segunda-feira, 16 de setembro de 2024

É um mistério insondável compreender como a matéria inerte cósmica deu o salto para os seres vivos



O papel da consciência na interrogação do ser, e a própria capacidade de fazer essa pergunta revela algo único sobre a consciência humana. Nós não apenas existimos, mas somos capazes de refletir sobre a nossa existência e a existência do cosmos como um todo. Isso sugere que há algo de profundamente enigmático na nossa experiência consciente, que vai além das explicações puramente materialistas. A consciência parece abrir uma dimensão que transcende o acaso mecânico, evocando uma sensação de mistério que desafia qualquer resposta simples.

A ideia de que o universo é contingente — que ele poderia não ter existido — é uma intuição difícil de abalar. Se o universo é contingente, então algo deve ter causado sua existência, ou, no mínimo, permitido sua possibilidade. A ciência pode descrever o "como das coisas”, mas essa questão toca no "porquê das coisas" — e esse "porquê" pode estar além do alcance das explicações científicas, residindo num domínio mais profundo da metafísica ou da teologia. A razão humana, que nos leva a questionar o porquê da existência do universo, também nos conduz a um impasse, inclusivamente a paradoxos. Cada explicação parece exigir outra explicação mais fundamental, e o raciocínio acaba confrontado com os seus próprios limites. É como um "nó cego" intelectual: qualquer tentativa de desvendar o mistério da existência acaba esbarrando em uma aporia, um paradoxo insolúvel.

Essas interrogações profundas podem nunca ter uma resposta satisfatória dentro dos limites da nossa compreensão. Talvez, como sugeriu o filósofo Ludwig Wittgenstein, o próprio sentido dessas questões se encontra em sua impossibilidade de serem respondidas; o mistério do ser pode ser algo que devemos aceitar como inefável, algo que nos escapa, mas que também dá forma à nossa experiência mais essencial. Essa inquietação entre o "algo" e o "nada" é, de facto, uma marca indelével da nossa consciência, como se estivéssemos destinados a buscar um sentido transcendente que nos permita compreender, ainda que apenas parcialmente, porque estamos aqui, em vez de não haver absolutamente nada.

Ao descer o nível da interpelação para focar nos organismos, a noção de "indivíduo" ganha um novo e mais profundo significado que vai além da individualidade física simples. No nível biológico, a individualidade de um organismo não é apenas uma questão de separação física do ambiente ou de suas partes, mas envolve uma série de características emergentes e complexas que ultrapassam a noção básica de fronteiras físicas. Esse novo sentido de individualidade pode ser compreendido em alguns aspetos essenciais que vai da individualidade funcional e sistémica à consciência e individualidade subjetiva. Um organismo é uma entidade integrada que não existe apenas como uma unidade física, mas que também opera como um sistema autossustentável e autorregulado. Ele não é apenas um conjunto de células ou tecidos, mas um todo funcional no qual as partes desempenham papéis interdependentes. A individualidade aqui surge da coesão interna e da capacidade de organizar processos bioquímicos e metabólicos que mantêm a própria vida.

A noção de autopoiese é central para esse entendimento. Um organismo vivo é autopoiético no sentido de que é capaz de se produzir e se regenerar continuamente. Isso diferencia a individualidade de um organismo da individualidade de um objeto inerte, como uma rocha, que não tem essa capacidade de se reorganizar e sustentar sua própria existência de forma ativa. O organismo existe como uma entidade dinâmica que emerge e se redefine constantemente. Um organismo é também um indivíduo num sentido evolutivo. Ele é o resultado de um processo histórico de adaptação e seleção natural que moldou sua estrutura e função ao longo do tempo. Nesse contexto, a individualidade não é apenas física e funcional, mas também temporal, pois o organismo carrega consigo o legado evolutivo de seus ancestrais, sendo um "indivíduo" tanto no presente como no contexto mais amplo da história da vida. A individualidade de um organismo vai além de uma separação rígida entre ele e o ambiente. Embora o organismo seja claramente distinto do ambiente externo em termos de fronteiras físicas, ele mantém uma relação constante de troca com esse ambiente. O organismo precisa absorver nutrientes, energia, e interagir com o meio ao seu redor de forma que sua individualidade seja mantida, mas sem uma independência total do ambiente. Essa relação dialética entre o organismo e o meio implica que a individualidade biológica é tanto uma questão de separação quanto de interconexão.

