quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Teoria dos Sistemas Biológicos Complexos e o comportamento morfodinâmico cerebral


A teoria dos sistemas biológicos complexos trata o cérebro como um sistema dinâmico composto de muitas partes interconectadas que interagem de maneira não linear. Isso significa que pequenas mudanças em uma parte do sistema podem ter efeitos amplificados ou reduzidos em outras partes. Nesse contexto, o comportamento do cérebro é visto como emergente, resultado das interações entre milhões de neurónios e das redes que eles formam.

O comportamento morfodinâmico refere-se à forma como sistemas complexos e dinâmicos, como o cérebro humano, se auto-organizam e evoluem ao longo do tempo, respondendo a várias influências internas e externas. Neste contexto, as teorias de Bressler e Kelso são particularmente relevantes. Michael Bressler e J. A. Scott Kelso são conhecidos pelo seu trabalho na área da neurociência e da dinâmica de sistemas complexos. Eles exploram como o cérebro coordena e integra diferentes processos neurais para gerar comportamento coerente e adaptativo.

Teoria de Bressler - Bressler é conhecido pelo seu trabalho sobre a dinâmica cerebral e a conectividade funcional. Ele argumenta que o cérebro não opera como um conjunto de módulos independentes, mas sim como uma rede altamente interconectada e dinâmica. Segundo ele, o comportamento emerge de padrões de interação entre diferentes regiões do cérebro que se reorganizam continuamente em resposta às mudanças no ambiente e nas demandas cognitivas. O conceito de "sincronização" é central aqui, onde diferentes áreas do cérebro sincronizam as suas atividades para facilitar a comunicação e a integração de informações.

Teoria de Kelso - Kelso é um dos pioneiros na aplicação da teoria dos sistemas dinâmicos à neurociência e à psicologia. Ele propôs a teoria da Coordenação Dinâmica, que explica como padrões de comportamento emergem e mudam ao longo do tempo. Kelso introduziu o conceito de comportamento coordenado, que envolve a interação entre diferentes partes de um sistema para produzir movimentos ou respostas harmonizadas. Ele usa o termo atractor para descrever estados estáveis de coordenação, que o sistema tende a manter até que seja perturbado.

Em conjunto, estas teorias fornecem uma visão de como o comportamento e as funções cerebrais são produtos de interações complexas entre múltiplos processos dinâmicos. O termo "morfodinâmico" reflete esta ideia de que a forma (ou morfologia) dos padrões de atividade cerebral está em constante mudança, sendo moldada pela dinâmica das interações neuronais e pelas influências ambientais.

Entre as modalidades mais usadas, estão a ressonância magnética funcional e estrutural (fMRI/MRI), electroencefalografia (EEG) e magnetoencefalografia (MEG), complementadas pela espectroscopia do infravermelho próximo (fNIRS), estimulação magnética transcraniana (TMS) e estimulação de corrente contínua transcraniana (tDCS).

Inicialmente, a ênfase era colocada na localização da função cerebral. Progressivamente, esta abordagem foi sendo substituída pela tentativa de estudar o cérebro como uma entidade dinâmica cujo funcionamento depende da interação entre várias regiões. O termo “conectividade” resume esta visão do cérebro como um sistema de componentes interligadas que interagem dinamicamente de modo a suportar a função do cérebro saudável e que tendem a desencadear comportamento patológico quando a sua comunicação é perturbada. A conectividade pode ser estudada de um ponto de vista estritamente funcional e/ou de um ponto de vista estrutural/anatómico. Uma vez que a conectividade funcional depende da existência e integridade das vias neuronais estruturais, faz sentido abranger a conectividade estrutural e funcional de forma integrada. “Dinâmica” pode ser entendida, neste contexto, como o estudo de como os sinais cerebrais evoluem no tempo, durante o repouso (oscilações espontâneas) ou como resposta a um estímulo, e a relação entre o comportamento temporal e os mecanismos fisiológicos subjacentes que suportam as funções do cérebro.

Multiestabilidade e metaestabilidade são conceitos relacionados à dinâmica cerebral e à forma como o cérebro processa e integra informações. Esses conceitos são particularmente relevantes no estudo das redes neurais e da cognição. Multiestabilidade refere-se à capacidade do cérebro de alternar entre diferentes estados de atividade estáveis ou padrões de ativação neuronal. Esses estados podem corresponder a diferentes modos de perceção, atenção, ou estados mentais. Por exemplo, em certas condições, o cérebro pode alternar entre diferentes interpretações percetuais de um mesmo estímulo visual, como ocorre em figuras ambíguas (por exemplo, a "ilusão do copo e dos rostos", onde se pode ver uma taça ou dois rostos dependendo de como olha para a figura). Em termos de redes neurais, a multiestabilidade implica que as redes podem se estabilizar em diferentes configurações, cada uma correspondendo a um padrão distinto de atividade que pode ser mantido por um tempo antes de possivelmente mudar para outro padrão.

