sexta-feira, 2 de maio de 2025

George Steiner e grandes autores como um Montaigne


Um sistema ideológico, especialmente quando se baseia em normas absolutas e inflexíveis, que não podem acomodar a complexidade e as nuances do ser humano, acaba na sua autodestruição. Não é uma questão de simples oposição direta, mas de permitir que a tensão entre a retórica moral e a realidade humana se manifeste de forma a causar um desgaste natural. As contradições, que surgem quando se tenta impor uma moral implacável sobre a humanidade imperfeita, acabam por minar os seus próprios alicerces. Mas, é claro, "paciência de chinês" exige perseverança e uma visão desapaixonada para não deixar ser consumido pela frustração. Tem de se ter firmeza na espera, que as contradições do outro tenham tempo de fazer o seu próprio trabalho. A arrogância ideológica acaba por gerar o próprio antídoto. O conhecimento verdadeiro, o diálogo genuíno, só é possível quando há um espaço para o erro, para a dúvida, para a reflexão profunda sem pressões externas. E ao ignorar isso, acaba-se por cavar a própria sepultura.

George Steiner foi um visionário que captou muitas das contradições da modernidade e do mundo contemporâneo antes que elas se manifestassem plenamente. Ele tinha uma clareza rara quando falava da decadência da cultura ocidental. A sua visão da morte da cultura clássica e o declínio da capacidade de reflexão profunda nas sociedades modernas é particularmente notável. Ele sempre apontou para o esvaziamento de uma mentalidade utilitarista, voltada para o consumo. Steiner foi, de certa forma defensor do saber humanista, mas muito crítico da dominação das ciências sociais reducionistas e da 
"diluição da linguagem". Para ele, a linguagem não era apenas um meio de comunicação, mas a própria essência do pensamento e da cultura. O que ele via em gestação, com o avanço de uma cultura digital e de uma mentalidade fragmentada, era o empobrecimento da linguagem e a erosão da capacidade de entender as grandes questões da vida, da arte e da moralidade. 

Steiner sabia que o esquecimento dos pensadores profundos, e da capacidade de questionar o mundo por parte de uma mentalidade de conformismo e consumo, a sociedade perder-se-ia no marasmo da espuma à superfície dos dias a passarem. Ele não via apenas uma crise cultural; ele via o advento de uma barbárie silenciosa, uma cultura que renunciava ao pensamento crítico e profundo em favor de um mundo mais simples e diretamente manipulável na barafunda do ativismo do imediatismo, do curto prazo. O que Steiner entendia é que, ao perdermos a capacidade de dialogar com as grandes obras, de nos confrontarmos com a complexidade da história humana, estaríamos abrindo caminho para um empobrecimento existencial. A realidade moderna, fragmentada e polarizada, tem muito de profético no diagnóstico de Steiner. Steiner foi uma das grandes vozes do século XX que tentou chamar a atenção para a importância da tradição, da profundidade e da complexidade no pensamento humano.

Steiner, com a sua crítica ao empobrecimento da linguagem e da cultura e a defesa das humanidades, tem um apelo ainda maior agora, no momento em que parece haver uma inversão de valores culturais, com o predomínio das ciências aplicadas e da lógica mercantil sobre os valores humanistas. O que os mais jovens, muitas vezes, ainda não perceberam, é que a capacidade de refletir profundamente sobre a condição humana e a história tem implicações muito maiores para a construção de um futuro mais justo e significativo do que qualquer ativismo de curto prazo ou polarização ideológica.

Grandes autores, tal como um Montaigne, ainda vão voltar e dar muito que falar no seio destas novas gerações. Há algo de atemporal nos grandes autores, um tipo de sabedoria que resiste à diluição das modas passageiras e que, embora não se possa encaixar perfeitamente nas normas de pensamento contemporâneas, tem o poder de regenerar novas formas de reflexão e questionamento. De certa forma, a sociedade da abundância de informação, fragmentação de saberes e desconstrução de certezas chegou ao ponto de saturação. A cultura de consumo e a lógica da superficialidade não conseguem mais oferecer respostas satisfatórias às grandes perguntas que a humanidade sempre teve: o sentido da vida, a liberdade, a moralidade, a morte, o tempo.

Imersos na era digital, e muitas vezes consumidos pela pressão do ativismo e das questões identitárias, podemos eventualmente retornar às grandes questões, ainda que de forma renovada e talvez até desafiadora. Montaigne, com a sua autorreflexão honesta e o seu ceticismo elegante, sempre foi um modelo de como dialogar com o mundo sem perder a liberdade de pensamento. Ele talvez não fosse totalmente moderno, mas o seu pensamento sempre teve uma qualidade subversiva, já que ele era um pensador que se questionava o tempo todo e era imune a certezas ideológicas, tão típicas do seu tempo. E isso, hoje, continua extremamente relevante.

E tudo isto abrilhantado por Homero, Heródoto e Tucídides, Sófocles, Shakespeare, ou seja, a sabedoria perene, que nunca morre. A verdadeira sabedoria perene, que nunca morre, reside nas grandes obras fundadoras da nossa tradição intelectual e cultural. Estamos falando de uma linhagem de pensadores e artistas que tocarão as gerações futuras não apenas pelo conteúdo de suas obras, mas pela profundidade e complexidade com que lidam com a condição humana. Eles abordaram temas que continuam a nos desafiar: o destino, a justiça, a guerra, a amizade, a moralidade, a política, e a natureza humana em toda a sua glória e tragédia. O ciclo heroico de Homero, a história e ética de Heródoto e Tucídides, o conflito humano e divino de Sófocles e as contradições da alma humana que Shakespeare tão bem explorou — tudo isso reflete uma verdade fundamental sobre o ser humano que, por mais que tentemos ignorar, nunca se dissolve completamente.

Esses autores, com seus mitos, histórias e peças, não são apenas testemunhos de um passado longínquo, mas fundamentos vivos. Eles foram os primeiros a tratar do que é universal em nós, e, portanto, podem nos iluminar até hoje. Por exemplo, Homero não nos fala apenas de heróis mitológicos, mas do homem enfrentando os seus limites, a violência da guerra e a inevitabilidade do destino. Heródoto e Tucídides, por sua vez, oferecem não apenas narrativas históricas, mas reflexões sobre o poder, a moralidade e a ética em tempos de guerra e paz, temas ainda extremamente atuais. Sófocles, com suas tragédias, toca na fragilidade do ser humano e na luta contra forças maiores, seja o destino ou os deuses. E, claro, Shakespeare, com suas peças atemporais, continua a ser uma das vozes mais penetrantes sobre o amor, o poder, a loucura e a traição.

É justamente essa dimensão universal que os torna tão relevantes para as novas gerações, que, embora imersas na modernidade e nos desafios contemporâneos, ainda se encontram com as mesmas questões existenciais. O universo humano não mudou tanto assim, as formas e as tecnologias mudaram, mas o cerne do que significa ser humano continua o mesmo. O que essas obras nos oferecem, mais do que uma história ou uma narrativa, é uma lente através da qual podemos refletir sobre os nossos próprios tempos, os nossos próprios dilemas.


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