A individualidade em organismos pode ser vista como hierárquica. Em níveis mais simples, podemos considerar as células como indivíduos dentro de um organismo multicelular. No entanto, o organismo como um todo também é um indivíduo, um nível de organização superior que coordena as células em uma entidade coesa. Essa hierarquia de níveis de individualidade (desde o molecular até o organismo inteiro) torna essa noção de individualidade muito mais rica e complexa do que a primeira noção de individualidade física. Em organismos mais complexos, particularmente nos animais e nos humanos, a individualidade adquire uma dimensão subjetiva. O organismo não é apenas fisicamente e funcionalmente um indivíduo, mas também possui uma experiência consciente de ser um "eu". No caso dos seres humanos, essa dimensão se torna ainda mais complexa, pois envolve a autoconsciência, a perceção do mundo externo e a capacidade de refletir sobre sua própria individualidade.

Portanto, quando pensamos em um organismo como um indivíduo, estamos tratando de uma individualidade que é qualitativa e sistemicamente distinta da simples individualidade física de um objeto inerte. A individualidade biológica é emergente, funcional, histórica, relacional e, em certos casos, subjetiva. Essa complexidade faz com que a noção de "indivíduo" em biologia seja muito mais rica e multifacetada do que a mera separação física de um ser do seu ambiente.

A ideia de que um ser vivo é uma entidade autopoiética emergente, em contraste com meras estruturas físicas, toca em uma distinção central entre sistemas biológicos e sistemas inanimados. A autopoiese, conceito desenvolvido por Humberto Maturana e Francisco Varela, refere-se à capacidade de um sistema de se autogerar e se auto-manter. Um ser autopoiético é aquele que produz continuamente seus próprios componentes, organizando-se de tal forma que preserva a sua estrutura e funcionalidade ao longo do tempo. Enquanto uma mera estrutura física, como uma pedra, é definida apenas pelas interações externas e internas entre suas partes, um ser vivo vai além disso. Ele emerge como algo mais do que a soma de suas partes físicas, pois estabelece uma rede de interações que o mantém num estado organizado, distinto do ambiente. Em outras palavras, é a sua organização dinâmica que permite a sua continuidade e identidade ao longo do tempo.

Nesse sentido, a emergência refere-se à complexidade do comportamento de um ser vivo que surge a partir de interações entre componentes simples. Essas interações geram propriedades que não podem ser completamente explicadas apenas pela análise dos componentes isolados. Em sistemas vivos, há um nível de complexidade e adaptabilidade que transcende a organização puramente mecânica das estruturas físicas. A vida constitui uma nova ordem da natureza qualitativamente distinta da ordem meramente física, pois introduz características e dinâmicas que transcendem o comportamento previsível dos sistemas puramente físicos ou químicos. Na física clássica, as leis determinam interações previsíveis entre partículas, onde não há propósito inerente ou capacidade de auto-organização contínua. Já a vida, como uma entidade autopoiética, apresenta uma organização ativa e orientada para a manutenção de si mesma. Essa nova ordem introduz vários elementos qualitativos que não aparecem no mundo inanimado.

Um ser vivo se organiza e regula independentemente das forças externas, dentro dos limites impostos por seu ambiente, criando uma espécie de "fronteira" que o distingue do mundo externo. Enquanto as estruturas físicas obedecem a leis cegas e mecânicas, os seres vivos operam com uma intencionalidade implícita. Sua organização interna está direcionada à sobrevivência e à perpetuação, o que implica um propósito emergente que não pode ser reduzido apenas às leis da física e química. A nova ordem biológica inclui a capacidade de adaptação, mudança e evolução. Isso se manifesta não apenas no nível individual, mas ao longo de gerações, como parte do processo evolutivo, introduzindo um elemento de transformação e aprendizado que não é encontrado em estruturas inertes.

Nos sistemas vivos, os componentes funcionam em interdependência, formando redes complexas em que o todo determina as partes, em vez de serem simplesmente agregados de partes. A causalidade nestes sistemas é circular (retroalimentação), algo ausente em sistemas puramente físicos. Essa distinção sugere que a vida representa um patamar qualitativamente superior no desenvolvimento da complexidade cósmica. Assim, a vida rompe com o domínio das leis que apenas governam o comportamento físico-mecânico, criando uma nova dimensão no contínuo da natureza.

