Nos anos de 1930 estabeleceu-se, de facto, um paralelismo entre movimentos políticos e seitas religiosas. E esses tempos parede que voltaram. Não é novo, portanto, que ganha sempre força quando o racional democrático é substituído pela especulação emocional mais precária do ser humano, em que a crença substitui a análise crítica. Em contextos de crise social ou identitária, essas figuras performativas, por mais ridículas que pareçam num plano argumentativo, tornam-se catalisadoras de frustrações difusas. O que explica parte do sucesso de Ventura e de outros fenómenos semelhantes em várias partes do mundo.
São sintomas de algo mais profundo que nos deve preocupar. Trata-se da erosão dos pilares racionais do debate público, e o regresso de formas de pensamento quase tribais, onde o líder é seguido como um xamã ou um guerreiro mítico. É caso para dizer: "mais vale fechar o estaminé e deitar a chave nas águas mais profundas do oceano Atlântico.
Como é que isto foi possível acontecer em 2025, quando na verdade o tempo das trincheiras irracionais havia sido proscrito em 1989 pela queda do Muro de Berlim? O otimismo eufórico foi tão grande que até Fukuyama decretou o Fim da História em 1991. O liberalismo democrático havia triunfado de uma vez para sempre. Mas afinal, o que estamos a viver agora é o desencanto de um fim civilizacional e não o fim da história. A História prossegue marcada por múltiplas crises e simultâneas: climática, identitária, económica, demográfica e informacional. É assim que se explica a ressuscitação do “misticismo político”. O histrionismo quase religioso de certas figuras como Ventura ganha agora um novo espaço.
Após a queda do Muro de Berlim, as grandes narrativas ideológicas da esquerda política: comunismo, socialismo, liberalismo - perderam a força mobilizadora que haviam adquirido em todo o século XX. A política virou gestão, tecnocracia, e as massas sentiram-se órfãs de sentido. Num mundo onde tudo parecia resolvido e estabilizado, paradoxalmente, cresceu uma fome por rupturas, por “cruzadas” e por líderes que oferecessem mais do que meros planos de governo: visões totais da realidade. A culpa foi da globalização que dissolveu todas as estruturas identitárias tradicionais das classes trabalhadoras, das culturas locais, e obviamente num deserto sem religião vivida no quotidiano. Em troca, ofereceu um cosmopolitismo económico e tecnológico que criou um oásis de consumidores sequiosos de hedonismo. E isso desorientou as pessoas para uma nostalgia por nações fortalecidas pelos seus valores tradicionais carregados de mitos fundacionais. Ventura, como outros, responde a essa ânsia de pertença através de promessas de religação (religião) a uma identidade mítica perdida.
Nos anos 90, a política ainda se fazia sobretudo pela televisão e pelos jornais. Hoje, a lógica das redes sociais impõe uma comunicação emotiva, simplificada, visualmente impactante onde o histrionismo não é um defeito, mas uma vantagem competitiva. O político que grita, dramatiza, chora ou tem um espasmo esofágico em direto obtém milhares, não de cliques, mas de cheliques. E isso, em termos eleitorais rende. E é assim que o eleitorado se torna terreno fértil para líderes que prometem a “salvação” em vez de reformas. A linguagem torna-se religiosa, com promessas de purificação moral e luta contra o “mal” (corrupção, elites, estrangeiros) para redenção da pátria.
Nietzsche e Dostoiévski bem avisaram o que estava no porvir. O que está no porvir é o sentido da vida. Não se vive apenas de pão. Ora esse sentido que era dado pelas religiões através dos santos passou a ser dado pelas ideologias através dos ideólogos, ou santos laicos. Ora, com a queda do Muro de Berlim também as ideologias do sentido da vida também se esfumaram, e passaram a ser substituídas por causas. E essas causas dividiram-se em múltiplas identidades fragmentárias. E isso foi a causa derradeira do reaparecimento dos patriotas gloriosos.
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