segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Humanismo - 1, Maquinismo - zero


Há dias, no programa televisivo Fronteiras XXI, da RTP3 - dedicado ao tema do envelhecimento - a dada altura entrou no debate por videoconferência o Presidente da Fundação Europeia de Pessoas Idosas - O alemão Dirk Jarré - que defendia com grande convicção a utilidade dos robôs (leia-se tecnologias) no auxílio das pessoas idosas para melhor enfrentarem as dificuldades do seu processo de envelhecimento. Ele adorava ter, daqui a poucos anos com mais idade, já não é um jovem, um robô para cuidar dele. Sabe que não vamos ter humanos suficientes para prestar os cuidados necessários a toda a gente idosa do seu tempo. É claro, um robô com inteligência artificial de última geração.

Esta introdução é uma espécie de slogan (frases feitas de uma história batida): “Em vez de nos pormos à conversa com um fascista, é preferível pressupor que já aprendemos o que tínhamos para aprender a levar uma vida antifascista. Agora o que importa é enredarmo-nos de novo em política de organização e teoria marxista, para num esforço sustentado, determos a cavalgada deste tipo de mercado capitalista, pelo menos, caso não o consigamos derrubar mesmo, e substitui-lo por um de outro tipo. As pessoas devem estar prontas para o que der e vier, porque de outro modo vamos cair num estado de torpor (fadiga e resignação). As pessoas quando cansadas de desespero, ficam mais vulneráveis, mas também dispostas a tudo. Até que vem alguém que manda, e se eleve acima da lógica racional.”

Precisamos: de uma teoria da realidade que coloque a informação digital dentro do mundo físico; de uma teoria da história em que são os seres humanos, e não os algoritmos, que determinam os resultados; e de uma teoria da natureza humana, colocada dentro do mundo físico, e resistente ao controlo das máquinas criadas pelo homo sapiens sapiens. Pelos vistos, para o bem e para o mal, as próximas gerações vão ter de se adaptar à chegada das máquinas pensantes e do homo sacer, de uma vez por todas, a era Antropocénica.

Antropocénico é um termo usado por alguns cientistas para descrever o período mais recente na história da Terra. Ainda não há data de início precisa e oficialmente apontada, mas muitos consideram que começa com a 1ª Revolução Industrial no final do século XVIII, quando as atividades humanas começaram a ter um impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento dos seus ecossistemas. Havendo sempre que tentar o necessário distanciamento histórico na ponderação de eventos e grandezas relevantes para a escala do tempo histórico, em todo o caso estas balizas têm utilidade heurística. Um hipotético observador distanciado milhões de anos no futuro poderá, munido de suficiente informação, melhor determinar uma data e uma tipologia para o Antropocénico. 


Homo sacer é uma expressão latina que, literalmente significa  homem sagrado, isto é, homem a ser julgado pelos deuses. Trata-se de uma figura obscura do direito romano arcaico, a qual se refere à condição de quem cometia um delito contra a divindade, colocando em risco a pax deorum, a amizade entre a coletividade e os deuses, que era a garantia de paz e prosperidade da civitas; ou seja, tal delito era uma ameaça ao próprio Estado. Em consequência disso, o indivíduo era "consagrado" à divindade, isto é, deixado à mercê da vingança dos deuses. Expulso do grupo social, excluído de todos os direitos civis, a sua vida passava a ser considerada "sagrada" em sentido negativo. O indivíduo podia também ser morto por qualquer um - mas não em rituais religiosos. Caim, personagem bíblica, é a figura que se aproxima mais do conceito de homo sacer. Esta é uma expressão que tem sido explorada recentemente por filósofos/sociólogos dos mais prolíficos a publicar, como Slavoj Zizek, Giorgio Agamben e Zygmunt Bauman, para designar a condição de alguns povos da história recente. Zizek aproxima o conceito daqueles que, como o povo do Afeganistão, adquirem essa espécie de existência sagrada e, paradoxalmente, negativa. Ele utiliza a imagem do avião distribuindo alimentos para uma população que acabara de ser atacada por um bombardeio aéreo.

Hoje, os projetos que têm como fito a liberdade humana através do progresso tecnológico, recebem o epíteto, por parte dos que se intitulam defensores do humanismo, de anti-humanistas ofensivos, num contexto político neoliberal mais amplo, também chamado transumanismo pós-humano. Modificámos o nosso meio ambiente de forma tão radical que temos agora de nos modificarmos a nós mesmos, se quisermos continuar a existir neste novo ambiente. Sim, podemos não querer continuar! Porque a solução poderá ter de passar por uma profunda modificação genética por via das novas tecnologias de engenharia genética. E muitos de nós não quer isso. As Nações Unidas através da UNESCO, tentaram repetidamente formular uma declaração autorizada sobre a clonagem humana no seguimento da ética médica que pede a proibição da clonagem de seres humanos. Costuma dizer-se que os agentes do crime estão sempre um passo à frente dos agentes da polícia; e que os cientistas se costumam inspirar na ficção científica para inovar. Por exemplo, em Blade Runner, podemos constatar quão insuficientes são os nossos  sistemas éticos, quando temos de enfrentar qualquer inteligência artificial. Criamos máquinas com a intenção de maximizar o nosso prazer, mas depois o que elas nos fazem é aumentar ainda mais o sofrimento físico e moral.

Embora o novo humanismo - anti-pós-humanista - se apresente como uma forma de rebelião ética à nossa submissão à lógica das máquinas, e ao poder dos algoritmos, pelo que tenho lido, parece que já fomos mudados pelas redes sociais digitais, e já não há humanismo que nos valha. Mas, tanto quanto posso perscrutar o cérebro humano, o resultado no painel do jogo entre o Humanismo e o Maquinismo, para já o humanismo ainda está a ganhar por um a zero. Por isso devemos querer rejeitar, enquanto estamos vivos, a ditadura dos algoritmos que interferem nas múltiplas escolhas e opções que temos de tomar no dia-a-dia para dar sentido às nossas vidas. De outro modo vamos mesmo ser uns infelizes autómatos, ou mesmo uns zombies, submissos à engrenagem manipuladora nas mãos de multimilionários cleptocratas. Temos que defender que cada um de nós possui uma qualidade universal da qual derivam direitos humanos inalienáveis.

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