sábado, 21 de setembro de 2024

Mundividências - Aristóteles - Hobbes - Rousseau - E.O. Wilson


A afirmação de que, no início do século XXI, a diferença entre a visão de mundo das elites e das classes populares (arraia miúda) se tem ampliado de maneira significativa, tem tido cada vez mais adeptos. Esse fosso crescente pode ser observado em vários aspectos, como a disparidade económica, o acesso à educação, a compreensão dos problemas globais, e até mesmo a deriva das visões políticas e culturais no sentido mais radical para a direita. Esse alargamento do fosso entre essas visões de mundo pode gerar tensões sociais e políticas, manifestadas em polarização política, movimentos populistas, e uma crescente desconfiança nas instituições e na própria democracia. Em suma, deve haver uma preocupação com a crescente desigualdade e a fragmentação social no século XXI.

As elites, muitas vezes, possuem recursos financeiros e acesso a oportunidades que lhes permitem viver em uma realidade bastante distinta da maioria da população. Enquanto as elites podem beneficiar de uma economia globalizada, as classes populares frequentemente enfrentam desafios como a precarização do trabalho, desigualdade salarial e acesso limitado a bens e serviços essenciais. As elites tendem a ter acesso a uma educação de maior qualidade, o que contribui para uma compreensão mais aprofundada e sofisticada dos problemas contemporâneos. Em contrapartida, a arraia miúda pode ter uma visão de mundo mais limitada, influenciada por uma educação menos privilegiada e por uma cultura popular que, muitas vezes, é moldada por interesses económicos e políticos.

Com o fim da Guerra Fria, havia a esperança de que o mundo se unificasse em torno de valores democráticos e liberais. Nos anos 1990, a queda do Muro de Berlim simbolizou não só o fim da divisão física entre Leste e Oeste, mas também a promessa de uma nova era de integração e prosperidade global. No entanto, enquanto alguns prosperaram nessa nova ordem mundial, outros sentiram que as promessas da globalização e do capitalismo neoliberal não se concretizaram para eles. Essa desigualdade inicial criou um fosso que, embora perceptível, ainda era relativamente pequeno e aparentemente contornável. Nas décadas seguintes, a globalização económica, crises financeiras, e o aumento da migração, entre outros fatores, ampliaram esse fosso. Aquilo que começou como uma diferença económica e cultural tornou-se uma divisão muito mais profunda, com a as classes das zonas industriais agora designadas pela "cintura da ferrugem" a sentirem-se cada vez mais desconectadas das elites políticas e culturais. Esse fosso está a tornar-se um "atoleiro" com a ascensão da extrema-direita, que canalizou o descontentamento popular em torno de uma retórica populista e, muitas vezes, xenófoba.

A extrema-direita conseguiu capitalizar sobre esse ressentimento crescente, oferecendo explicações simplistas e bodes expiatórios para os problemas complexos das sociedades contemporâneas. A imigração, a globalização e o multiculturalismo foram frequentemente apontados como ameaças à identidade nacional e à segurança económica, o que alimentou um discurso xenófobo. Esse movimento encontrou terreno fértil entre aqueles que se sentiam abandonados ou prejudicados pela globalização e pelas políticas das elites. Esse cenário reflete o quão profundamente as divisões se enraizaram nas sociedades modernas. O "atoleiro" da extrema-direita com tiques xenófobos mostra como o fosso entre as elites e as classes populares se tornou um problema que não só é difícil de atravessar, mas que agora ameaça engolir as próprias bases das democracias liberais. O desafio agora é encontrar formas de sanar essas divisões e de combater a ascensão de ideologias que minam a coesão social e os valores democráticos.

