quinta-feira, 10 de outubro de 2019

O Curach e a exploração do desconhecido



Durante o período neolítico, os primeiros colonos desembarcaram na parte norte da Irlanda, provavelmente chegando em barcos que eram os ancestrais do curach. O desenvolvimento da junção de ripes de madeira durante o período neolítico tornou possível, eventualmente, criar o que é hoje o curach. As originais barcas em forma de cesta cobertas de peles são evidentes nos curach encontrados no leste da Irlanda.  É este saber da utilização das peles, que já vinha dos tempos neolíticos, que os primeiros irlandeses também utilizaram para chegar chegar às Ilhas Britânicas.

O curach representa uma das duas tradições de construção de barcos na Irlanda. A construção frágil dos primeiros barcos, que torna improvável a sua preservação, tem dificultado o trabalho dos arqueólogos marinhos. Mas a sua antiguidade é indubitável a partir de fontes escritas. Um deles é o relato latino da viagem de São Brandão (que nasceu em 484 no sudoeste da Irlanda): Navigatio sancti Brendani abbatis. Contém um relato da construção de um barco oceânico: usando ferramentas de ferro, os monges construíram um navio de lados finos e com nervuras de madeira sicut mos est in illis partibus (como é costume nestas paragens), com couros curados em cascos de carvalho. Foi usado alcatrão para selar os locais onde as peles se uniam. Um mastro e uma vela eram erguidos no meio da embarcação. Embora a viagem em si seja essencialmente um conto de maravilhas, está implícito que a embarcação descrita foi construída de acordo com a prática comum da época. Um martirológio irlandês do mesmo período diz que o barco comum na Ilha de Aran é um barco feito de vime e coberto com couro de vaca.


A exploração dos espaços desconhecidos foi desde sempre um estímulo para o conhecimento. E o homem medieval também não se furta a essa atitude, aventurando-se aos mares para descobrir novas terras de além mar. O descobrimento de novos territórios traz consigo a exigência de codificação da imagem da Terra, em contínua evolução mediante cartas de marinheiro e mapas simbólicos. Mas a cisão da unidade política e cultural do Império Romano traz entre as suas consequências a dificuldade da comunicação e de troca de informações. O conhecimento das terras emersas não exploradas aumenta durante a Idade Média, por via das ousadas iniciativas de alguns grupos de viajantes (como os exploradores bizantinos da Ásia e os audazes navegadores irlandeses. Um exemplo que atesta esta falta de circulação de informação pode ser encontrado no facto de as expedições navais dos povos do Norte, que antes do ano 1000 chegaram à Islândia, à Gronelândia e à América, só muitas décadas mais tarde foram conhecidas na Europa.

Pois os povos do Norte percorreram imensas extensões em alto mar em condições muito precárias: sem usar astrolábios, quadrantes ou bússolas, desafiando a grande fronteira ocidental que era o oceano Atlântico. Ninguém nesse tempo sabia o que poderia existir para lá dessa imensa e infinita massa de água. As primeiras explorações de que temos notícia partem da Irlanda, a bordo do curach. Um barquito revestido de peles, com três ou quatro remos, muito leve e manobrável, e igualmente resistente ao naufrágio. Quando é descrito pela primeira vez pelo poeta latino Avieno, o curach já sulca os mares há alguns séculos, desempenhando um papel de primeiro plano no desenvolvimento social e económico daquelas regiões. Estreitamente ligado à história dos povos celtas, o curach é a embarcação em que São Patrício, século V, regressa à Irlanda depois de ter andado pela costa ocidental da Britânia. E é em barcos destes que, segundo nos conta Sidónio Apolinário (430-479), os piratas do Norte costumam atravessar o mar, leia-se: os Vikings. Está também historicamente documentada uma versão maior desta embarcação, munida de uma vela quadrada, armada num mastro central e com leme e âncora de ferro.




