quinta-feira, 24 de outubro de 2019

O Nacional-Populismo Iliberal


O que está por detrás do crescimento do populismo no Ocidente? Porque está a transformar-se a paisagem política da Europa-América no sentido de uma extrema direita nacionalista e antidemocrática? É uma questão económica ou cultural? Está relacionada com o emprego ou com a imigração? Deve-se à austeridade ou ao nacionalismo xenófobo e racista?

É bom que fiquemos esclarecidos, a vida real nunca se processa da maneira como nós categorizamos os problemas para melhor entrar neles. As relações em sociedade estão longe de funcionar linearmente entre premissas binárias. Isso seria ignorar o modo como se processam as relações e o modo como a cultura e a economia podem interagir. Ou como se relaciona a agitação política e a crise financeira. Portugal é um exemplo paradigmático disso: apesar da violenta austeridade imprimida no tempo da Troica não gerou nenhum movimento populista significativo, ou de algum modo relevante. Isto significa que os fatores económicos têm de ser analisados em conjunto com outros fatores, tais como a liderança, as questões da identidade nacional, e a segurança das pessoas.

Os liberais progressistas estão otimistas quanto ao futuro da geração Y e da geração Z – (geração Y também chamada geração do milénio, Millennials em inglês, um conceito em sociologia que se refere à corte dos nascidos depois de 1980 e até ao final da década de 1990, ou os primeiros anos de 2000, sendo sucedida pela geração Z) – continuando este modo de vida liberal. Argumentam que esta época de Trumps e Bolsonaros é apenas uma transição de fase passageira. Os Millennials são fans do liberalismo, dizem eles.

Mas outra corrente de pensamento argumenta de maneira diferente, alegando que ao invés de estarmos a chegar ao fim, estamos no começo em crescendo de fans pelos nacionais-populistas iliberais: o início de uma nova era de fragmentação, volatilidade e perturbação política. Desta perspetiva, o nacional-populismo iliberal está apenas a dar os primeiros passos à medida que os laços entre as pessoas e os partidos tradicionais se vai desfazendo. E à medida que uma mudança étnica e um aumento das desigualdades, sem precedentes, vai ganhando ímpeto. O conflito entre culturas, centrado num conjunto de valores em disputa, indica que a procissão ainda vai no adro. Os efeitos da automação, ainda imprevisíveis, vão agravar ainda mais os conflitos laborais. E as próximas gerações, sejam apelidadas de Y ou Z, millennials ou pós-millennials, não interessa, podem ter à sua disposição mais robôs, mas vão ter de baixar a fasquia, no que respeita às expectativas de conforto material e tranquilidade de espírito, comparado com o modo de vida ocidental da geração pré-millennial.

É voz corrente nos masse-media que muitos dos eleitores das atuais democracias ocidentais estão a voltar-se para movimentos populistas, que começaram a transformar a face das democracias liberais ocidentais. Por exemplo, a explicação que é dada para o facto de o Brexit ter ganho o referendo no Reino Unido, dizem-nos, a mesma que está por trás do crescimento da extrema direita com líderes fascistas, deve-se a um eleitorado envelhecido desesperado. Que os seus líderes são fascistas e as suas políticas antidemocráticas. Esta versão simplista dos acontecimentos está longe de explicar tudo. Por todo o Ocidente há um número crescente de pessoas que se sentem excluídas da política tradicional, cada vez mais hostis com as minorias, os imigrantes e a economia neoliberal.

O que temos vindo a assistir nos últimos anos, sobretudo um pouco por todo o ocidente e que está a transformar as nossas sociedades para pior, do ponto de vista dos valores políticos da cidadania democrática, é uma tendência cuja génese se encontra bem lá para trás no tempo. Tem a ver com os efeitos da globalização que se traduziu numa negligência assustadora, se não mesmo de desprezo, das elites dominantes em relação às classes mais desfavorecidas. Elites predadoras e corruptas que se têm estado nas tintas para o povo. Por outro lado, esta tendência que já se vinha insinuando há mais de duas décadas, parece que eram invisíveis aos olhos dos operadores do círculo mediático escrito e audiovisual. Salvo raras exceções, só acordaram depois de terem visto Trump e Bolsonaro no poleiro. Por exemplo, num estudo de opinião efetuado na Inglaterra antes do referendo do Brexit, em 2016, e que incidiu sobre cerca de três centenas de jornalistas e líderes de opinião: 90% disseram que os eleitores britânicos não queriam sair da União Europeia. E foi nesta base que Cameron caiu na esparrela de promover o referendo, pois estava completamente convencido que os ingleses não iriam cometer a temeridade de sair da União Europeia.

