domingo, 4 de maio de 2025

As tensões ao nível do conhecimento


Entre alguns tipos diferentes de conhecimento, há uma tensão entre conhecimento impessoal e conhecimento pessoal. Este foi o desafio central lançado pela Fenomenologia a partir de Edmund Husserl. Essa divisão reflete duas formas de nos relacionarmos com o mundo, e com o saber acerca dele. O conhecimento impessoal é o tipo de conhecimento que transcende o indivíduo e é considerado universal e objetivo. Está associado às ciências e à transmissão cultural. Baseia-se em conceitos, leis da física, sistemas e normas que não dependem da vivência particular de nenhum sujeito específico. É abstrato e mediado pela linguagem. É um saber compartilhável, mas, muitas vezes, desconectado da singularidade do sujeito. Exemplo: "A água ferve a 100°C ao nível do mar" - uma verdade que é válida em qualquer parte do mundo independentemente de quem o diga.

O conhecimento pessoal emerge da subjetividade e do viver concreto de cada um. Está enraizado na consciência do si, do eu. Ipseidade no vocabulário da Fenomenologia. Estamos cientes (temos ciência) do nosso ser único e singular, que é a experiência individual e intransferível. Não pode ser completamente objetivado ou comunicado, pois pertence à esfera do vivido. É formado pela relação íntima do sujeito consigo mesmo e com a vivência do mundo, incluindo emoções e intuições. Exemplo: Eu sei o que senti e o que passei ao ser assaltado. Esse tipo de saber não pode ser plenamente transmitido; apenas quem o viveu o pode saber ou compreender. 

Husserl defende que todo o conhecimento, mesmo o científico, tem as suas raízes no mundo vivido, na experiência direta e subjetiva (Lebenswelt). Heidegger, com o Dasein, propõe que o ser humano não é nem puramente universal nem exclusivamente singular, mas está sempre numa relação dinâmica entre o ser impessoal (das Man, "o se") e o ser autêntico. Tentamos reduzir uma forma de conhecimento à outra como complementares. O conhecimento impessoal é essencial para criar universos compartilhados, mas é o conhecimento pessoal da ipseidade que dá sentido e profundidade à nossa existência. Encontrar equilíbrio entre esses polos é um desafio filosófico e existencial contínuo.

Dizer que Deus é tão livre de existir como de não existir é uma tentativa de expressar o inefável, que inevitavelmente resulta em paradoxos, mas não menos em maravilhamento. O ser humano, ao formular tal ideia, revela tanto a sua capacidade metafísica como o seu anseio profundo por transcender os limites da existência, deslumbrando-se com a sua própria imaginação diante do mistério do Absoluto. É daí que resulta aquela anedota/parábola do "paradoxo do sábio e do discípulo": Dois amigos foram dirimir as teimas junto do sábio: Um dizia que Deus não existe; o outro dizia que existia. Perante os argumentos do primeiro o sábio disse que ele tinha razão. Mas depois, perante os argumentos do segundo, o sábio disse que ele tinha razão. O discípulo, que estava a assistir ao diferendo, disse que os dois não podiam ter razão ao mesmo tempo. E o sábio respondeu ao discípulo que ele tinha razão.

Aquela filosófica zen, revela a complexidade e a relatividade da verdade em questões metafísicas. Ela aponta para algo fundamental: a verdade sobre o absoluto não pode ser enquadrada num sistema lógico rígido, pois o absoluto transcende as categorias e os opostos. Perante o paradoxal temos de ter uma postura dialética, que é comum em tradições filosóficas e espirituais que lidam com o inefável - o mistério ou a experiência de transcendência. O sábio aceita as limitações de cada argumentação, mas também a validade da experiência subjetiva de cada um. O discípulo, representando a lógica clássica ou o pensamento binário, aponta que dois enunciados contraditórios não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo. E o sábio, de maneira irónica ou iluminada, concede-lhe também razão. A parábola nos lembra que a verdade, em questões profundas como a existência de Deus, não é algo que pode ser capturado plenamente pela razão ou pela linguagem. O absoluto é contraditório por natureza.

O entendimento humano é limitado diante do mistério, que é do domínio doo deslumbramento. E o que caracteriza os sábios é não pedirem licença à lógica para entrar diretamente no campo da verdade, que é sempre maior do que os conceitos. Assim como na afirmação de que Deus é "tão livre de existir como de não existir", essa parábola expressa o deslumbramento humano diante do mistério, reconhecendo que a busca por respostas definitivas pode ser menos importante do que a aceitação do paradoxo. A anedota revela que o sábio, em sua sabedoria, não se prende ao jogo de "quem está certo", mas aponta para a insuficiência da razão discursiva em abarcar questões metafísicas. No final, ele reconhece que todos têm razão, porque cada perspectiva é uma janela parcial para um mistério maior. É um convite a transcender as disputas e abraçar o paradoxo com humildade e abertura.

Na verdade, a intrincada relação entre reflexão filosófica e teológica desenvolveu-se nos primeiros séculos desta era aquando do reencontro entre Helenismo e Cristianismo. Vê-se nos textos do Pseudo-Dionísio, e as interpretações de São Tomás de AquinoEsse reencontro não foi meramente uma fusão de ideias, mas um esforço intelectual para reinterpretar o pensamento grego à luz da fé cristã. Textos como os de Pseudo-Dionísio Areopagita e as subsequentes interpretações, especialmente por Tomás de Aquino, são exemplos paradigmáticos dessa síntese. O Helenismo representava o pensamento filosófico grego, especialmente o neoplatonismo, com o seu foco em conceitos como a unidade do ser; o infinito e o inefável; ou a estrutura hierárquica do cosmos. O Cristianismo precisou dialogar com essas categorias filosóficas para expressar os seus mistérios numa linguagem compreensível ao mundo greco-romano. 

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