Píteas (310-380 a.C.) relatou as suas viagens num documento intitulado Περι του Ωκεανου (Sobre o Oceano), do qual apenas excertos sobreviveram, citados e parafraseados por autores posteriores. Alguns destes, como Políbio e Estrabão, acusaram Píteas de documentar uma jornada que nunca poderia ter sido financiada. Daí só poder ser fictícia. No Livro I, 4.3, Píteas é chamado por Estrabão de um arqui-falsificador, isso porque os viajantes que viram a Bretanha não mencionaram Thule, apenas outras ilhas pequenas. Além disso, Estrabão também questiona o tamanho da Bretanha mencionado por Píteas, de mais de 20.000 estádios, quando a medida de Estrabão é de menos de 5.000 estádios. No Livro II, 4.2, 
Estrabão cita Políbio, e questiona como um homem pobre pode ter viajado tanto. Apesar disto, actualmente, é aceito que a sua história é plausível. Em um de seus relatos, Píteas informou ter visitado uma ilha a seis dias de viagem do norte da Escócia, próxima ao mar congelado, e chamou aquela ilha de ThulePíteas menciona que nestas regiões havia uma substância que não era nem terra propriamente dita, nem mar, nem ar, mas uma substância formada dos três, parecendo pulmões marinhos. Muitos historiadores acreditam que esta ilha tenha sido a Islândia, enquanto outros supõem que ele na verdade referia-se à costa da Noruega.

A era do Curach acaba, porém, em finais do século VIII, com as invasões dos vikings, em consequência das quais cessam as condições pacíficas que tornaram possíveis as deslocações dos monges irlandeses além-mar, pelo menos seguramente até à Islândia, onde – segundo a crónica do próprio Dicuil – eles chegam em 795. Não é possível apurar se, partindo desta última base, os monges irlandeses terão alcançado também a Gronelândia, onde chegam os noruegueses. A Gronelândia é também usada como base pelos vikings para avanços posteriores que os levam, provavelmente, a tocar as costas da América, como conta a Groenlandinga Saga, que é a mais antiga e mais fidedigna fonte de notícias sobre as viagens dos noruegueses. A redação deste texto é atribuída ao século XII, mas as peripécias que narra são anteriores. O seu protagonista é Bjarni Herjolfsson, filho de um colono norueguês na Islândia. Este hábil marinheiro, capaz de conhecer as posições no mar observando o Sol e de manter a rota seguindo convenientemente os ventos, ter-se-ia mudado para a Gronelândia; partindo dali para o alto-mar e avistando ao longe a costa setentrional da América, tê-la-ia tocado. Os eremitas irlandeses, espicaçados pelo desejo de descobrir locais isolados onde pudessem entregar-se à meditação, chegam com esses meios às Hébridas, às Órcades, às Shetland e às Féroe. O monge Dicuil (séculoIX), que é um dos homens de cultura da corte de Carlos Magno (742-814, rei desde 768, imperador desde 800), fornece informações sobre uma expedição dos seus confrades às ilhas Féroe em 825. Entre estes navegadores cristãos, já se havia distinguido São Brandão, que chega às Hébridas na primeira metade do século VI e a quem a tradição atribui muitas viagens por mar. A figura deste santo marinheiro é também recordada por causa de uma fabulosa ilha de São Brandão que aparece com frequência nas cartas náuticas britânicas da época e só delas desaparece a partir do século XIX.

Uma das problemáticas geográficas herdadas da Antiguidade é a da representação da Terra. Já com os antigos pitagóricos a Terra começava a ser pensada como um globo no interior de uma esfera mais ampla, a dos céus; esta maneira de ver é depois aceite por filósofos, astrónomos e geógrafos da época helenística e romana e em seguida pelos estudiosos da alta Idade Média, que a descrevem segundo dois modelos. Por um lado, temos o orbis quadratus, fruto das hipóteses propostas pelo geógrafo Crates de Malo (século II a.C.), segundo o qual a Terra divide-se em quatro regiões por efeito da extensão dos oceanos; duas regiões estão no hemisfério setentrional e duas outras no meridional, este último oposto ao Mediterrâneo e habitado pelos antípodas, os homens que vivem de cabeça para baixo.