Nunca dispusemos de tantos dados como agora. E, no entanto, foram poucos os que acertaram no prognóstico acerca do resultado do referendo britânico. E esta é a ironia e o paradoxo dos “Dados” (Big Data). Uma das explicações para esta incongruência prende-se com o facto de a última geração de pessoas ter desprezado a História, e se importar apenas pelo curto prazo, o imediato. E, no entanto, as causas dos problemas que se vivem num dado momento histórico, são causas latentes que têm a ver com o comportamento das pessoas em coletivo ao longo do tempo. Forças latentes que movem a História. E como “anda tudo ligado” (tudo se rege pelo princípio da mutação por transição de fase, uma lei dos sistemas complexos não-lineares), a manifestação dos efeitos dos comportamentos humanos à la longue são sempre surpreendentes e fulminantes.

Com efeito, os nacionais-populistas emergiram muito antes da crise financeira de 2008 e da grande recessão que se seguiu. Marine Le Pen, Matteo Salvini e Victor Orban já tinham entrado em cena, e vinham a capturar adeptos há muito mais tempo. Sempre se opuseram a determinados aspetos das nossas democracias liberais, aqueles aspetos que são agora imputados à globalização e que exploraram grandes camadas da população trabalhadora. O chamado sistema capitalista liberal (ou neoliberal). Assim como na América as lideranças de Washington são vistas com maus olhos, na Europa a mesma reação se fez sentir em relação aos burocratas de Bruxelas a circular nas portas-giratórias dos negócios público/privados.

Há bons motivos para preocupações com Trump, atendendo ao seu caráter, julgamento ético e temperamento. Contudo, o foco na sua personalidade não nos ajuda a compreender as raízes populares da revolta que alimentou a sua ascensão, bem como a de outros como ele na Europa, e noutros lugares. Não foram apenas os operários do “cinturão da ferrugem”, mas também republicanos tradicionais abastados xenófobos e racistas temerosos da imigração. O Brexit recebeu os votos favoráveis tanto dos distritos onde prevalece a classe operária, que tradicionalmente vota no Partido Trabalhista, como também do terço dos eleitores negros entre 35 e 44 anos. Mesmo nos distritos onde imigrantes de fora da Europa se fixaram, o voto para sair da EU também ganhou. A explicação está no medo dos imigrantes trabalhadores de outros estados-membros da EU que venham ameaçar a sua plena integração que lhes confere o acesso à segurança social britânica. Será que, se os estrategas da permanência do Reino Unido na EU tivessem prestado mais atenção a esses votantes no Brexit, o resultado da votação teria sido diferente? Será que o Partido do Brexit de Farage não teria tido uma votação tão dilatada como teve se o país estivesse mais fechado à imigração?

Não é possível compreender estas revoltas sem analisar as tendências que se vieram desenhando há décadas, moldando eleitorados ressentidos com o Outro. E as fortes críticas a esse comportamento ainda o tem exacerbado mais. Os estudos sociólogos têm sido feitos e evidenciado essas tendências. Mas não foi dada a devida importância política. E isso só tem legitimado ainda mais o aumento desse ressentimento. As comunidades históricas dos países que têm recebido mais imigrantes de fora da Europa viram os seus modos de vida seculares e religiosos postos em causa por movimentos apelidados do “politicamente correto”. Os receios de serem silenciados e corroídos, só faz aumentar a desconfiança dos poderes políticos e das instituições internacionais.

Acresce a tudo isto, o descalabro financeiro nas economias neoliberais globalizadas, que empurrou as pessoas de rendimentos médios para as franjas da indigência, acompanhado do crescente aumento do fosso das desigualdades e do acesso às riquezas nacionais capturadas pelas rendas dos monopólios energéticos. É a perda do trabalho a favor do capital sem justa causa. O que lança um espetro sombrio sobre o futuro dos nossos filhos e netos. Se não forem tomadas medidas sérias que façam arrepiar este caminho que se tem vindo a trilhar nos últimos quarenta anos, então que venha a Revolução Democrática, para que não sejam os líderes nacionais-populistas a fazê-la. Para que isso não aconteça os tradicionais partidos têm de operar uma verdadeira mudança interna, para que se voltem a alinhar com as legítimas aspirações dos povos.

As respostas dos articulistas raramente levam em conta as correntes profundas que circulam submersas nas nossas democracias. A maior parte das alegações incidem em factos do curto prazo, ainda que sejam verdadeiros, mas apenas focados no imediato, não vamos conseguir o distanciamento suficiente para avaliar as tendências mais amplas que tornaram possível o momento político que atravessamos.

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