quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O Ártico e as Sombras do Passado



Ninguém mais tem presença tão marcante na região do Ártico nem está tão bem preparado para enfrentar a severidade das condições do clima como os Russos. Todos os outros países estão a ficar para trás e, no caso dos Americanos, nem parecem tentar recuperar esse atraso: os Estados Unidos são uma nação ártica desprovida de estratégia numa região que está a descongelar. Os efeitos do aquecimento global estão a manifestar-se como nunca no Ártico. Com o degelo há um acesso mais fácil à região, o que coincide com a descoberta de depósitos de fontes de energia e de tecnologia para chegar a eles.

A palavra “Ártico” vem do grego artikos, que significa “perto da ursa”, e é uma referência à constelação da Ursa Maior, em que as duas últimas estrelas apontam para a estrela polar. O Oceano Ártico tem 14 milhões de quilómetros quadrados; isso pode fazer dele o menor oceano do mundo, mas é do tamanho da Rússia, e tem uma vez e meia o tamanho dos Estados Unidos. As plataformas continentais no seu leito oceânico ocupam mais espaço quando comparado com qualquer outro oceano. Este dado não ajuda a que se chegue a um acordo sobre as áreas de soberania. A região Ártica inclui territórios pertencentes ao Canadá, Finlândia, Gronelândia, Islândia, Noruega, Rússia, Suécia e Estados Unidos (Alasca).

Há 2,8 milhões de anos, no tempo do homo habilis, começaram a aparecer oscilações climáticas a cada 41 mil anos, de tal modo que nos períodos frios se acumularam grandes massas de gelo em torno dos Polos, que se retraíam em períodos temperados. Estes gelos e degelos periódicos do Planeta tiveram um enorme impacto ambiental, incluindo nas regiões africanas onde viviam os hominídeos. A  chuva nos trópicos diminuiu drasticamente, e os ecossistemas abertos estenderam-se até às costas marítimas. Ora, o homo habilis quando surgiu na História, já vinha geneticamente adaptado ao novo meio ambiente, que era o ambiente de savana africana no lado oriental. Então, é no momento do homo habilis que se dá a transição de hábitos alimentares, mais à base de frutos e vegetais, para se introduzir a alimentação animal, primeiramente de insetos, e paulatinamente tudo o que mexesse. Pela primeira vez a carne e as gorduras animais passam a constituir uma parte importante da dieta dos hominídeos. Foi neste lance adaptativo, num ramo dos hominídeos, o homo habilis, que o cérebro passou a crescer graças a este tipo de alimentação. Ora, isso permitiu à espécie humana enfrentar cenários de vida não apenas mais imprevisíveis, como mais hostis. Mas o seu cérebro mais inteligente proporcionou ao homem rasgos de génio como a produção de todo o tipo de artefactos que lhe permitiu sair desse habitat que é a savana africana e migrar para norte, tendo que enfrentar as temperaturas cada vez mais frias até às zonas geladas. Os artefactos mais antigos que persistiram até aos dias de hoje são de pedra, mas é natural que os instrumentos perecíveis, como os feitos de madeira, fossem muito mais abundantes do que os de pedra.  


Depois deste desvio pelo paleolítico para contextualizarmos o "homem das neves", dou novamente um salto no tempo para ir dar a Píteas. Já aqui neste blogue falei de Píteas, o mercador, geógrafo e explorador grego que por volta de 325 a.C. fez uma viagem de exploração ao Noroeste da Europa circunavegando as Ilhas Britânicas. Píteas foi o primeiro autor greco-romano a descrever o "sol da meia noite", a aurora boreal e os gelos polares. Num dos seus relatos, Píteas informou ter visitado uma ilha a seis dias de viagem do norte da Escócia, próxima ao mar congelado, a que deu o nome de Thule. Píteas menciona que nestas regiões havia uma substância que não era nem terra propriamente dita, nem mar, nem ar, mas uma substância formada dos três elementos, a que chamou "pulmões marinhos". Muitos historiadores acreditam que esta ilha seja a Islândia, enquanto outros supõem que ele na verdade se referia à costa da Noruega.