O outro esquema de representação, muito difundido, é o chamado mapa em T, o Orbis Terræ, que apresenta um círculo dividido pela bacia do Mediterrâneo e pelo rio Nilo em três partes correspondentes aos continentes da época - Ásia, África (frequentemente chamada Lybia), e Europa -  circundados por um único oceano visto como um grande rio circular que cerca as terras conhecidas. A primeira figuração deste género aparece em De Rerum Natura de Isidoro de Sevilha, texto muito difundido na Europa medieval e que leva muitos estudiosos a julgar erroneamente ter-se voltado a crer numa Terra plana.

Este equívoco é posteriormente alimentado pela intervenção literária de dois autores cristãos: Lactâncio (240-320) inspirando-se na descrição bíblica da ecúmena, fala em Institutiones Divinæ de um universo em forma de tabernáculo (isto é: quadrangular); e, tempos depois, também o bizantino Cosmas Indicopleustes (séculoVI) representa a Terra na sua Topographia Christiana como um tabernáculo em forma de paralelepípedo com o fundo plano, uma alta montanha a dominar-lhe o perfil e um arco sobranceiro à base retangular para figurar a ecúmena. Por outro lado, como Isidoro de Sevilha refere no século VII a medida da circunferência terrestre, segundo o cômputo do geógrafo sírio Posidónio de Apameia (135 a.C.-50 a.C.), de 180 mil estádios, mencionando a circunferência da 'roda terrestre' ou até, segundo outros, da 'esfera', torna-se evidente que aqueles dois autores cristãos não merecem muito crédito por parte dos intelectuais da época. Junte-se a isto o facto de o mapa em T ser considerado neste tempo nem mais nem menos que um esquema de representação da Terra no seu todo, um mapa simbólico sem finalidades geográficas. Do mesmo modo são interpretadas as cartas regionais que procuram principalmente fornecer, de um modo esquemático, informações essenciais para os viajantes. É disto um exemplo a chamada Tabula Peutingeriana, cópia medieval do mais antigo mapa de estradas que hoje possuímos. O seu nome provém do de um dignitário de Augusta, Konrad Peutinger, que em 1507 recebe como presente este rolo de pergaminho com pouco menos de sete metros de comprimento e 34 centímetros de largura, cortado em 11 fólios dos quais falta o primeiro, com a representação das regiões mais ocidentais da bacia do Mediterrâneo. A Tabula Peutingeriana, datada presumivelmente da Antiguidade tardia, só à primeira vista é apenas um mapa que se limita a mostrar toda a rede viária romana; na realidade, até o leitor mais distraído pode ali encontrar uma quantidade de informações sobre cidades, lagos, rios, montes e limites territoriais em plena sintonia com os preceitos dados por Estrabão (63 a.C. - 21 d.C.), que chama à geografia uma forma de conhecimento não teórico mas, pelo contrário, útil e prático, ao serviço do homem de governo (Geographia, I, 16).

Apesar das limitações de clareza, devemos ver nestes documentos os progressos de uma disciplina em contínua evolução. Enquanto o mapa, desenhado, e o texto, escrito, são dois instrumentos da geografia da Grécia clássica visando representar a ecúmena, ou parte dela, num espaço geometrizado e narrado, os mapas da alta Idade Média reúnem num só estes dois instrumentos, perseguindo uma finalidade prática, por um lado, e simbólica, por outro. O objetivo destes mapas não é, pois, figurar a realidade física ou a forma da ecúmena, mas representar tudo o que fosse funcional para quem tivesse de se deslocar de um local para outro, assinalando em cada zona as cidades, os povos, os rios e salientando ao mesmo tempo, em muitos casos, a posição de Jerusalém no centro da Terra. Por isto ainda hoje os mapas medievais são documentos preciosos para se repensar a história do homem e de alguns lugares, que também pode ser percebida observando estradas e símbolos que falam da transformação dos territórios e da diversidade da evolução económica de determinadas cidades.

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