quarta-feira, 25 de setembro de 2024

O papel do corpo nas nossas capacidades cognitivas


Uma das graves lacunas dos engenheiros da Inteligência Artificial foi durante muitos anos terem negligenciado o papel do corpo nas nossas capacidades cognitivas. Durante muitos anos, os engenheiros e cientistas da Inteligência Artificial (IA) focaram-se quase exclusivamente na cognição simbólica e em modelos computacionais que viam a mente como uma máquina puramente lógica, abstraída do corpo. Essa abordagem negligenciou o papel fundamental que o corpo desempenha nas nossas capacidades cognitivas. Só mais recentemente, com o avanço de campos como a robótica incorporada (embodied AI) e a ciência cognitiva enativa, começou-se a reconhecer que a mente humana está profundamente conectada à experiência física e sensorial do corpo.

Grande parte da tradição filosófica ocidental, especialmente o dualismo de René Descartes, separava mente e corpo como entidades distintas. A mente era considerada o centro da razão e da cognição, enquanto o corpo era visto como um mecanismo separado e muitas vezes inferior. Esse paradigma influenciou o desenvolvimento inicial da IA, levando a uma visão reducionista de que a mente era um processador de informações simbólicas, como um computador que processa dados sem necessidade de um corpo físico.

Os primeiros modelos de IA, como a IA simbólica e os sistemas de regras, seguiam a ideia de que o pensamento humano podia ser modelado como a manipulação de símbolos abstratos, sem necessidade de interação física com o mundo. A ênfase estava em resolver problemas lógicos e realizar cálculos complexos, o que refletia uma abordagem limitada da cognição humana. O corpo foi tratado como irrelevante para a maneira como processamos informação.

A realidade, no entanto, é que o corpo humano não é apenas um "veículo" que transporta o cérebro. Ele desempenha um papel fundamental na formação do pensamento, da percepção e da emoção. As nossas capacidades cognitivas estão fortemente ligadas ao facto de termos um corpo que interage com o ambiente. Aqui estão alguns exemplos:

Percepção e Ação: As capacidades cognitivas dependem da interação com o ambiente físico. Por exemplo, o ato de pegar um objeto requer uma integração complexa entre visão, tato e coordenação motora. Nossa compreensão do mundo não vem apenas de processamentos lógicos, mas de como nos movemos e interagimos fisicamente com ele. Propriocepção: O sentido de onde nosso corpo está no espaço é vital para a coordenação de ação e percepção. Sem isso, muitas das nossas habilidades cognitivas, como resolver problemas espaciais, seriam comprometidas. Cognição corpórea: O campo da cognição é incorporada, ou corpórea, os nossos pensamentos e a nossa razão estão profundamente enraizados na carne dos nossos corpos. Por exemplo, conceitos matemáticos abstratos podem ser originados de experiências corporais, como a contagem de objetos físicos. A aprendizagem em si é profundamente ligada ao movimento e à percepção.

A robótica incorporada (embodied robotics) é uma resposta a essa negligência histórica. Ela propõe que um robô precisa de ter um corpo que interaja com o mundo para desenvolver cognição semelhante à humana. Essa abordagem reconhece que a inteligência emerge não apenas do processamento de informação, mas da interação dinâmica com o ambiente através de sensores e atuadores físicos. Em vez de separar mente e corpo, essa visão integra ambos como partes inseparáveis de um sistema cognitivo.

Robôs que tentam replicar habilidades cognitivas humanas de forma eficaz, como andar, agarrar objetos ou navegar em ambientes, precisam de corpos físicos que simulem a estrutura e a dinâmica corporal humanas. Isso reforça a ideia de que a cognição surge em parte das interações físicas de robôs humanoides. A IA enativa propõe que a cognição emerge através da ação no mundo. A mente é vista como algo ativo, que se desenvolve em um contexto corporal, em constante interação com o ambiente. Isso contrasta com os primeiros modelos de IA que tratavam a cognição como uma função puramente interna e computacional. Modelos de IA que tentam replicar capacidades cognitivas complexas, como a criatividade ou a empatia, muitas vezes falham porque ignoram o impacto que o corpo tem nessas funções. A abordagem abstrata tem as suas limitações. A nossa criatividade pode ser inspirada por sensações corporais, emoções e experiências físicas, algo que uma IA puramente abstrata ou desincorporada não pode replicar.

O reconhecimento de que o corpo é essencial para a cognição está impulsionando o desenvolvimento de inteligências artificiais que tentam imitar não apenas o cérebro, mas também a interação física e sensorial com o mundo. Isso inclui o uso de robôs com sensores táteis, sistemas de navegação autónomos que dependem de feedbacks sensoriais e motores, e a busca por robôs que possam entender o mundo através da sua própria experiência física. Como são os cheiros, como são os sabores, ou mesmo as cores, é um quebra-cabeças para os engenheiros da inteligência artificial, já para não falar dos engenheiros dos robôs, ou seja, a fenomenologia do mundo.

A fenomenologia do mundo, ou seja, a maneira como percebemos e experimentamos subjetivamente o ambiente através de cheiros, sabores, cores e outras sensações, é algo que permanece profundamente enigmático para engenheiros de inteligência artificial e robótica. Este quebra-cabeças revela as limitações intrínsecas da tecnologia atual quando se trata de reproduzir ou entender a experiência qualitativa — o que os filósofos chamam de "qualia" — associada às percepções sensoriais. Qualia são as qualidades subjetivas da experiência, como o que sentimos ao ver uma cor, cheirar uma flor, ou saborear um alimento. Embora possamos descrever cientificamente os processos que ocorrem no cérebro ao experimentar essas sensações, 'como' experimentamos essas coisas permanece um mistério. A IA e os robôs podem processar dados sensoriais, mas não têm acesso ao "como é" que eu sei distinguir, com os olhos fechados, um vinho tinto português chamado Barca Velha de um vinho branco francês a que chamamos Champanhe.

