sábado, 24 de maio de 2025

Filosofia da Cultura: decadência ou metamorfose?


A visão “decadentista” de autores como Oswald Spengler (A Decadência do Ocidente), Arnold Toynbee ou Christopher Lasch (A Cultura do Narcisismo) apontam para uma erosão do sentido nas culturas tardias. A arte deixa de ter uma missão espiritual ou comunitária e passa a ser mero reflexo da fragmentação do eu. A excentricidade dos tempos modernos é sintoma de uma cultura que perdeu o seu eixo e se refugia na forma vazia, no ruído, no exibicionismo, ou seja, torna-se numa cultura sem alma.

A visão “libertadora” (pós-moderna), por outro lado, que remete para pensadores como Foucault, Derrida, Butler ou Baudrillard, abandonou os grandes discursos normativos (sexo, nação, religião, identidade fixa) e abriu caminho para uma pluralidade radical de expressões. Tratou-se de uma revolução simbólica que pôs fim à metafísica binária.

No fundo, o estado atual da arte - monopolizada pela performativa - pode ser lido como um espelho de uma sociedade onde os referenciais clássicos se diluíram. É um sintoma de um certo esgotamento civilizacional.  É mais um tipo de ruído para quem sente que a arte perdeu clareza, beleza e sentido espiritual. Nada disto é novo à superfície da História. Lembremos o fim do Império Romano, e depois o Renascimento na Baixa Idade Média, seguida de novo com o Romantismo no fim do século XIX até chegarmos aos dias de hoje com o mundo do espetáculo mediatizado e pós-moderno.

No século IV-V d.C., Roma já não era o coração espiritual do Império. Constantinopla substituíra Roma como novo centro de poder e fé. As elites viviam cada vez mais voltadas para o hedonismo, o luxo, os espetáculos de massas (lutas de gladiadores, competições, festivais), enquanto a estrutura moral e religiosa antiga se esfarelava. Como hoje, a cultura romana tardia deu primazia ao excesso e à forma, mesmo quando o conteúdo espiritual e ético já estava esvaziado. Os espetáculos públicos tornaram-se mais viscerais, violentos, grotescos, como forma de manter a atenção das massas. Tal como hoje, muitos espetáculos usavam o choque, a ambiguidade e o excesso como mecanismo central.

A incapacidade de distinguir o essencial do acessório, o belo do depravado, era vista por autores como Agostinho e Salviano como sinais da decadência moral de Roma. Entre os séculos XIII e XV, estamos já nos finais da Idade Média. Da passagem de um mundo teocêntrico para o humanismo renascentista. A Europa vivia uma tensão: a ordem feudal e religiosa começava a dar lugar a novas forças: o comércio, as cidades, as universidades, e os Estados nacionais. Ao mesmo tempo, surgia uma nova visão do homem: não mais só pecador ou servo de Deus, mas criador, artista, e pensador.

A arte começa a abandonar o esquema simbólico e fixo da iconografia medieval (Cristo, santos, julgamento) e passa a explorar corpo, emoção, movimento, ambiguidade (Giotto, depois Botticelli, Michelangelo). Aparece a figura do artista-exceção, o “génio” que pode reinventar o mundo (Dante, Leonardo ... No final do século XIX, muitos intelectuais e artistas europeus (particularmente em França, Áustria, Alemanha) expressavam uma profunda fadiga cultural. A civilização burguesa parecia tecnicamente avançada, mas espiritualmente estéril. Figuras como Oscar Wilde, Baudelaire, Joris-Karl Huysmans ou Klimt exploraram o artificial, o andrógino, o barroco, o perverso, ou seja, tudo aquilo que desafiava o “normal”. Havia uma angústia existencial, uma sensação de fim de ciclo — algo que também se nota hoje, muitas vezes disfarçado de euforia ou libertação.

Hoje também vivemos uma época em que os velhos referenciais estão em colapso, e uma nova visão do ser humano: fluido, híbrido, autoconstruído. Emerge, à semelhança do “novo homem” renascentista. A diferença está no conteúdo: o Renascimento acreditava profundamente na dignidade do homem; hoje, muitos artistas trabalham na chave da desconstrução e ironia, não da exaltação ou transcendência. A estética dominante hoje passa pela ambiguidade sexual, esteticismo extremo, culto da artificialidade, exaltação do exótico, do mórbido, do “estranho”. Tudo é performativo: até a identidade, o género, a dor, o prazer, a política. As categorias clássicas (masculino/feminino, sagrado/profano, belo/feio, arte/mercado) tornaram-se voláteis ou irrelevantes.

A arte não quer mais transcender ou ensinar; quer desorientar, exibir, multiplicar identidades, ocupar a tela visionada. A estética da Eurovisão, por exemplo, não é mais “musical” no sentido clássico. É um produto total de estilo, visualidade, sexualidade performada, que serve mais para criar efeito de singularidade do que para transmitir uma mensagem transcendental.

Podemos dizer que o nosso tempo - tal como Roma decadente, o fim da Idade Média ou o século XIX vive o fim de uma forma de organização simbólica do mundo. Mas enquanto os períodos anteriores preparavam um novo nascimento (o cristianismo, o Renascimento, a modernidade), o nosso parece oscilar entre a dissolução permanente e a espera de algo ainda não nomeado. Talvez uma nova ordem espiritual, ou uma nova relação com a técnica e com a verdade.

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