terça-feira, 8 de outubro de 2019

O fenómeno da cultura campaniforme


As culturas Europeias da Idade do Bronze – 2800 a 2500 a.C. são marcadas pela Cultura Megalítica do Ocidente Atlântico e Mediterrânico, e a Cultura do Vaso Campaniforme. Este período cobre a fase de apogeu de Stonehenge. A Cultura do Vaso Campaniforme (em inglês Bell-Beaker culture), deve o seu nome ao facto de os vasos de cerâmica decorados encontrados em contexto funerário terem a forma de um sino invertido.

Podemos considerar na Baixa Estremadura – uma das mais importantes regiões à escala europeia para a discussão da origem e difusão do fenómeno campaniforme – a existência de uma formação social, cujas características culturais que acompanharam o desenvolvimento local do Calcolítico, sugerem a existência de dois vetores culturais independentes e coexistentes, com prováveis implicações de ordem social. Com exceção da Cabana FM de Leceia e da necrópole em gruta natural da Verdelha dos Ruivos – toda a segunda metade do 3.º milénio a.C. corresponde às produções do Grupo Internacional. Já nos sítios abertos, como Monte do Castelo e Freiria, são as do Grupo Inciso que se afiguram quase exclusivas. Existe o Grupo de Palmela, mas este está acantonado principalmente em torno do estuário do Sado.

[João Luís Cardoso – Universidade Aberta, Lisboa]
Este ensaio surge a propósito de um estudo genético, relativamente recente no âmbito do estudo da Cultura Campaniforme, realizado ao ADN de 400 esqueletos pré-históricos, recolhidos em vários locais da Europa. E é tributário do trabalho de João Luís Cardoso, na Universidade Aberta de Lisboa.

A cultura do vaso campaniforme remonta a cinco mil anos, e terá tido origem na Estremadura portuguesa, junto do rio Tejo, sendo caracterizada pela produção de vasos de cerâmica decorados e em forma de sino. Essa cultura chegou à Grã-Bretanha, Sicília,Polónia e a toda a Europa Central. Mas essa difusão não se deveu a migrações de populações que tivessem levado a sua cultura. Não há indícios de qualquer transposição genética da Península Ibérica para o resto da Europa. 


A difusão da Cultura Campaniforme da Ibéria é o primeiro exemplo de uma cultura que é transmitida como uma ideia, basicamente por uma questão de prestígio social. Em meados do terceiro milénio a.C., um novo tipo de cerâmica em forma de sino foi disseminado por toda a Europa ocidental e central. Por mais de um século os arqueólogos têm tentado determinar se a propagação desta cerâmica, e a cultura a ela associada, se deveu a uma migração em larga escala ou se foi antes uma troca de novas ideias. Agora, o recente estudo genético vem esclarecer esta questão. A Cultura Campaniforme na fase inicial propagou-se na Europa no sentido oeste/leste a partir da Península Ibérica, mas sem um movimento significativo de populações. Só mais tarde se deu o fluxo em sentido contrário de populações com a mesma cultura. Isto é, o fluxo difusor desta cultura operou-se pelos dois processos, difusão cultural e migração humana nos dois sentidos longitudinais, mas em épocas diferentes.

Portanto, a Cultura Campaniforme começou por se difundir predominantemente por via da transmissão cultural. Os construtores de Stonehenge no sul de Inglaterra, e os construtores dos Monumentos Megalíticos na Península Ibérica, faziam parte de um povo com muitas semelhanças genéticas, mais do que com os povos da Europa Central. Assim, foram os habitantes pré-históricos da Península Ibérica que exportaram a sua cultura para toda a Europa até à Polónia, mas não os seus genes.


O fenómeno da Cultura Campaniforme no estuário do Tejo

A evidente complexidade do fenómeno campaniforme na Estremadura portuguesa já não se coaduna com o modelo de existência dos três grupos sucessivamente mais modernos que têm sido até agora considerados (Grupo Internacional; Grupo de Palmela e Grupo Inciso). O povoado pré-histórico de Leceia, Oeiras, detém importância relevante para a discussão desta realidade. Assim, no interior da imponente e notável fortificação calcolítica, a presença de produções campaniformes só se verificaria a partir de meados do 3.º milénio a.C., corporizando a fase final da sua ocupação, misturando-se as produções campaniformes, essencialmente representadas por vasos marítimos e vasos com decoração geométrica pontilhada, e cerâmicas decoradas de estilos regionais (“folha de acácia” e “crucífera”), específicas da área da Baixa Estremadura.