Ao contrário do que pensava Hobbes e Rousseau, o ser humano era mais social por natureza à partida do que individualista. O pensamento de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau sobre a natureza humana diverge em relação à sociabilidade e ao individualismo, mas ambos tinham uma visão mais negativa ou conflituosa sobre a origem da sociedade em comparação a algumas interpretações modernas. Hobbes acreditava que, no estado de natureza, o ser humano era fundamentalmente individualista e movido pelo instinto de autopreservação. Segundo ele, a vida nesse estado seria "solitária, pobre, sórdida, bruta e curta" devido à guerra de todos contra todos ("bellum omnium contra omnes"). Hobbes via a formação da sociedade como uma forma de escape dessa condição caótica, onde os indivíduos, buscando segurança e paz, concordariam em submeter-se a um governo soberano através de um contrato social. Rousseau, por outro lado, tinha uma visão mais romântica do estado de natureza, mas ainda via o ser humano como essencialmente individualista nesse contexto. Para ele, o "bom selvagem" era inocente e vivia em harmonia com a natureza, mas a sociabilidade e a formação de sociedades organizadas acabariam por corromper essa pureza natural. Rousseau acreditava que a sociedade traz desigualdades e vícios que não existiam no estado de natureza. 

No entanto, pesquisas contemporâneas nas áreas de antropologia e biologia sugerem que a sociabilidade humana pode ser uma característica inata, evolutivamente favorecida, que permitiu aos seres humanos sobreviver e prosperar. A cooperação e a vida em grupos sociais podem ter sido fundamentais para a sobrevivência e evolução da espécie, contrastando com a visão de que o individualismo é a condição natural do ser humano. Portanto, ao contrário do que Hobbes e Rousseau sugeriam, há uma perspectiva de que os seres humanos eram sociais por natureza desde o início, com a cooperação sendo um elemento crucial no desenvolvimento das primeiras comunidades e sociedades. Essa visão desafia a ideia de que o individualismo precede a sociabilidade e sugere que os laços sociais são uma parte fundamental da condição humana.

Aristóteles parecia estar mais certo nesse aspecto ao dizer que os seres humanos eram políticos por natureza. Aristóteles parece estar mais alinhado com a visão de que os seres humanos são naturalmente sociais e políticos. Em sua obra "Política", Aristóteles afirma que o ser humano é, por natureza, um "animal político" (ζῷον πολιτικόν, zôon politikon). Ele argumenta que os seres humanos têm uma tendência inata a formar comunidades e a viver em pólis (cidades-estado), pois apenas na vida em sociedade podem alcançar a plenitude de suas capacidades e a verdadeira felicidade (eudaimonia). Para Aristóteles, a vida em sociedade não é apenas uma conveniência, mas uma necessidade natural. Ele via que a fala e a razão, faculdades exclusivas dos seres humanos, são indicadores de que somos feitos para viver em comunidade. A capacidade de comunicar ideias e deliberar sobre o bem comum são fundamentais para a vida política e para a realização plena da natureza humana. Assim, em contraste com Hobbes, que via a sociedade como um contrato artificial para evitar o caos, e Rousseau, que acreditava que a sociedade corrompia o homem natural, Aristóteles via a sociabilidade e a vida política como aspectos fundamentais e naturais da existência humana. Portanto, sob a perspectiva de Aristóteles, a tendência dos seres humanos para formar sociedades e viver em comunidade não apenas é natural, mas também essencial para o desenvolvimento de suas virtudes e para a realização do bem comum. Essa visão se aproxima das descobertas modernas que indicam a importância da cooperação e da sociabilidade na evolução humana.

