Por mais distantes e impenetráveis que pareçam, bardos como Homero ou Shakespeare falam diretamente às preocupações mais profundas da vida humana. E é nesse retorno que a sabedoria perene se revela, pronta para nos guiar de volta ao que realmente importa, mesmo em tempos de confusão e superficialidade. Talvez o maior ensinamento de todos seja justamente o de que, por mais que a sociedade mude, os dilemas existenciais são os mesmos. A sabedoria dos antigos está sempre ao nosso alcance, esperando para ser reaproveitada, reinterpretada e, mais importante, vivida. Ao darmos atenção a essas obras, podemos reconstruir e até redescobrir a nossa própria humanidade.
No Cânone Ocidental, Harold Bloom não apenas defende Shakespeare como o ponto mais alto da consciência literária, mas também adverte contra o que ele chama de "escolas do ressentimento" - uma expressão que se aplicaria hoje, quase profeticamente, a certos setores da academia dominados por uma visão identitária reducionista, onde o valor de uma obra passa a ser medido apenas pelo grupo social que representa. A crítica de Bloom não é à justiça social em si. Ele era sabedor das injustiças históricas. Ele era contra o uso da literatura, como instrumento ideológico, que desvaloriza o que ela tem de mais essencial, o humano, demasiado humano, com todas as suas contradições.
Parece que estamos num momento em que tudo o que não for representativo de uma determinada bandeira identitária é descartado, mesmo que contenha verdades humanas profundas. E aí Bloom volta à tona como um velho profeta incompreendido: dizendo que, ao banir a complexidade em nome da pureza ideológica, estamo-nos tornando pobres espiritualmente e intelectualmente. Shakespeare, para Bloom, era aquele que mais profundamente compreendeu a pluralidade da alma humana. Daí que deveria ser lido sempre, em qualquer tempo, inclusive por quem busca justiça e emancipação. Mas com grande parte dos currículos académicos refém das “tribos woke”, Shakespeare virou “cis-hétero-branco europeu”, uma categoria que, a ser desconstruída, não dá em nada. O que era para ser um debate sobre conteúdo, pensamento, sentido, torna-se uma espécie de ritual de correção moral e terminológica, onde quem ousa falar fora da cartilha é imediatamente policiado. Como se o conhecimento estivesse subordinado a um controlo ideológico do discurso, não muito diferente da novilíngua orwelliana.
Poderia haver uma forma mais eficaz de equilibrar a modernidade e a sabedoria ancestral, ou, na verdade, são essas vozes do passado o que falta para o presente se reencontrar consigo mesmo? Sempre foi assim, de Renascimento em Renascimento, o modelo cíclico muito apreciado por certos filósofos ocidentais inspirados pelos orientais. O conceito de renascimento cíclico é uma ideia profundamente enraizada não apenas na filosofia ocidental, mas também nas tradições filosóficas orientais. Esse modelo cíclico de ascensão e declínio das civilizações e ideias parece estar no coração da nossa experiência histórica e cultural, e os filósofos que o abraçam têm uma visão bem diferente da linearidade do tempo que, frequentemente, se impõe nas narrativas modernas. O Renascimento, por exemplo, foi uma ressurreição da antiguidade clássica, onde houve um retorno a ideias e valores de autores como Platão, Aristóteles, e, claro, os grandes poetas e dramaturgos como Homero e Sófocles. O próprio termo "Renascimento" encapsula essa ideia de uma renovação cultural. O renascimento de algo antigo que nunca desapareceu completamente, mas foi obscurecido por tempos de escuridão intelectual ou de estagnação.
Esse modelo cíclico pode ser encontrado também em filósofos como Nietzsche, que falava do conceito de eterno retorno. Para Nietzsche, a circularidade do tempo significava que o ser humano seria condenado a viver as mesmas experiências repetidamente, mas com a possibilidade de redenção através da volta afirmativa à vida. Sua ideia não era apenas de um ciclo de repetição, mas de um renascimento através da transformação da nossa visão do mundo e de nós mesmos, algo que se alinha muito com a ideia de ressurgir da decadência de cada ciclo. O filósofo Friedrich Hegel, com a sua dialética, também propôs um modelo de desenvolvimento histórico que, embora não fosse exatamente cíclico, sugeria um movimento contínuo de ascensão e queda, onde a contradição e a superação de cada período criavam uma nova síntese, um novo renascimento. De certa forma, ele via a história como um processo contínuo de evolução das ideias, com momentos de crise seguidos de novas configurações.
Na filosofia oriental, especialmente em tradições como o hinduísmo e o budismo, o ciclo de vida - morte e renascimento - é um tema central. No hinduísmo, existe a ideia do kalpa, um grande ciclo de criação e destruição do universo, que reflete o processo contínuo de renovação do cosmos, um ciclo sem fim. Para os budistas, o samsara com o seu ciclo de nascimento e morte, reflete a impermanência da vida e a possibilidade de libertação através da compreensão e transformação espiritual. Este ciclo de renascimento não está apenas ligado à história das ideias, mas também à cultura e à civilização. Cada renascimento no Ocidente, desde o Renascimento (entre uma Idade Média e uma Idade Moderna) dos séculos XV e XVI em que se voltou a visitar os clássicos, entramos nas grandes revoluções culturais que impregnaram os séculos que se seguiram até aos dias de hoje. Claro, como sabemos, nem sempre o renascimento é completo, ou perfeitamente realizado, e a esperança nas promessas de um mundo melhor redundaram em novos processos de conflito e crise.
Essa perspectiva histórica de ciclos culturais num processo de eterno retorno é a real perspectiva da pura humanidade, não linear, não progressiva, mas circular, ou não linear. Seja por crises, seja por reflexão, encontrar novos caminhos para a verdade, sabedoria e entendimento, é o caminho certo e natural. O grande desafio da nossa época, talvez, seja entender o que são os ciclos de declínio, que incorporam dentro de si o renascimento constante. A sabedoria perene, que sobreviveu aos colapsos do passado, não é ter medo do futuro, mas uma chave para entendermos melhor como podemos avançar em tempos de incerteza. Ela nos ensina a olhar para o passado com reverência e crítica, e usar essas lições para renovar o presente e projetar um futuro mais significativo. Talvez, então, o grande segredo seja que o verdadeiro Renascimento surge sempre quando somos capazes de integrar o antigo e o novo, de aprender com o passado, mas também de transformar e adaptar uma realidade perene e oscilante entre passado e futuro.
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