Na Estremadura, a antiguidade do fenómeno campaniforme remonta ao segundo quartel do 3.º milénio a.C., conforme comprovam os resultados obtidos em dois dos mais importantes povoados fortificados, o de Leceia e do Zambujal, tendo confirmação no norte do país, com base na cronologia obtida no Crasto de Palheiros e no Buraco da Pala, bem como no Sul, através dos resultados do Porto Torrão. Nessa fase precoce da presença de materiais campaniformes, pode ter havido ou não interação com as comunidades previamente existentes: a resposta negativa é dada pela realidade observada em Leceia, em que na cabana FM são exclusivos os espólios campaniformes, que, por essa mesma época, ainda não usados pelos habitantes do povoado, apesar da proximidade, visto a cabana se situar na área adjacente extramuros. Já no Norte, a presença de produções cerâmicas locais claramente inspiradas em modelos campaniformes, no Buraco da Pala e no Crasto de Palheiros (aqui associadas a campaniformes marítimos clássicos), permite concluir que a interação foi muito precoce, logo nos primórdios do segundo quartel do 3.º milénio a.C. Num momento ulterior, a partir de meados do 3.º milénio a.C., e até praticamente aos finais do mesmo, verifica-se a plena afirmação das produções campaniformes na Estremadura, ainda que as de origem regional (padrões em “folha de acácia” e “crucífera”), permaneçam e coexistam com aquelas, como se conclui da associação estratigráfica entre ambas em diversos sítios fortificados estremenhos (Leceia, Zambujal, Penha Verde, Moita da Ladra, Rotura). É ainda na Estremadura que se podem entrever indícios de diferenciação na sociedade campaniforme, observáveis desde meados do 3.º milénio a.C., com a instalação nos povoados fortificados, alguns deles só então construídos (Penha Verde, Moita da Ladra), das elites emergentes, denunciadas pela presença de recipientes de fina manufatura, como é o caso dos vasos marítimos, próprios para a ingestão de bebidas alcoólicas, talvez também apenas reservadas àquele segmento social, contrastando com o observado nos sítios abertos, onde abundam as produções campaniformes mais grosseiras, claramente relacionadas com as atividades produtivas ali desenvolvidas e onde os vasos marítimos não ocorrem ou são raros. A plena circulação de produtos manufaturados, especialmente os de valor acrescentado, como as produções metálicas, em geral de cobres arsenicais, teve complemento nos produtos preciosos, como é o caso do marfim, de origem norte-africana, que acompanha a emergência de joias de ouro. Estas, por seu turno associam-se a armas, também de cobre arsenical, cada vez de maiores dimensões, representadas por adagas longas e pelas primeiras espadas, que corporizam a plena afirmação de elites já anteriormente existentes, no seio desta sociedade que era também de comerciantes, pastores, agricultores e artesãos.

No decurso da segunda metade do 3.º milénio a.C., em todo o território português, encontravam-se mais ou menos disseminadas populações portadoras de produções cerâmicas campaniformes, mesmo em regiões onde aquelas eram desconhecidas até há bem pouco tempo, como o Algarve, ou o sul da Beira Interior. As recentes investigações realizadas nos últimos quinze anos, tanto em sítios habitados, como em necrópoles, na Beira Alta, na Beira Transmontana e a norte do Douro, vieram carrear um notável acréscimo de informação, sobre a existência de ocorrências campaniformes, em vastas zonas onde elas eram até então praticamente desconhecidas. Nos recentes trabalhos de minimização dos impactes ambientais realizados na bacia do Guadiana, foram documentadas fortes influências da Meseta ibérica, através das numerosas cerâmicas do grupo de Ciempozuelos ali presentemente conhecidas em sítios habitados. A Baixa Estremadura (áreas adjacentes aos rios Tejo e Sado) continua a ser aquela que oferece a larga maioria de materiais campaniformes, com cerca de 75% dos vasos marítimos identificados, sendo também aquela onde se pode encontrar a maior quantidade e diversidade de outras produções, com destaque para a taça Palmela, cuja incidência regional é muito marcada. A extraordinária riqueza de estações campaniformes, bem como a quantidade dos espólios encontrados nesta região, conduz à conclusão de que estes tinham essencialmente um carácter funcional.

