome: narcisismo (o uso da moralidade como palco para brilhar, parecer superior, ou manipular sem verdadeira empatia).
O raciocínio moral é um produto da mente consciente e lógica. Já a ação moral exige uma integração mais profunda, envolvendo o emocional, o inconsciente e o caráter real da pessoa. É aqui que muitos falham. Apesar de bem disfarçado, o egoísta revela-se nos momentos decisivos. Esta característica humana é um dos suportes dos pessimistas antropológicos. Por exemplo, se pudessem mais gente tentaria fugir aos impostos apesar de reclamarem por um serviço nacional de saúde gratuito para todos. Ou prevaricariam seja no código de estrada, ou outras coisas se não fossem multados ou não fossem para a prisão.
Quando um pessimista antropológico diz que a maioria foge aos impostos, prevarica no código da estrada ou comete pequenas infrações morais sempre que sente que pode escapar impune, está a tocar num ponto fundamental: o sentido moral de grande parte das pessoas não é um imperativo interior, mas uma convenção exterior. O medo da punição é o principal regulador da conduta, não a consciência.
Essa é, aliás, uma das grandes constatações de autores como Hobbes, que via o homem como essencialmente movido por interesses próprios e medo da punição, e por isso defendia a necessidade de um Estado forte. Freud acreditava que a civilização só é possível reprimindo impulsos individuais perigosos, em que a moral é mais uma construção do superego baseada no medo e na culpa. Jung, que dizia que o "bem" não é espontâneo na maioria das pessoas, exige um trabalho profundo de autoconhecimento e integração da sombra. A maioria dos seres humanos não é espontaneamente moral, mas condicionado a sê-lo. E, quando a vigilância externa desaparece, a moralidade também tende a evaporar. Isto não é misantropia gratuita; é uma observação empírica, quase estatística. E talvez por isso seja tão doloroso para alguns, porque desmascara o verniz civilizacional. Este tipo de pessimista não é ser um niilismo desesperado, mas um realista lúcido.
Sem comentários:
Enviar um comentário