Toda a profissão que exige uma formação superior tende naturalmente a criar, ao longo do tempo, uma "corporação" que busca proteger os seus membros e ampliar os seus privilégios. Médicos, advogados, engenheiros, professores universitários, magistrados, militares, todos são exemplos clássicos. E isso não é necessariamente fruto de conspiração maligna, mas de uma dinâmica natural: grupos organizados têm mais capacidade de pressão sobre o poder político do que indivíduos isolados. É a velha máxima da política: quem não está organizado está à mercê de quem está.
Essa tendência também explica porque certos cursos universitários continuam mais "promissores" em termos de mobilidade social: não apenas pelo conhecimento técnico que transmitem, mas pela força social e política da categoria profissional associada. A luta por reconhecimento, por recursos e por poder é intrínseca à condição humana em sociedade. O que pode mudar são as formas (mais ou menos subtis, mais ou menos abertas) dessa luta — mas a luta em si é permanente.
Desde a Antiguidade, mas sobretudo a partir do século XIX, a medicina organizou-se como uma corporação extremamente influente. Em países como França e Inglaterra, as associações médicas (como o General Medical Council britânico) passaram a ter poder legal de definir quem pode ou não exercer medicina, controlando a formação e o acesso à profissão. Hoje, em praticamente todos os países, os médicos são uma das classes mais respeitadas e protegidas — inclusive em termos de salários públicos, isenções e influência sobre políticas de saúde. Em muitos lugares, sindicatos e ordens médicas conseguem travar reformas que possam ameaçar os seus interesses.
A advocacia e a magistratura construíram verdadeiros "reinos" dentro dos Estados modernos. O exemplo clássico é o sistema jurídico francês após a Revolução: os advogados foram fundamentais na formulação do novo direito, mas rapidamente se fecharam em associações (ordens) para controlar a profissão. Magistrados, por sua vez, obtêm "privilégios de casta". É difícil reformar sistemas judiciais sem enfrentar forte resistência dessas corporações. Durante o século XIX e XX, os engenheiros foram vistos como construtores de civilização. Grandes projetos de infraestrutura, urbanismo e industrialização fizeram deles figuras centrais no Estado. Em Portugal, por exemplo, a Ordem dos Engenheiros continua a ser uma instituição muito prestigiada, que controla o acesso à profissão e influencia diretamente as políticas públicas de obras, meio ambiente e urbanismo.
As universidades, sobretudo após a Revolução Industrial e a expansão dos Estados modernos, tornaram-se centros de produção de saber e também de poder. Em muitos países, o sistema universitário é quase intocável. Corporações académicas conseguem defender os seus orçamentos, seus estatutos de autonomia e seus direitos laborais (muitas vezes superiores aos de outros funcionários públicos). Em França, por exemplo, o Corps des Professeurs é praticamente uma instituição de Estado, e, nos EUA, o sistema das Ivy League tem um enorme peso político e social. Historicamente, os militares foram talvez a primeira "corporação" do Estado. Desde Roma, passando por impérios medievais, até as repúblicas modernas, os militares garantem segurança e, por isso, exigem contrapartidas: pensões generosas, hierarquias rígidas, imunidades. No século XX, em vários países da América Latina e do Sul da Europa, as forças armadas chegaram a controlar diretamente o poder político.
A explosão da economia digital deu origem a uma nova classe de profissionais altamente especializados, que dominam áreas como programação, segurança cibernética, desenvolvimento de inteligência artificial, blockchain, etc. Apesar de serem, no início, trabalhadores mais liberais, nos últimos anos começaram a formar sindicatos (Google Workers Union nos EUA, por exemplo) e a criar associações de lobby muito poderosas. Grandes empresas de tecnologia (Google, Amazon, Microsoft) conseguem não apenas ditar tendências económicas, mas também influenciar legislações (como proteção de dados e regulamentação de IA). Quem detém as competências técnicas em programação e IA está hoje numa posição de extremo poder sobre o futuro do trabalho e até sobre a democracia digital.
Vivemos na chamada data economy. Os profissionais que sabem extrair, interpretar e manipular grandes volumes de dados (Big Data) tornaram-se cruciais para empresas, governos, hospitais, universidades. Embora ainda em formação, começam a surgir organizações de ética em dados, conselhos profissionais e certificações obrigatórias para atuar na área. Quem controla os dados controla a informação. E quem controla a informação influencia diretamente decisões políticas, económicas e até militares. Outro grupo emergente são os especialistas em práticas empresariais sustentáveis, responsabilidade social corporativa e governança. Especialistas em ESG (Environmental, Social and Governance). Criam redes internacionais, certificações (como o GRI — Global Reporting Initiative) e forçam grandes empresas a adaptar-se às novas exigências ambientais e sociais. Já hoje, em muitos países europeus, uma empresa sem relatório ESG atualizado não consegue contratos públicos nem investimentos de fundos sérios.
Uma nova elite da comunicação – Profissionais da comunicação digital (influencers, estrategas de redes sociais, etc.) – não mais jornalistas tradicionais, mas estrategistas de redes, "especialistas de imagem digital", "criadores de narrativas", está a crescer como uma força de manipulação de massas. Ainda dispersa, mas cada vez mais amparada por agências, plataformas de gestão de imagem, associações de comunicação digital, conseguem fazer ou destruir reputações, campanhas políticas, movimentos sociais. E, muitas vezes, o fazem sem quase nenhuma regulação. Estamos a assistir a uma deslocação de poder das antigas corporações clássicas para novas corporações tecnológicas e informacionais. Mas o mecanismo é o mesmo: organização, monopólio de competências, lobby sobre o Estado, defesa de interesses próprios.
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