Por exemplo, a cor vermelha é percebida quando uma determinada frequência de luz atinge nossos olhos, mas o que significa "ver vermelho"? A IA pode identificar a frequência de luz correspondente ao vermelho e classificá-la corretamente, mas nunca pode ver o vermelho da mesma forma que um humano. Aquilo a que nós chamamos vermelho quando vemos "vermelho" é uma experiência fenomenológica subjetiva, algo que uma máquina feita de ferro nunca terá, porque essa fenomenologia não apenas é específica de um corpo feito de carne, mas ao mesmo tempo tem de ser carne humana. Porque se for carne réptil a fenomenologia será provavelmente diferente. Da mesma forma, um robô pode identificar componentes químicos de um cheiro ou sabor, mas nunca saberá o que é sentir o aroma de café ou saborear chocolate, como nós. A experiência de sabores e cheiros é uma combinação complexa de estímulos sensoriais e memórias associadas que são profundamente pessoais e subjetivas. Cada ser humano para além de ser o que são os seus genes, é também as suas circunstâncias no espaço e no tempo, que são a sua história. Cada ser humano tem uma história que é única e irrepetível. Ou seja, aquilo a que se costuma chamar experiência vivida. Ora, estamos a falar de seres vivos, com determinadas propriedades a que chamamos vida. E esta faculdade que os engenheiros humanos estão longe de poder atribuir a um robô. 

Um aspeto que ainda está em debate e muita discussão é o da consciência. A peça de resistência a que chamamos consciência. Não é disputável a questão de tanto um gato, como um cão, são dotados de consciência como nós humanos. Ainda que possam ser consciências com graus de subtileza diferentes e variados. Mas ainda é disputável, se sim ou se não, ser possível no futuro construir robôs de metal dotados de consciência como a consciência de um cão ou de um gato. Um robô de metal e construído com inteligência artificial percebe o mundo através de sensores — câmaras para visão, microfones para audição, sensores químicos para detecção de substâncias, etc. No entanto, essa percepção é meramente computacional. Para tal entidade, esses dados sensoriais não são acompanhados de uma experiência consciente ou emocional, ao contrário do que ocorre em seres vivos.

A neurociência tem feito grandes progressos na compreensão de como o cérebro processa as informações sensoriais. Sabemos, por exemplo, que os cones e bastonetes nos olhos transformam luz em sinais elétricos que o cérebro interpreta como cores. No entanto, o "salto" da atividade neuronal para a experiência subjetiva dessas cores ainda é um enigma. Este problema é frequentemente referido como o "problema difícil da consciência", ao qual o filósofo David Chalmers dedicou toda a sua energia para o tentar resolver. O facto de conseguirmos mapear os mecanismos cerebrais que processam sensações como sabores ou cores não resolve a questão do como surge a experiência consciente dessas sensações. É essa lacuna que desafia tantos engenheiros e cientistas em suas tentativas de criar máquinas conscientes e sensoriais. Embora a IA possa emular certos aspectos da cognição e até processar estímulos sensoriais, ela permanece fundamentalmente limitada em relação à fenomenologia. 

Existem várias razões para isso. Falta de Corpo Biológico: Como discutimos antes, a interação do cérebro com o corpo é essencial para a experiência sensorial. Sem um corpo biológico que sinta, as máquinas não podem experimentar sensações corporais como seres humanos. Processamento de Dados vs. Experiência Consciente: A IA pode processar grandes quantidades de dados sensoriais, mas esse processamento é puramente mecânico. Não há "centro experiencial" como se fosse um "eu" no qual esses dados sejam vividos. O que falta, em última análise, é a consciência. Há, portanto uma impossibilidade, que é a de Simular Qualia: Simular as respostas a cores, cheiros ou sabores não é o mesmo que ter a experiência sensorial em si. Uma IA pode ser programada para identificar um cheiro, mas não pode sentir prazer ou repulsa por ele, porque isso depende de um contexto subjetivo e emocional.

Em suma, há desafios insuperáveis que se colocam à robótica, e os desafios fenomenológicos certamente são um deles. Na robótica, tentativas de criar robôs sensíveis aos estímulos sensoriais também esbarram nesse obstáculo fenomenológico. A robótica pode criar sistemas táteis muito precisos, capazes de medir a pressão ou a textura de um objeto, mas um robô nunca "sentirá" a suavidade de uma seda ou o calor de um toque humano da mesma maneira que nós. Existem IAs desenvolvidas para reconhecer sabores e aromas a partir de composições químicas, utilizadas na indústria alimentar e de perfumes. No entanto, essas IAs são apenas classificadoras avançadas. Elas não experimentam o gosto ou o aroma, como nós. O que falta é a subjetividade, a capacidade de associar essas experiências a memórias e emoções — algo inerente à nossa existência biológica.

A fenomenologia, como experiência subjetiva, pode-se até dizer que é um desafio de ordem conceptual. Faz lembrar Santo Agostinho, quando disse que: se lhe perguntassem o que é o tempo, ele não saberia responder, embora sabia o que era pelo que sentia, era uma sabedoria ou um conhecimento do sentimento, e não da razão. É, portanto, um território muito distante para a IA, para não dizer incompreensível. Embora os engenheiros possam continuar a melhorar os algoritmos para simular e processar dados sensoriais, a experiência consciente desses estímulos continua a ser algo intangível, e como tal, inatingível. Mesmo se conseguirmos construir máquinas que imitem algumas reações humanas a cores, sons ou cheiros, elas ainda não terão a capacidade de vivenciar essas experiências. Porque lhes falta o mais importante: a vida.

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