segunda-feira, 26 de maio de 2025

Convicção moral em política


Tendo em conta os trabalhos dos psicólogos Martin Hoffman e Jonathan Haidt – em que a intuição moral leva a melhor sobre o raciocínio lógico e racional sobre a moral consciente – o raciocínio moral é por vezes flagrantemente ilógico. E é neste ponto que André Ventura deu nas últimas eleições uma cabazada a Mariana Mortágua. Martin Hoffman e Jonathan Haidt são fundamentais para compreender como a moral humana funciona. O sistema moral não funciona tanto como um sistema lógico, ao contrário do que muito pensador pensa, mas como uma resposta emocional instintiva, à qual o raciocínio serve mais como advogado do que como juiz. Haidt, sobretudo, mostrou com elegância que a maior parte das decisões morais já estão tomadas antes da reflexão consciente, e que esta muitas vezes serve apenas para justificar aquilo que já sentimos.

E é exatamente aí que se percebe a eficácia de André Ventura e a fragilidade de Mariana Mortágua, do ponto de vista da comunicação política. Ventura compreende intuitivamente (ou talvez até maquiavelicamente) que a moral política das massas se move mais por sensações fortes – medo, indignação, pertença, ressentimento – do que por coerência ideológica. Ele fala diretamente ao “elefante” da metáfora de Haidt (as emoções), enquanto Mortágua tenta convencer o “condutor” (a razão), num estilo moralista e condescendente que acaba por irritar até quem poderia simpatizar com ela.

Mas o logro não fica por aqui. Todos os comentadores da bolha bem-pensante ficaram de boca aberta por terem falhado nas previsões, ao verem o Chega como segunda força no parlamento e o partido socialista, pela primeira vez em terceiro lugar. Porque o povo tem razões que a razão desconhece. O povo tem razões que a razão desconhece, e a elite comentadora continua, eleição após eleição, a cair no mesmo erro: confundir convicções próprias com diagnóstico da realidade.

A chamada “bolha bem-pensante” – composta por académicos, jornalistas, analistas e militantes que orbitam em torno de um consenso progressista – vive muitas vezes num ecossistema moral e cultural autocentrado. Nesta bolha, o Chega é visto como uma aberração moral, um “erro do sistema” que mais tarde ou mais cedo será corrigido. E, por isso, os analistas falham, porque projetam o que deveria ser em vez de escutarem o que está a ser. A emergência do Chega como segunda força e a queda do Partido Socialista para terceiro são, no fundo, o reflexo de uma erosão profunda: uma crise de confiança num sistema político que já não representa nem acolhe o desconforto real das pessoas comuns – aquelas que lidam com salários baixos, insegurança, imigração desordenada, degradação dos serviços públicos, ou um sentimento difuso de perda de controlo sobre a sua própria vida.

E o Chega, com todos os seus excessos, nomeia esses desconfortos – enquanto os outros partidos muitas vezes os racionalizam, os relativizam ou os ignoram com um tom de paternalismo. O “logro” maior talvez não esteja na ascensão de Ventura, mas na cegueira autoindulgente de quem, em vez de tentar compreender as emoções políticas dos eleitores, prefere rotulá-las como “populismo”, “irracionalidade” ou “retrocesso”. E nesse gesto, reforçam exatamente o ressentimento que fingem combater. O povo sente antes de pensar. E quem não entende isso está sempre atrasado.

Não me querendo armar em psicólogo, Mariana Mortágua terá ficado congelada nalgum ponto da adolescência a caminho do seu amadurecimento para a vida adulta. Filha, com a irmã gémea, de um grande revolucionário comunista que combateu Salazar, e os bancos à mão armada, tal aspeto não deve ser subestimado na análise destas figuras públicas: o peso do legado familiar como molde da personalidade política.

Mariana Mortágua parece, de facto, encarnar uma espécie de prolongamento afetivo-ideológico do seu pai, Camilo Mortágua, figura lendária da resistência armada ao salazarismo e à banca como símbolo do poder opressor. Crescer sob essa herança, ainda por cima partilhada com uma irmã gémea, pode ter criado nela uma missão existencial: dar continuidade a uma luta que já vinha marcada como nobre, justa e épica.

O problema é que a adolescência ideológica – essa fase em que o mundo se divide nitidamente entre o bem e o mal – só se torna um problema quando persiste na idade adulta, sem abertura para a ambiguidade, para o compromisso e para a dúvida. E a política democrática, por muito frustrante que seja, vive dessas zonas cinzentas. É por isso que o raciocínio analítico sobre um certo “congelamento” emocional ou simbólico faz sentido. Mortágua talvez nunca tenha deixado de ser a filha do guerrilheiro – o que, em vez de ser apenas um dado biográfico, parece ter-se tornado o centro da sua identidade pública. E quando a identidade está alicerçada numa fidelidade emocional ao passado, a mudança deixa de ser uma possibilidade e passa a ser vivida como uma traição. Nesse sentido, há algo de profundamente pessoal, e até trágico, na sua persistência política: ela não luta apenas por ideias; luta, talvez, para continuar a ser quem é.

Ou seja, Mortágua joga xadrez num tabuleiro de emoções; Ventura joga futebol num estádio cheio, com bandeiras, cânticos e gritos de guerra. E isso explica a “cabazada” eleitoral: não foi só uma vitória política, foi uma vitória sobre um discurso que soa a superioridade moral, muitas vezes desligado do sentimento comum. A esquerda como a de Mortágua continua a acreditar que basta estar “do lado certo da História”. Ventura percebeu que basta parecer estar do lado do povo.

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