Edward Parry tentou em 1827 chegar ao Polo Norte. Mas o gelo movia-se para Sul mais depressa do que ele se movia para Norte. Parry acabou por voltar para trás. Mas pelo menos sobreviveu, ao contrário de muitos outros que não tivera a mesma sorte ao tentar cometer a mesma façanha. John Franklin teve menos sorte quando tentou atravessar a última extensão não navegada da chamada "Passagem do Noroeste" em 1845. Os dois navios ficaram presos no gelo perto da ilha do Rei Guilherme, num arquipélago pertencente ao Canadá. dos 129 expedicionários, morreram todos. Uns haviam ficado a bordo; outros morreram no gelo, depois de abandonarem as embarcações e tentarem andar para Sul. Foram enviadas várias expedições, na tentativa de encontrar sobreviventes. Mas só muito mais tarde encontraram os esqueletos de alguns. Nessa altura ouviram da boca de caçadores inuítes a história de dezenas de homens brancos terem morrido a caminhar pelo grande deserto congelado. Dos navios nenhum vestígio encontraram. 
Em 1987, o japonês Shinji Kazama tornou-se a primeira pessoa a conseguir chegar ao Polo Norte numa motocicleta. É claro que nesta altura já havia menos gelo para atravessar. Foi em 2014, graças a novas tecnologias, que uma equipa de pesquisa canadense, usando um sonar, localizou um dos navios daquela expedição em 1845 -o HMS Erebus - no fundo da "Passagem do Noroeste". Conseguiram trazer à superfície  o sino do barco.

Que o gelo está a recuar é inquestionável – imagens de satélite captadas ao longo da primeira década deste século já mostravam claramente que ele encolheu. A maior parte dos cientistas está convencida de que o homem é o responsável, e não são os meros ciclos climáticos naturais a estarem em causa. E os efeitos do derretimento do gelo não serão sentidos apenas no Ártico: países tão distantes como as Maldivas, Bangladesh, ou a Holanda, são os que maior risco correm de inundações à medida que o gelo derrete e o nível do mar sobe. Esses efeitos colaterais mostram porque é que o Ártico é uma questão que diz respeito a tido o mundo, e não apenas aos países que contornam o Ártico
À medida que o gelo derrete e a tundra fica exposta, é provável que duas coisas aconteçam para acelerar o processo: por um lado o resultado da atividade humana nessas zonas, bem como de outros fenómenos naturais como os incêndios; enquanto o gelo reflete o calor, o terreno escuro absorve, e assim se alimenta o círculo vicioso do aumento da temperatura terrestre. 

O primeiro navio de carga a atravessar a Passagem Noroeste do arquipélago canadense sem precisar de ser escoltado por um quebra-gelo aconteceu em 2014. O Nunavik transportava 23 mil toneladas de minério de níquel do Canadá para a China. A rota polar foi 40% mais curta que a habitual, atravessando inclusivamente águas mais profundas do que se tivesse passado pelo canal do Panamá. Isso permitiu ao navio levar mais carga, poupou dezenas de milhares de dólares em custo de combustível e reduziu as emissões de gases de efeito estufa em 1.300 toneladas métricas. 


