domingo, 20 de outubro de 2019

Um choque de visões


Todos os dias se publicam dezenas de artigos e livros cujo tema é o caminho que o mundo de hoje está a levar de uma forma que ninguém sabe para onde. A transformação está a ser de tal forma acelerada que não dá tempo a que se faça uma reflexão cuidada e ponderada.

Há quem tenha uma visão muito pessimista. Mas também há quem tenha uma visão otimista. Os primeiros são de um modo geral conservadores no pensamento, criticando a ordem internacional liberal que foi a ordem que se instalou depois da Segunda Guerra Mundial sob o patrocínio dos EUA, e que se globalizou. Esta ordem naturalmente que se acelerou depois da queda do Muro de Berlim e que levou consigo a queda do Império Soviético, e com isso o fim da Guerra Fria.

Os otimistas apresentam uma visão benigna de tudo aquilo que os primeiros apontam como negativo. Chamam a atenção para o facto de que foi essa ordem que permitiu que na China e na Índia saíssem da fome e da pobreza centenas de milhões de pessoas. E isso fez-se acompanhar da ascensão desses países de uma forma jamais pensável. O que em si não tem de ser uma coisa má. Há avanços e recuos neste caminho, dizem os otimistas, mas é a única forma de garantir a aspiração a um desenvolvimento mais equilibrado, mesmo com grande turbulência como aquela com que somos acometidos nos dias em que vivemos.

É certo que se reconhece que isso determinou o crescimento das forças populistas na maioria das democracias ocidentais, concordam os otimistas em resposta à interpelação dos pessimistas que vaticinam a integração europeia a caminho do fim. Os otimistas consideram que seria inevitável na medida em que essas democracias obtiveram o crescimento económico à custa daqueles que sempre foram os marginalizados da globalização. Os otimistas recusam-se acreditar que uma construção tão extraordinária como foi a União Europeia tenha agora que desaparecer, ou a ficar a marcar passo no caminho, ou voltar às guerras. Os pessimistas replicam dizendo que os líderes europeus, apesar da crise de 2008, estão em estado de negação, o chamado síndrome de Titanic, em que nova crise se avizinha num horizonte muito próximo e eles continuam a dizer que está tudo ótimo, continuando a acreditar nas virtudes da ordem liberal.

Como a União Europeia, o Presidente Putin vê o mundo de acordo com duas ou três noções muito simples, mas no sentido oposto daquilo em que os europeus acreditam. Putin não acredita em regras neutras e universais. A neutralidade é apenas uma fantasia destinada a enganar os outros. O poder nunca pode ser neutro, na medida em que são pessoas que o exercem e não uma mera abstração escondida por trás de instituições supostamente neutras. É a aspiração natural acompanhar também aqueles dos países do mundo que obtiveram a oportunidade de ascenderem ao desenvolvimento. O que ninguém estava à espera é que fosse tão rápido.

Os russos sabem muito bem do que falam, quando também ficaram ofuscados com as ilusões que experimentaram com a sua utopia soviética. Muito bem, dirão eles, a troca de bens, conhecimento e cultura é no seu todo muito boa, mas não há necessidade de assumir que atingimos por isso a “fraternidade humana universal”.

Os benefícios da globalização estão desigualmente distribuídos porque a regras são feitas por aqueles que têm o poder para as fazer. Em resultado disso, Putin acredita que o mundo da política internacional é uma arena de rivalidade e competição permanentes. A soberania é o equivalente político da competitividade económica. Portanto, hoje a ordem mundial é um mundo onde os Estados competem pela sua quota de mercado na economia global. A soberania, neste tempo, já não se expressa pela imagem da fortaleza inexpugnável. É aberta ao mundo, tem vontade de participar em todas as trocas globais com um espírito aberto, mas não exatamente com um coração aberto. Porque se trata de uma luta aberta.

Putin não se limita a pensar confinado a horizontes nacionais. A Rússia desde os seus primórdios que nasceu com vocação imperial, em termos de espaços maiores. Esta dimensão confere-lhe um sentido de legitimidade para jogar o jogo da ordem mundial. Por outro lado, se a Rússia quiser preservar a sua ordem política, então essa ordem tem de adquirir algum tipo de projeção global. A ordem global tem de espelhar pelo menos alguns elementos do atual regime russo. E não o regime russo espelhar a ordem política liberal ocidental. 

O Joker


O Joker é um filme fenomenal que está em exibição nas salas de cinema, e com um sucesso estrondoso. O filme reflecte a chamada “nova normalidade” de um mundo que perdeu as suas referências e a sua identidade, invadido cada vez mais por uma multidão de “jokers”. Catalunha, “Brexit”, Turquia, Síria e Curdos, Hong Kong, Washington ou Moscovo, entre tantos lugares ou temas: não faltam de facto espelhos para os “jokers” se verem reflectidos…

“É impressão minha ou o mundo está cada vez mais louco?”, interroga-se o Joker. E conclui: “Só espero que a minha morte faça mais sentido do que a minha vida.” “Não fui feliz um único dia na minha vida. Pensava que a minha vida era uma tragédia, mas afinal era uma comédia”, segundo confessa depois de se deixar possuir pelas suas derradeiras pulsões vingativas e assassinas contra uma sociedade que desde sempre o abandonou e o trata como o lixo que invade as ruas de Gotham. Uma sociedade em que todos gritam uns com os outros e não há espaço para comunicar verdadeiramente com ninguém.

Sem comentários:

Enviar um comentário