quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A Bíblia e a História



Falo aqui do Pentateuco, ou Torah, como se falasse da Ilíada ou da Odisseia, textos inaugurais daquilo que entendemos hoje em dia por LITERATURA. Não é obra de um único escritor. Tradições orais e escritas vão-se fundindo lenta e progressivamente. De acordo com vários estudiosos recentes da Bíblia, contra muitos literalistas que se recusam a reconhecer uma metáfora mesmo quando a têm diante dos olhos, o autor Javista (J) não foi um autor real. Julius Wellhausen (1844-1918) foi um estudioso bíblico e orientalista famoso alemão, particularmente no que concerne à origem do Pentateuco. Ele é considerado o inventor da teoria das quatro fontes: Javista (J); Eloista (E); Deuteronómio (D); Sacerdotal (P).

Das fontes do Génesis analisadas à lupa a partir dos finais do século XIX, quando se começaram a desenvolver de uma forma avassaladora as técnicas da Hermenêutica, veio a evidenciar-se algo surpreendente: nomes diferentes para Deus. Uma fonte utiliza sempre o nome divino de Jahwe. Outra referia-se ao nome mais comum, Eloim. Assim, encontram-se, deste modo, temas e estilos característicos distinguindo as duas versões, sugerindo que dois diferentes manuscritos se fundiram num só. A fonte javeísta designou-se por “J”. E a fonte eloísta foi designada por “E”.

Pesquisas ulteriores sobre a teoria das duas fontes conduziram a novas descobertas. A Bíblia não continha apenas duas fontes documentais, mas quatro. Análises sobretudo da documentação “E” provaram que a maioria descendia de uma terceira fonte que em grande parte se referia a temas ligados ao sacerdócio e às leis. Devido à sua natureza sacerdotal, esta terceira fonte obteve a denominação de “P”. A quarta fonte conhecida por “D”, parecia confinada ao Livro do Deuteronómio.

Antes de David e Salomão (Séc. X a.C.) existia uma tradição oral e alguns textos escritos. No início destes reinados aparece a fonte Javista (Deus é Javé). Neste tempo surgem os livros de Saul e a literatura sapiencial. Depois de Salomão, com a separação Norte/Sul (Israel/Judá), nasce no Norte a tradição Eloista (Deus é Eloim) Isaías. Em 722 a.C., com a invasão do Norte pela Assíria, muitos fogem para o Sul e levam consigo os textos. 


No tempo do rei Josias (640-609 a.C.) o Deuteronómio atualiza as narrativas do Êxodo à luz dos escritos dos Profetas. Mas a seguir vem o Cativeiro da Babilónia, também chamado de Exílio, nome geralmente usado para designar o exílio dos judeus do Reino de Judá para a Babilónia, por Nabucodonosor II. Este período histórico foi marcado pela atividade dos profetas Jeremias, Ezequiel e Daniel. A primeira deportação teve início em 609 a.C.. Em 598 a.C., Jerusalém é sitiada e Jeconias ou Conias, rei de Judá, rende-se voluntariamente. O Templo de Jerusalém é parcialmente saqueado e uma grande parte da nobreza, os oficiais militares e artífices, inclusive o Rei, são levados para o Exílio na Babilónia. Onze anos depois, em 587 a.C., houve uma nova rebelião no Reino de Judá e ocorre a terceira deportação e a consequente destruição de Jerusalém e seu Templo. É depois destes acontecimentos que os Sacerdotes voltam às antigas Tradições. É a fonte Sacerdotal (P).
Na fonte Javista, Javé não é visual, mas auditivo. No entanto, a surpresa é um dos elementos dominantes. Esse primeiro Javé tão diferente da sua forma reduzida no judaísmo ou no cristianismo normativos, é o seu fascínio que atrai. E para nós, continua impossível assimilá-lo, pelo menos sem uma crise espiritual e cognitiva em toda a linha ocidental, até mesmo entre os mais seculares.


A Bíblia relata-nos que a nação hebraica teve a sua origem com Abraão, na Mesopotâmia, mais precisamente no Ur da Caldeia. Partindo de Ur, Abraão caminhou com a família até Haran e daí seguiu para Canaã, onde Deus lhe prometeu que ele e os seus descendentes governariam esta terra. Este acordo passou para o seu filho Isaac, e posteriormente para o seu filho Jacob (mais tarde denominado Israel). Jacob teve doze filhos, e um deles – José, chegou a emigrar para o Egito tendo-se tornado lá um importante conselheiro do Faraó. Com este estatuto sentiu-se à vontade para chamar o resto da família em Canaã. Os primeiros tempos no Egito foram radiosos. Mas à medida que o seu número foi aumentando, a hospitalidade transformou-se em medo e pesadelo, até surgir um líder – Moisés, que se encarregou de retirar o seu povo para fora do Egito e o conduzir de volta à terá prometida – Canaã. A entrada em Canaã só aconteceu 40 anos mais tarde já sem Moisés e pela força das armas impostas aos que lá estavam.

Infelizmente, não há outros documentos históricos que corrobore esta versão Bíblia da história do povo hebreu. A interpretação de documentos escritos egípcios e dados arqueológicos por parte da generalidade dos especialistas é que primeiro se formou uma confederação de tribos que evoluíram de grupos de pastores nómadas que falavam uma língua semita, antes de se ter formado a monarquia hebraica.

Mesmo assumindo que a Bíblia provém de fontes antigas ainda por descobrir, há acontecimentos que tiveram lugar pelo menos mil anos antes da sua redação. Por exemplo, a Bíblia fala nas “dez tribos perdidas”. Mas como é possível que elas tenham desaparecido da história sem deixar qualquer rasto, por mais pequeno vestígio arqueológico que seja. Grande parte dos acontecimentos que passaram a fazer parte da história consistiam em mitos, lendas e rumores, elementos estes que se tornam difusos ao longo do texto bíblico.

