quarta-feira, 21 de maio de 2025

Stress crónico, retração empática e o voto de protesto: a ascensão do Chega como sintoma social



Este é o resumo da imagem em epígrafe: «O consumo de medicamentos sem prescrição médica entre os jovens é uma preocupação crescente na Europa. Ansiolíticos e sedativos são os mais usados de forma indevida, seguidos dos analgésicos, revela o mais recente estudo “European School Survey Project on Alcohol and Other Drugs”. O relatório mostra ainda que o número de jovens que apostam online quase duplicou nos últimos cinco anos.»

O recente resultado das eleições parlamentares em Portugal, que viu o Chega ultrapassar o Partido Socialista em número de deputados e a extrema-esquerda sofrer um colapso eleitoral, não deve ser lido apenas como um realinhamento ideológico. Trata-se, acima de tudo, de um sintoma social profundo, ligado a fatores psicológicos coletivos e estruturais, nomeadamente o stress crónico, a retração empática e o colapso do vínculo entre política e bem-estar emocional.

O stress torna as pessoas mais egoístas, mas só nas circunstâncias mais emocionalmente intensas e pessoais. Por isso, o stress sustentado tem efeitos comportamentais bastante desagradáveis. O stress pode prejudicar a cognição, o controlo de impulsos, a regulação emocional, a tomada de decisões, a empatia e a pró-socialidade. O stress em excesso sempre foi um veneno para os adolescentes. Mas nas últimas décadas o stress tem sido maior e não menor. E isso tem as devidas consequências no comportamento da geração de adultos seguinte. E as gerações precedentes não percebem o que se está a passar porque essas influências do stress é como se fosse invisível.

As sociedades contemporâneas vivem sob um regime de stress constante: insegurança económica, pressão por desempenho, isolamento social, hiperestimulação digital e colapso do sentido comunitário. Este stress não se manifesta apenas em sintomas clínicos, mas afeta também a forma como os indivíduos percebem o Outro e se posicionam perante o coletivo.

De facto, o stress crónico e prolongado durante a adolescência tem impactos neurológicos, emocionais e sociais duradouros. E tornou-se mais difuso, mais constante e mais invisível nas últimas décadas. Há alguns fatores contemporâneos que ajudam a explicar esse aumento de stress entre adolescentes: a pressão constante por desempenho (escolar, social, físico); a hipervigilância digital — redes sociais criam uma exposição permanente à comparação e ao julgamento; a insegurança quanto ao futuro — mudanças climáticas, crise habitacional, instabilidade económica e até mesmo a inteligência artificial geram incertezas inéditas; e menor coesão comunitária e familiar — muitos adolescentes crescem em contextos mais fragmentados, sem o apoio emocional estruturado de antes. O problema é que os adultos de gerações anteriores muitas vezes não reconhecem esses fatores como legítimos ou sequer os compreendem, porque viveram numa estrutura social e emocional muito diferente. Para eles, stress era o que se sentia antes de um exame ou de uma entrevista de emprego — não uma pressão psíquica constante, difusa, quase ontológica.

Como mostram estudos neuropsicológicos (e autores como Gabor Maté), o stress crónico afeta diretamente a capacidade empática. Sob pressão constante, o cérebro humano entra em "modo de sobrevivência", reduzindo a atividade das áreas associadas à empatia, autorregulação e julgamento moral. Em vez disso, privilegia respostas defensivas, simplificadoras, e por vezes agressivas. O voto no Chega como sintoma emocional. Neste contexto, o crescimento do Chega não deve ser entendido apenas como um voto ideológico, mas também como um voto emocional. Para muitos eleitores, o partido representa não apenas a promessa de ordem, mas também uma catarse emocional, uma resposta ao ressentimento acumulado, à percepção de abandono e à perda de controlo sobre o próprio destino.

Daí que a esquerda tenha falhado com o seu moralismo estéril. Mas extrema-esquerda não só falhou como se suicidou. A esquerda, particularmente a extrema-esquerda, perdeu o vínculo afetivo com as massas. Passou a ser percebida como elitista, moralista, desligada das dores concretas das pessoas. Enquanto isso, o Chega (como outros partidos populistas noutros países) soube falar às emoções, às frustrações e à necessidade de pertença.

Por outro lado, os comentadores do mainstream também não têm ajudado. Enquanto continuarem a tratar o eleitorado com desdém ou como um corpo irracional, continuarão a falhar o essencial: o Chega cresce não porque o povo é malvado, mas porque está exausto, stressado, e sem representação afetiva. A empatia política é impossível sem segurança emocional. E ninguém vota com o cérebro totalmente racional quando vive com o corpo em estado de alerta. Se quisermos combater o populismo, temos de começar por curar o stress social que o alimenta.