Metaestabilidade é um conceito mais dinâmico que descreve a capacidade do cérebro de transitar fluidamente entre diferentes estados de atividade, sem se fixar permanentemente em nenhum deles. Em vez de permanecer em um estado estável por longos períodos, como na multiestabilidade, a metaestabilidade envolve a manutenção de uma coordenação temporária entre diferentes regiões cerebrais que se pode reorganizar rapidamente em resposta a novas solicitações cognitivas ou estímulos externos. Metaestabilidade está associada à flexibilidade do cérebro em adaptar-se a contextos variáveis e a processos de integração sensorial, cognição e comportamento. Isso permite que o cérebro seja adaptável e reativo, integrando múltiplos fluxos de informação e ajustando continuamente as interações entre diferentes regiões cerebrais.

Multiestabilidade está ligada à capacidade do cérebro de manter diferentes estados de perceção, atenção ou pensamento, e tem sido estudada em fenómenos como a alternância percetual e estados alterados de consciência. Metaestabilidade é crucial para entender como o cérebro consegue ser tão flexível e adaptável, permitindo uma integração dinâmica de informações em tempo real. Isso é particularmente importante em funções como a atenção, tomada de decisão, e coordenação motora.

Esses conceitos ajudam a explicar como o cérebro gere a complexidade das suas funções, mantendo uma rede organizada de processos que são ao mesmo tempo robustos e flexíveis.

Os atractores cerebrais no contexto da teoria dos sistemas biológicos complexos referem-se a estados ou padrões de atividade neural para os quais o cérebro tende a evoluir ou permanecer, mesmo diante de variações externas ou internas. Esses conceitos são fundamentais para entender como o cérebro organiza suas funções e se adapta às mudanças. Os atractores cerebrais são estados de atividade neural que o cérebro tende a alcançar ou manter. Existem diferentes tipos de atractores, como:

Atractores Pontuais – Referem-se a estados estáveis, onde a atividade neural converge para um ponto fixo e permanece estável ao longo do tempo. Este tipo de atractor pode estar relacionado a estados cerebrais fixos, como um estado de repouso ou uma função cognitiva específica mantida de forma estável.

Atractores Cíclicos – Envolvem padrões de atividade que se repetem ciclicamente, como oscilações cerebrais (por exemplo, ritmos alfa, beta). Esses atractores cíclicos são cruciais para funções como a sincronização temporal entre diferentes regiões do cérebro.

Atractores Caóticos – Representam padrões de atividade mais complexos e imprevisíveis, onde a atividade neural nunca se repete exatamente, mas ainda segue uma estrutura subjacente. Eles são importantes para a flexibilidade e adaptabilidade do cérebro, permitindo respostas rápidas a estímulos inesperados.

Atractores Estrangeiros (Strange Attractors) – São um tipo de atractor caótico, que caracteriza sistemas que exibem comportamento caótico, mas com uma estrutura determinística subjacente. No cérebro, isso pode explicar a alta complexidade e a capacidade de integração de informações em estados de alta incerteza.

Esses conceitos ajudam a explicar vários fenómenos cerebrais na tomada de decisão, memória e aprendizagem, perceção. Os atractores podem representar diferentes escolhas ou opções, com o cérebro "caindo" em um atractor correspondente a uma decisão final. A formação de memórias pode ser vista como a estabilização de certos atractores no espaço neural, enquanto o esquecimento pode ser relacionado ao deslocamento ou apagamento desses atractores. Durante a perceção, o cérebro pode alternar entre diferentes atractores que correspondem a diferentes interpretações de um mesmo estímulo sensorial.

Alterações patológicas, como em doenças neurodegenerativas ou transtornos psiquiátricos, podem ser compreendidas como mudanças nos padrões de atractores cerebrais. Por exemplo, em estados depressivos, o cérebro pode ficar preso em atractores que correspondem a padrões de pensamento negativos ou cismáticos. A neuroplasticidade, por sua vez, pode ser vista como a capacidade do cérebro de criar novos atractores ou modificar os existentes em resposta à aprendizagem ou à terapia.

