Como se explica que os distritos do Sul, que a seguir à Revolução de Abril eram maioritariamente comunistas e socialistas, e hoje são maioritariamente do Chega? A transição do voto comunista para o socialista e, mais recentemente, para o Chega em alguns distritos de Portugal pode parecer contraditória à primeira vista, mas faz sentido quando analisada sociologicamente, historicamente e emocionalmente.
Os distritos onde o PCP foi forte no pós-25 de Abril -- Beja, Évora, Setúbal, Portalegre -- eram zonas rurais, operárias ou de latifúndio, marcadas pela pobreza, baixa escolaridade e exploração laboral. O voto comunista representava uma resposta de revolta e desejo de justiça social. Com o tempo, o envelhecimento do eleitorado do PCP, mas também a perda de ligação por modificação do tipo de classe trabalhadora, levou parte do novo eleitorado a procurar também novos canais de protesto. Primeiro passou a escolher o PS, visto como mais viável e moderado, já sem a rigidez ideológica comunista. Mas hoje, em clima de desilusão com o sistema democrático, esse mesmo eleitorado encontra no Chega um novo instrumento de protesto, mais emocional e menos ideológico.
Muitos desses territórios sentem-se esquecidos pelo poder central. Há poucos serviços, oportunidades de emprego e degradação do tecido social. Antes, a esquerda canalizava esse descontentamento. Agora, com a percepção de que todos os partidos do “sistema” são iguais, o Chega entra como a voz contra as elites. E como um mal nunca vem só, por último juntou-se a imigração, a começar pela percepção de que beneficiam de apoios do Estado que não merecem. Ao contrário do que muitos pensam, os antigos eleitores do PCP nunca foram progressistas em termos de costumes. Muitos eram conservadores nos valores: trabalho, disciplina, ordem. O discurso de Ventura, apesar de ser, além do mais, conservador ressoa com esses valores tradicionais.
Hoje o voto também já não é tão ideológico como era há cinquenta anos. Hoje é mais afetivo e reativo. Um eleitor pode ter votado comunista, socialista e agora Chega, sem pensar nas contradições programáticas, mas apenas no que sente em relação ao estado atual das coisas. A política tornou-se uma expressão emocional de medo, raiva e frustração. A esquerda tradicional não renovou o discurso para as novas ansiedades sociais (segurança, imigração, declínio económico, falta de mobilidade social). Ao manter uma retórica ancorada em velhas ideologias que já pouco sentido fazem nos dias de hoje, essa esquerda perdeu o contacto com as angústias reais de parte da população. O Chega, com mensagens simples e fortes, aproveitou esse vazio.
Bem. Para desdramatizar digo que estas mudanças eleitorais não estão a acontecer apenas em Portugal. A começar pela França, já há mais tempo que no norte industrial o voto é de Le Pen. Regiões como Pas-de-Calais e Nord, que até aos anos 80 eram bastiões do Partido Comunista Francês, hoje votam em massa no Rassemblement National (antigo Frente Nacional), de Marine Le Pen. E a explicação está na desindustrialização brutal que levou à perda de empregos e degradação urbana. O comunismo perdeu relevância e o Partido Socialista passou a ser visto como parte do “sistema”. Le Pen soube canalizar a raiva popular com mensagens simples: proteger os franceses, fechar fronteiras, castigar delinquentes. E foi assim que o antigo operário comunista se tornou o novo eleitor nacional-populista.
Após a reunificação, muitos ex-cidadãos da RDA (antiga Alemanha comunista) votaram nos sociais-democratas (SPD) e, mais tarde, migraram para a esquerda radical (Die Linke). Hoje, cada vez mais votam na AfD (Alternativa para a Alemanha), partido de extrema-direita. Porquê? Sentimento de injustiça histórica. Muitos sentiram que foram “colonizados” pela Alemanha Ocidental. Desemprego e emigração jovem agravaram o ressentimento. Perda de identidade e valores tradicionais gerou anseio por ordem e autoridade, que a AfD promete restaurar. Regiões do centro e norte italiano, antes fiéis ao Partido Comunista Italiano (PCI), passaram a votar em Matteo Salvini (Liga) e, mais recentemente, em Giorgia Meloni (Fratelli d’Italia). Salvini e Meloni usam uma retórica “popular”, evocando Deus, Pátria, Família, e atacando imigrantes, elites e a UE. O mesmo povo que antes pedia proteção contra os patrões, agora pede proteção contra os migrantes e os burocratas europeus.
Moral da história: O voto radical migra facilmente, mas a base afetiva e cultural do eleitorado permanece: desejo de ordem, justiça e reconhecimento. Quando a esquerda não responde a isso, a direita populista ocupa esse espaço, mesmo que com uma ideologia oposta à anterior.
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