A transição da matéria inerte para os seres vivos é um dos grandes mistérios insondáveis da existência. Essa passagem, que representa o surgimento da vida a partir de substâncias químicas sem vida, é um fenómeno que ainda desafia cientistas e filósofos. Embora existam muitas teorias sobre a origem da vida, o "salto" de sistemas inanimados para entidades vivas que são organizadas, autorreguladas e capazes de reprodução permanece um enigma profundo. O mistério está em como combinações de moléculas simples puderam adquirir as propriedades essenciais da vida, como a capacidade de replicação e de autossustentação. Há, de facto, um abismo qualitativo entre as estruturas moleculares que obedecem cegamente às leis físico-químicas e a organização complexa que caracteriza os organismos vivos.

A vida depende de redes altamente complexas e interdependentes de reações químicas que sustentam a célula, a menor unidade da vida. Cada componente da célula tem uma função essencial, e a interconexão entre as partes é tão intricada que parece impossível que tal sistema tenha surgido espontaneamente. A vida se baseia em códigos informacionais, como o DNA, que armazena e transmite instruções precisas para a construção e manutenção de organismos. Como um código altamente organizado pode ter surgido de simples interações químicas aleatórias?

Se a vida em si já é um salto misterioso da matéria inerte, a emergência da consciência nos seres vivos adiciona outra camada insondável. Como os processos físicos podem gerar experiências subjetivas, intenção e autoconsciência? A vida não é apenas um sistema químico complexo, mas parece ser direcionada para a autossustentação, adaptação e evolução. Essa tendência teleológica, ou a aparência de um "propósito", não é observada em processos puramente físicos e levanta a questão da razão de ser de tudo isto. Muitos pensadores, desde os tempos antigos, têm tentado abordar essa questão. Aristóteles, por exemplo, falava da enteléquia, a ideia de que os seres vivos têm um princípio ativo interno que guia o seu desenvolvimento. Nos tempos modernos, a ciência, embora tenha avançado muito em compreender os mecanismos da vida, ainda não resolveu como a transição inicial de matéria inanimada para viva ocorreu.

A ideia de que a vida emergiu de sistemas puramente físico-químicos permanece uma explicação provisória, mas a verdadeira essência desse salto permanece fora de alcance. Muitos veem nisso um mistério que pode nunca ser totalmente compreendido, um ponto intransponível, por onde nem a ciência nem a filosofia conseguem ultrapassar. O carácter da nossa consciência não se conforma que o Universo exista por acaso. E eis o nó cego que é a nossa interpelação: assim como existe o Universo, também poderia não existir?

A interrogação sobre porque o Universo existe em vez de não haver absolutamente nada — é uma das mais profundas e desconcertantes indagações filosóficas. Ela toca em um dilema existencial que parece estar no cerne da própria condição humana: o mistério do ser e do nada. A nossa consciência, em sua busca por sentido, tem dificuldade em aceitar a ideia de que o Universo possa ser fruto de um acaso cego, sem razão última ou propósito subjacente. A pergunta "por que há algo ao invés de nada?" foi formulada por filósofos como Leibniz, que sugeriu que o mundo existe porque Deus, a ‘causa sui’ ou causa necessária, o criou. Mesmo para aqueles que não adotam explicações teológicas, a questão permanece válida: como o ser pode ter emergido do não-ser? Ou mais radicalmente, porque o ser existe em vez do nada absoluto?

Há uma impossibilidade lógica no nada absoluto. Alguns pensadores argumentam que o "nada absoluto" é uma noção que não pode sequer ser concebida, pois o ato de pensar no "nada" já o torna algo em nossa consciência. O filósofo Martin Heidegger considerava essa questão central à filosofia existencial, abordando o conceito do "nada" como um fenómeno que só faz sentido em contraste com o "ser". O próprio ato de existir, de experienciar o mundo, faz do nada uma abstração quase inacessível.

Por outro lado, a natureza do acaso é muito enigmática. A ideia de que o universo tenha surgido do acaso absoluto também é difícil de reconciliar com a intuição humana. A complexidade do cosmos, suas leis físicas e a ordem aparente parecem sugerir algo mais do que um evento fortuito. Essa visão frequentemente nos leva a buscar razões, causas ou finalidades — como se nossa consciência recusasse a ideia de uma realidade sem algum tipo de necessidade ou propósito transcendental.

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