O conceito de metaestabilidade, mencionado anteriormente, está intimamente relacionado com a ideia de atractores cerebrais. A metaestabilidade descreve a capacidade do cérebro de transitar entre diferentes atractores, mantendo a flexibilidade necessária para responder a novas situações ou contextos. Isso permite que o cérebro não fique preso em um único estado (ou atractor), mas consiga navegar entre diferentes estados dependendo das solicitações. Esses conceitos são cruciais para a compreensão moderna de como o cérebro funciona como um sistema complexo, capaz de realizar tarefas extremamente diversas e adaptar-se a um ambiente em constante mudança.

Por isso, podemos avançar para mais dois conceitos muito importantes em neurociência: auto-organização e instabilidade dinâmica. São centrais na compreensão de como o cérebro, enquanto um sistema complexo, consegue manter a sua funcionalidade adaptativa e flexível.

Auto-Organização no Cérebro – é o processo pelo qual um sistema, sem a necessidade de controlo externo, estrutura-se de forma ordenada e funcional a partir de interações locais entre seus componentes. No contexto cerebral, isso significa que a atividade neural pode organizar-se espontaneamente em padrões coerentes e funcionais a partir das interações entre neurónios e redes neurais, sem um "controlo centralizado". No cérebro, a auto-organização é evidente em processos como:

Desenvolvimento Neural: Durante o desenvolvimento, os neurónios formam conexões baseadas em interações locais, levando ao surgimento de redes neurais complexas que sustentam a cognição e o comportamento.

Plasticidade Sináptica: A capacidade do cérebro de reorganizar as conexões (plasticidade) em resposta a experiências ou lesões, um exemplo claro de auto-organização, onde o sistema se adapta de maneira autónoma.

Geração de Padrões de Atividade: Oscilações cerebrais (como os ritmos alfa, beta) e padrões de ativação neural durante a cognição, são exemplos de como o cérebro se auto-organiza em estados funcionais.

Instabilidade dinâmica – tem a ver com a sensibilidade do cérebro a pequenas perturbações, o que permite que ele explore diferentes estados de atividade. Em um sistema instável dinamicamente, pequenas variações na atividade neural podem levar a grandes mudanças nos padrões globais de atividade. No cérebro, a instabilidade dinâmica é importante porque permite a flexibilidade e facilita a transição entre estados. A instabilidade permite que o cérebro escape de estados fixos (atractores) e explore novas configurações de atividade, o que é crucial para a adaptação a novos estímulos ou situações. Em vez de ficar preso num único padrão de atividade (o que poderia levar a rigidez comportamental ou cognitiva), a instabilidade dinâmica permite que o cérebro transite rapidamente entre diferentes estados, facilitando funções como a tomada de decisão e a resolução de problemas.

Por tudo o que já se disse, observamos aqui uma relação altamente dinâmica que envolve: atractores; metaestabilidade; auto-organização. A auto-organização e a instabilidade dinâmica estão intimamente ligadas aos conceitos de atractores e metaestabilidade. A auto-organização leva à formação de atractores no espaço de estados neurais. Esses atractores representam padrões de atividade estáveis aos quais o cérebro tende a voltar. A instabilidade dinâmica é o que permite a metaestabilidade no cérebro, ou seja, a capacidade de transitar entre diferentes atractores sem se fixar permanentemente em nenhum deles. Isso é fundamental para a flexibilidade cognitiva e comportamental.

Um exemplo clássico que ilustra esses conceitos é a perceção ambígua, como a famosa "ilusão do cubo de Necker", onde a perceção de um cubo pode alternar entre duas interpretações diferentes. A instabilidade dinâmica permite que o cérebro alterne entre esses dois estados preceptivos (ou atractores), enquanto a auto-organização assegura que a atividade neural se estabilize em uma das interpretações de cada vez. Outro exemplo é a tomada de decisão, onde o cérebro deve escolher entre várias opções. A instabilidade dinâmica permite a exploração de diferentes alternativas, enquanto a auto-organização ajuda a estabilizar a decisão final em um dos possíveis estados (atractores) de escolha.

A combinação de auto-organização e instabilidade dinâmica é fundamental para a resiliência e adaptabilidade do cérebro. Esses processos permitem que o cérebro funcione eficientemente em ambientes imprevisíveis e se adapte rapidamente a mudanças, ao mesmo tempo em que mantém uma estrutura organizada e funcional. Em suma, a auto-organização permite ao cérebro criar e manter padrões funcionais de atividade, enquanto a instabilidade dinâmica oferece a flexibilidade necessária para explorar novos estados e se adaptar a mudanças. Juntos, esses processos, são essenciais para a complexidade e a eficiência das funções cerebrais.

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