Em 2040 espera-se que a rota esteja aberta dois meses no ano. Esta passagem no extremo Norte representará uma grande alteração nas relações comerciais, indo provocar efeitos colaterais em lugares tão distantes como o Egito e o Panamá, em termos das receitas proporcionadas pelos canais de Suez e do Panamá. A rota norte-leste do litoral siberiano também fica aberta por vários meses no ano, o que também reproduz o mesmo significado.  Rússia e Noruega têm uma dificuldade particular no mar de Barents. A Noruega reivindica a cordilheira de Gakkel, no mar de Barents, como uma extensão da sua zona económica exclusiva, que os russos contestam. Estes por seu lado disputam as ilhas Svalbard, o ponto mais setentrional da Terra que é habitado. A maior parte dos países e organizações internacionais reconhece que a Noruega tem soberania limitada sobre as ilhas, mas a maior delas, a ilha Spitsbergen, tem uma crescente população de migrantes russos que foram para ali devido à indústria de mineração de carvão. As minas não são lucrativas, mas a comunidade russa serviu como instrumento de Moscovo para as suas reivindicações em relação às ilhas Svalbard na sua totalidade.

Ártico deveria estar aberto a todos. O derretimento do gelo revela outras riquezas potenciais. Julga-se que vastas quantidades de reservas de gás natural e petróleo, ainda não descobertas, podem estar situadas esta região, em áreas a que agora é possível ter acesso. Hoje há pelo menos nove disputas legais e reivindicações de soberania no oceano Ártico, todas legalmente complexas e algumas com potencial de causar séria tensão entre as nações. Em 2007 o governo russo enviou dois submarinos tripulados para o leito do mar no Polo Norte, 4.261 metros abaixo das ondas, e colocou ali uma bandeira russa de titânio inoxidável como declaração de presença. A intenção militar foi depois sublinhada politicamente, quando o presidente Putin, pela primeira vez, na sua doutrina oficial de política externa, acrescentou o Ártico à esfera de influência russa.

Em 2012, os Estados Unidos precisaram da ajuda de um navio russo para reabastecer a sua base de pesquisa na Antártida, um aspeto a assinalar na cooperação entre as grandes potências, mas simultaneamente uma demonstração de que os Estados Unidos estão a ficar para trás em relação à Rússia. O Canadá tem seis quebra-gelos, a Finlândia tem oito, a Suécia, sete, e a Dinamarca, quatro. China, Alemanha e Noruega têm um quebra-gelo cada. No outono de 2015, o presidente Barak Obama fez a primeira visita de um presidente em exercício ao Alasca, e de facto falou que era preciso construir mais quebra-gelos nos Estados Unidos. Mas esse foi um comentário quase de passagem numa viagem organizada em torno da questão do clima. Os aspetos da segurança energética do Ártico mal foram mencionados. Washington continua muito atrasada, o que não se alterou com Trump, muito pelo contrário, os Estados Unidos não ratificaram o tratado CNUDM, cedendo efetivamente 200 mil milhas quadradas de território submarino no Ártico. Apesar disso, eles estão em disputa com o Canadá pelo direito ao petróleo offshore em potencial e pelo acesso às águas no arquipélago canadense. O Canadá diz que elas são “vias navegáveis internas”, ao passo que os Estados Unidos dizem que são um estreito para a navegação internacional não coberta pela lei canadense.

Para animar o circo, recentemente  Trump desafiou a Dinamarca ao anunciar que queria comprar a Gronelândia. Com uma população de 56 mil habitantes, tem governo próprio, mas continua sob soberania dinamarquesa. Um acordo de 1953 entre a Dinamarca e o Canadá deixou a ilha ainda em disputa, e desde então os dois países se deram ao trabalho de navegar até lá e colocar as suas bandeiras nacionais. Todas as questões de soberania emanam dos mesmos desejos e temores – o desejo de salvaguardar rotas para transporte militar e comercial, o desejo de possuir as riquezas naturais da região e o temor de que "outros" possam ganhar onde "nós" perdemos. Até recentemente as riquezas eram teóricas, mas o derretimento do gelo tornou o imaginário, real, e em alguns casos seguro. Os Estados que contornam o Ártico  e as gigantescas empresas de energia têm agora decisões a tomar sobre como lidar com essas mudanças e quanta atenção dedicam ao ambiente e aos povos do Ártico. Haverá muito mais navios no Extremo Norte, muito mais torres de perfuração e plataformas de gás – na realidade, muito mais de tudo.

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