O discurso público sobre o "défice de empatia" costuma ser superficial, quase moralista, como se a empatia fosse uma escolha consciente que se decide tomar ou não. Mas ignoram o mais importante: a empatia é profundamente afetada por fatores neurofisiológicos, sendo o stress crónico um dos principais bloqueadores dessa capacidade.

Sob stress intenso ou contínuo, o cérebro ativa mecanismos de sobrevivência (eixo HPA: hipotálamo–hipófise–adrenal), priorizando a autopreservação. Isso reduz a atividade do córtex pré-frontal (responsável pela autorregulação, julgamento moral e empatia) e aumenta a atividade da amígdala (reação emocional e defensiva). Resultado? Menos empatia, mais irritabilidade, mais retraimento emocional. Ou seja, a própria estrutura cerebral da empatia desliga-se parcialmente em estados de stress contínuo. Não por escolha — por necessidade fisiológica.

Mas os comentadores, em geral, fazem diagnósticos morais, e não estruturais: dizem que os jovens (ou os outros, em geral) “não querem saber”, “estão egoístas”, “estão desumanizados”. Não percebem que muitas dessas pessoas estão em modo de sobrevivência, muitas vezes desde cedo. Essa cegueira revela não só ignorância científica, mas também uma recusa em olhar para a sociedade que se construiu — uma sociedade que gera stress, competitividade tóxica, insegurança constante e depois se espanta que falte empatia.

Gabor Maté é uma das vozes mais lúcidas nesta interseção entre trauma, stress e comportamento humano. Ele defende que o comportamento “disfuncional” é muitas vezes uma adaptação a um ambiente insustentável, e que o stress crónico — sobretudo na infância e adolescência — mina a capacidade de empatia, conexão e autorregulação. Algumas ideias centrais do seu pensamento:

O stress e o trauma não são apenas eventos extremos — são contextos repetidos. Maté alarga a definição de trauma: não é apenas o que acontece contigo, mas o que não acontece quando precisas — como não receber carinho, escuta, validação emocional. Crianças (e adolescentes) sob stress contínuo, mesmo que “funcionais”, crescem com défices na sua capacidade empática, não por maldade, mas por desadaptação neurobiológica.

O corpo e o cérebro moldam-se ao stress. O cérebro de um adolescente cronicamente em modo de ansiedade reorganiza-se para sobreviver, não para compreender o Outro. Isso tem consequências no adulto em que se tornará. A cultura moderna é estruturalmente traumática. A sociedade ocidental contemporânea tornou-se numa máquina produtora de stress: isolamento, competição desenfreada, ausência de tempo para o vínculo, hiperestimulação digital. Não é só que haja indivíduos traumatizados — é a cultura em si que gera trauma coletivo. Logo, a falta de empatia que observamos não é um desvio: é um sintoma.

As “doenças mentais” são muitas vezes respostas sãs a contextos insanos. Ansiedade, défices de atenção, insensibilidade emocional, adições… não são sempre falhas individuais. Muitas vezes são formas de lidar com uma realidade que o organismo humano percebe como insegura, instável, ameaçadora. Portanto, quando os comentadores falam do "défice de empatia" sem fazer esta leitura estrutural, acabam por perpetuar o problema: culpam os indivíduos por algo que é, em boa parte, causado pelo próprio modelo de sociedade — um modelo que eles, aliás, muitas vezes ajudam a legitimar nos seus próprios comentários.

O crescimento explosivo do Chega — bem como o colapso da extrema-esquerda — não é um fenómeno isolado ou apenas político. É um sintoma coletivo, enraizado precisamente nesse stress invisível e acumulado de que falávamos antes. Stress social e político gera retração empática. Sob contextos prolongados de incerteza económica, crise habitacional, perda de sentido coletivo e ameaça cultural (real ou percebida), as populações tendem a fechar-se sobre si mesmas. É o mesmo mecanismo de defesa que falávamos a nível individual: sobrevivência psicológica. Um país exausto é um país mais vulnerável ao discurso que promete ordem, castigo, identidade e simplificação. Empatia exige segurança — sem ela, surge o ressentimento.

O Chega percebeu isso melhor do que os partidos ditos do "arco da governação": percebeu que há um eleitorado emocionalmente em ruptura, que não quer mais ser chamado a compreender minorias, migrantes, ou até valores liberais — quer sentir-se ouvido, protegido e vingado. A esquerda perdeu o vínculo afetivo com as massas. A extrema-esquerda (e até o centro-esquerda, como o PS) deixou de ser o lugar onde o povo se reconhece afetivamente. Tornou-se, aos olhos de muitos, uma elite moralista e desconectada. E quando o discurso da esquerda se reduz a condenações éticas, enquanto as vidas reais se deterioram, o eleitorado parte à procura de quem fale mais à sua dor do que à sua culpa.


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