O desenvolvimento de capacidades sociais é uma característica central não apenas dos seres humanos, mas também dos primatas em geral. Estudos em primatologia mostram que muitas espécies de primatas, como chimpanzés, bonobos, gorilas e macacos, exibem comportamentos sociais complexos que indicam a presença de estruturas sociais, comunicação sofisticada e vínculos emocionais fortes. A maioria dos primatas vive em grupos sociais que variam em tamanho e complexidade. Esses grupos oferecem benefícios como proteção contra predadores, cooperação na busca por alimento e suporte na criação dos jovens. Muitos primatas têm hierarquias sociais bem definidas, onde a posição de um indivíduo no grupo pode influenciar seu acesso a recursos, parceiros reprodutivos e outros benefícios. Essas hierarquias são mantidas através de interações sociais, como grooming (catação de parasitas), alianças e confrontos. Primatas utilizam uma variedade de formas de comunicação, incluindo expressões faciais, gestos, vocalizações e contacto físico, para coordenar suas interações sociais, expressar emoções e resolver conflitos. Alguns primatas demonstram empatia e comportamentos altruístas, como ajudar membros do grupo que estão feridos ou em necessidade. Esse tipo de comportamento sugere que a empatia e a cooperação têm raízes profundas na evolução dos primatas. Os primatas são capazes de aprender observando os outros, o que é crucial para a transmissão de conhecimento cultural dentro do grupo. Essas capacidades sociais dos primatas apontam para uma evolução que favoreceu a cooperação, a comunicação e a formação de laços sociais fortes, o que foi essencial para a sobrevivência e o sucesso reprodutivo dessas espécies.

Nos seres humanos, essas capacidades sociais atingiram um nível de complexidade ainda maior, culminando na formação de sociedades complexas, cultura, linguagem e sistemas políticos. Isso reforça a ideia de que a sociabilidade é uma característica inata e fundamental dos primatas, incluindo os humanos, confirmando, assim, a perspectiva de Aristóteles de que somos, por natureza, seres políticos e sociais.

Em sociedades pré-históricas e tribais, os conflitos não eram geralmente entre indivíduos isolados, mas entre grupos. As rivalidades por recursos como território, comida e água frequentemente levavam a confrontos entre tribos ou clãs, e não necessariamente a um conflito constante entre indivíduos dentro do mesmo grupo. A coesão interna de uma tribo era fundamental para sua sobrevivência, o que tornava a solidariedade interna mais importante do que as disputas individuais. No entanto, essa coesão se transformava em hostilidade quando o grupo sentia que sua sobrevivência estava ameaçada por outro grupo.

Historiadores e antropólogos argumentam que a guerra, como fenómeno, surgiu naturalmente em sociedades humanas como uma extensão da luta por recursos e poder entre grupos. Por conseguinte, a guerra tem a ver com comportamento grupal. 
A guerra, neste sentido, não é uma simples expressão de agressividade individual, mas um comportamento organizado e coletivo, voltado para a defesa ou conquista em nome do grupo. A natureza comunal da guerra é evidenciada pelo facto de que envolve planeamento, divisão de tarefas, liderança e uma clara distinção entre “nós” e “eles”. E.O. Wilson, sugere que a seleção de grupos (group selection) pode ter favorecido as sociedades que conseguiam se organizar para a guerra de maneira eficaz. Grupos que cooperavam internamente e conseguiam se defender ou conquistar outros grupos tinham maior possibilidade de sobreviver e passar seus genes adiante. Assim, a tendência para o conflito comunal poderia ser vista como uma característica evolutivamente selecionada em certas circunstâncias. Essa visão sugere uma dualidade na natureza humana primitiva: uma tendência à paz e cooperação dentro do grupo e uma tendência ao conflito e à guerra entre grupos. Essa dualidade poderia explicar porque, ao longo da história, as sociedades humanas tendem a organizar-se internamente de forma relativamente pacífica, mas estão frequentemente em guerra com outras sociedades.

Portanto, ao contrário da visão individualista do conflito humano, como proposto por Hobbes, a tendência para a guerra pode ser mais bem compreendida como um fenômeno comunal, surgindo de uma necessidade de defesa coletiva e competição entre grupos. A natureza humana, nesse contexto, seria marcada por uma sociabilidade interna que, paradoxalmente, alimenta a hostilidade externa. Isso está mais em linha com uma visão onde a guerra e a cooperação coexistem como partes integradas da condição humana primitiva.

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