A necrópole pré-histórica de Alapraia



A necrópole pré-histórica de Alapraia, localizada no centro da povoação com o mesmo nome, concelho de Cascais, a cerca de 1 quilómetro da atual linha de costa do Estoril, é composta por quatro grutas artificiais escavadas por ação humana no maciço calcário. Todas as grutas apresentam o mesmo sistema de construção, característico deste tipo de monumento funerário, sendo constituídas por um longo corredor de acesso, baixo e com estrangulamento no final, e uma câmara circular com claraboia no topo, protegida por lajes. Devido a esta última característica, são normalmente designadas como “grutas artificiais tipo coelheira”, uma vez que a abertura superior permitiria a colocação dos inumados dentro da câmara, quando os níveis de ocupação já não permitiam o acesso ao seu interior através do corredor.

As escavações efetuadas nas várias grutas revelaram um numeroso espólio que permite atribuir os momentos de ocupação destes monumentos entre finais do 4º milénio a.C. e a Idade do Bronze. É de destacar a recolha de vários tipos de recipientes cerâmicos (taças e copos canelados, cerâmica com bordos denteados, cerâmica campaniforme), bem como indústria lítica, artefactos em osso polido, artefactos votivos de calcário e placas de xisto com decoração geométrica. O extraordinário espólio recolhido neste sítio arqueológico, do qual se destaca o par de sandálias de calcário, único no mundo, levou à criação da Sala de Arqueologia do Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães, Cascais, em 1942. Atualmente algumas das peças provenientes desta necrópole encontram-se em exposição no Museu da Vila.





As grutas foram utilizadas entre o Neolítico Final e o Calcolítico. Os rituais fúnebres eram realizados no exterior, formando-se um cortejo pelo corredor que dava acesso às grutas. Os defuntos eram depois colocados junto às paredes, em posição sentada, e junto a eles diversos objetos depositados por familiares que se pretendia que os acompanhassem no além.

Muito naturalmente, as grutas apresentam diferenças entre si, nomeadamente no que diz respeito à dimensão. Assim, enquanto que a "Gruta I" possui uma câmara com pouco mais de seis metros de diâmetro e quase três metros de altura, com corredor aberto, de mais de treze de comprimento, a "Gruta II" exibe uma câmara com cerca de quatro metros e meio de diâmetro por dois metros e vinte de altura. Na verdade, as dimensões presentes nesta última parecem aproximá-la da "Gruta IV", cuja câmara mede quatro metros e vinte de diâmetro, por dois e dez de altura, além de possuir um átrio com aproximadamente sete metros. Quanto à "Gruta III", ela ostenta uma câmara de pouco mais de seis metros de diâmetro e dois e quarenta de altura.





Apesar da relevância inerente aos fragmentos de cerâmica campaniforme e às pontas de seta feitas de sílex, a atenção dos investigadores tem-se centrado essencialmente nos exemplares de carácter sagrado ou votivo executados em calcário. Deste conjunto fazem parte artefactos tão singulares quanto uma lúnula, os já conhecidos ídolos cilíndricos e as placas de xisto gravadas, aos quais se junta um par de sandálias, cujos paralelos se encontrarão em Almizaraque, em Almeria, Espanha.





Castro do Zambujal


Castro do Zambujal é um povoado fortificado situado a 3 km de Torres Vedras, cujas origens remontam ao terceiro milénio a.C. Inserido num conjunto mais vasto de fortificações similares situadas na Estremadura, crê-se ter sido o mais importante centro de fundição e comércio de minério dessa zona. Assiste-se àquela que é considerada como a quarta e última fase de construção deste sistema, com o levantamento de torres ocas, até à destruição parcial do povoado, que ocorreu por volta de 1.700 a.C.
Não há certezas quanto aos motivos que levaram à escolha do local para a construção nem a razão da sua aparente predominância, nomeadamente, comercial e estratégica. No entanto, face aos dados disponíveis, é de supor que a morfologia do terreno e a existência naquela época de um porto natural na confluência da Ribeira de Padrulhos e do rio Sizandro, que permitia o acesso navegável até ao mar, tenham influenciado essa escolha.
A emergência deste tipo de povoados e o seu enquadramento histórico permitem supor a existência de um certo grau de estratificação social, destinando-se o recinto central aos habitantes de estatuto superior e à salvaguarda dos produtos resultantes da prática metalúrgica e comercial. A agricultura e a criação de gado, à qual se dedicava a maioria da população, exercia-se nos terrenos circundantes do povoado.

A acumulação de riqueza está patente nos ornamentos encontrados em pedras preciosas e numa indústria que se tornou paradigma cultural da época: a cerâmica campaniforme. De facto, foram encontrados nesta região dos mais antigos vestígios desta produção que se viria a estender um pouco por toda a Europa.

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