Até ao fim do século XIX desconhecia-se a existência de Akhenaton. Foi quando uma equipa de arqueólogos descobriu as ruínas de uma antiga cidade não identificada numa área conhecida como Amarna. Encontraram a imagem deformada relativa a um faraó desconhecido. Os hieroglifos indicavam que este estranho faraó se chamava Akhenaton. Horemheb, um faraó que chegou ao trono 14 anos após a morte de Akhenaton, havia demolido os edifícios da época de Akhenaton e todas as inscrições alusivas ao culto de Áton, porque representava uma heresia às tradições religiosas cultuadas em Tebas em honra de Amon.

Há autores e egiptólogos heterodoxos que defendem que Moisés era o sumo-sacerdote do culto de Áton e que na época em que Akhenaton morreu fugiu do Egito com receio de ser executado. Mas passado pouco tempo voltou com aliados para confrontos. Os confrontos terminaram por meio de tréguas negociadas que garantiram a sua retirada segura do Egito com o seu povo, facto que corresponderá ao Êxodo da Bíblia.

Em que altura, e em que circunstâncias se verificou, de facto, a partida de Moisés do Egito? Para além do que é contado na Bíblia, não há prova alguma de que o Êxodo tenha ocorrido. Portanto, numa atitude de boa-fé para com a Bíblia, os especialistas concedem um esforço conjetural a fim de construírem hipóteses, meras hipóteses. O que não deixa de provocar dentro dos ciclos académicos acesos debates. Flávio Josefo, o historiador judeu que viveu no primeiro século desta era e que assistiu à destruição de Jerusalém em 70, relacionou o êxodo com a expulsão dos Hicsos. E os seus argumentos, pela alta credibilidade que granjeou junto dos historiadores que lhe seguiram, influenciou muita da narrativa histórica posterior. Mas esta hipótese levanta o problema de não ser possível encaixar um período pós-Êxodo de mais de 300 anos em que Israel não aparece em qualquer registo histórico. É um problema porque não se consegue arranjar uma hipótese que não se confronte com contradições.

A primeira referência ao nome de Israel, sem ser a que se encontra enunciada na Bíblia, surge numa estela egípcia que data da última metade do século XIII a.C., cerca de 100 a 125 anos após a morte de Akhenaton. É a estela de Merenptah, que comemora a vitória do faraó Merenptah sobre as forças aliadas dos Líbios e dos Povos do Mar. São os denominados “Povos do Mar”, que aparecem misteriosamente naquele período histórico da Grécia, a que os historiadores chamaram “Idade das Trevas”, e que vinham ameaçando o território de Canaã que hoje se estende pela Palestina. Os invasores mais poderosos e afamados era os filisteus, que mais tarde passaram a chamar-se palestinos. Cedo começaram a ameaçar todos os residentes de Canaã, incluindo os primeiros aliados gregos que se tinham estabelecido noutras cidades-estado. Por isso, surgem dúvidas quando a Bíblia refere que Israel conquistou Canaã naquela época.

É a partir de uma catástrofe geológica sísmica, acerca da qual se tem feito imensa investigação pluridisciplinar, que se têm produzido teorias que a ligam à narrativa bíblica do Êxodo. Trata-se da erupção minoica, também chamada Erupção de Tera ou Erupção de Santorini. foi uma catastrófica erupção vulcânica pliniana, que se estima ter ocorrido entre 1650 e 1450 a.C. A erupção foi um dos maiores eventos vulcânicos alguma vez registados, tendo devastado Santorini, incluindo o assentamento minoico de Acrotíri, bem como as comunidades agrícolas de Creta e de todas as ilhas próximas. É dado o nome de “erupção pliniana” para vincar a sua grande explosividade. Os cientistas inventaram este nome para honrar Plínio o Novo, um romano que morando na baía de Nápoles, pôde assistir ao evento catastrófico do Vesúvio, a grande explosão vulcânica que soterrou as cidades de Herculano e Pompeia, e que ele descreveu com muita precisão.

Durante estes tempos remotos os registos arqueológicos referem frequentemente um grupo de pessoas, conhecido como Habiru ou Apiru, muitos dos quais eram escravos no Egito. Em qualquer contexto os Habirus não eram um grupo étnico. A ser possível que a designação “Hebreu” é uma derivação de Habiru, então é provável que tal nome terá surgido ainda no tempo em que esse povo não se tinha fixado a nenhum território. O que não deixa de ser curioso, é o facto de a narrativa bíblica coincidir com aquele período histórico, que os historiadores da Grécia Antiga chamam “Idade das Trevas Grega”, que abarca os quatro séculos depois da catástrofe que acabei de referir. É o período histórico compreendido entre 1200 a.C. e 800 a.C., também conhecido por “período homérico”, que coincide com a suposta invasão dórica e o final da civilização micénica e a ascensão das primeiras cidades-estado gregas. É a partir de oitocentos que aparecem os primeiros registos escritos a utilizarem o alfabeto grego, e onde se situa a literatura épica de Homero.

Em termos históricos, em que se procura limpar o mais possível a narrativa de tudo o que tenha a ver com mitos e profetas, Os judeus entram somente em cena na época de David, treinado nas fileiras dos filisteus, serviu-se dessa experiência da guerra para formar uma força militar eficaz e dominar grande parte do território pertencente à aliança formada com os cananeus residentes. Assim, David declarou-se rei e fundou a Casa de Judá. Não se pode ir mais longe sem cair nos contos míticos.

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