segunda-feira, 30 de junho de 2025

Equilíbrio entre o instinto e a ponderação no enfrentamento da Natureza


A natureza humana está, de facto, numa estranha posição. Por um lado, há uma necessidade de compaixão e moralidade que surge do reconhecimento do valor da vida humana e dos direitos individuais. Mas, por outro lado, devemos reconhecer que muitas dessas conquistas morais surgiram após milénios de batalhas difíceis e perseguições implacáveis para a sobrevivência. O equilíbrio é fundamental. 
Talvez, ao invés de criticar cegamente as qualidades "cruéis" que fundamentaram nossa sobrevivência, deveríamos tentar entender que, para sermos humanos, precisamos de um pouco de tudo: de compaixão, de resiliência, da coragem, mas também da prudência e da sabedoria para não cairmos na arrogância de achar que estamos à parte das forças naturais que, muitas vezes, são bem mais implacáveis do que qualquer ideologia.

É uma linha difícil de seguir, mas, se refletirmos bem, a história humana sempre esteve num equilíbrio precário entre os instintos de sobrevivência e os ideais morais. O impulso de ajuda pode, na verdade, ser autodestrutivo se não houver a preparação adequada ou o conhecimento das circunstâncias. O sacrifício heroico que muitos veem como um ato de pura bondade e compaixão pode, em muitas situações, ser uma tragédia em potencial, onde a intenção de salvar resulta na perda da própria vida. É o que acontece tantas vezes quando uma pessoa se atira à água quando outra pessoa se está a afogar, e no fim afogam-se os dois.

O que devemos fazer quando a moral nos leva a agir de forma que a razão e o sentido prático indicam ser fatal? E, no fundo, quantas vezes não fazemos isso ao longo da vida, atirando-nos para causas que nos parecem nobres, mas que, sem a devida reflexão e preparação, podem ser prejudiciais ou até desastrosas para todos os envolvidos?




A ajuda, por mais que venha de um lugar de compaixão, precisa ser alicerçada em conhecimento, preparação e conhecimento da realidade. Agir de forma altruísta sem refletir nas consequências pode ser uma armadilha mortal. A lição do afogamento nos adverte que, às vezes, a melhor ação não é a imediata, não é a intuição moral, mas sim a análise fria da situação e a preparação prévia para enfrentar o desafio, a dor ou a adversidade de forma mais eficaz. Esse é o tipo de moralidade prática que não se baseia em ideais bonitos, mas em realidades implacáveis. A falta de visão pragmática, que muitas vezes domina os discursos moralistas contemporâneos, onde a intenção pura e ingénua é muitas vezes glorificada, perde de vista a consideração que devemos tomar em relação às consequências reais.

O pensamento realista não só é sábio, como também reconhece a complexidade da vida. Não é um campo de batalha onde o bem e o mal estão claramente definidos, mas uma trama complexa onde o sacrifício nem sempre traz redenção e onde a moralidade precisa ser acompanhada de inteligência prática. O exemplo do afogamento e a coragem dos heróis que se sacrificam, como aqueles que se atiram sobre a bomba para salvar vidas, são duas faces diferentes da mesma moeda, mas com implicações muito distintas.

No caso dos militares, heróis que enfrentam o perigo sabendo que o risco é grande, fazem o sacrifício consciente com uma finalidade clara e um propósito de salvar muitas vidas. Estamos falando de um tipo de coragem que é calculada, que reconhece o preço a pagar, mas que é determinada pela realização do bem maior. Eles não agem de forma ingénua ou impulsiva como no exemplo do afogamento, mas com plena consciência da tragédia iminente e com uma decisão moral informada.


De acordo com relatos oficiais divulgados pela agência de notícias Reuters, o piloto estava operando um F-16, aeronave de combate moderna fornecida por países aliados ocidentais, e havia conseguido abater sete alvos aéreos russos, incluindo drones e mísseis. Após destruir o último alvo, porém, o caça foi atingido e sofreu danos severos, passando a perder altitude rapidamente. “O piloto utilizou todas as suas armas de bordo e abateu sete alvos aéreos. Ao abater o último, sua aeronave foi danificada e começou a perder altitude”, publicou a Força Aérea no aplicativo de mensagens Telegram. Ainda segundo a Reuters, o militar tentou conduzir a aeronave para longe de áreas habitadas, mas não conseguiu acionar o assento ejetor a tempo e morreu no acidente.
O sacrifício heroico, nesse contexto, tem uma profundidade ética, porque é feito com a integração da razão e do risco — não é um gesto de imprudência ou de fuga do medo. Este herói estava totalmente ciente de que, ao não se ejetar, não tinha qualquer chance de sobrevivência. O seu ato foi deliberado e com sentido de sacrifício que transcende a sua própria vida. É esse o espírito de um militar, sempre em prol de um bem maior: as vidas que se podem salvar.
O exemplo do afogamento está mais ligado à impulsividade humana: a tentativa de salvar sem refletir nas condições reais do momento. O indivíduo não age com conhecimento pleno do risco, e o resultado acaba sendo um erro trágico, onde a boa intenção não se alinha com a prudência, e a solidariedade se torna uma armadilha. Ambos os exemplos tratam de sacrifício, mas no caso dos heróis que enfrentam o perigo para salvar vidas, há uma lucidez ética que revela uma decisão consciente, enquanto no caso do afogamento, temos a ingenuidade e a falta de reflexão. O dilema moral entre esses dois cenários é fascinante, porque mostra que o heroísmo verdadeiro exige não só coragem, mas também uma profunda sabedoria prática. A coragem não é apenas sobre "atirar-se" aos perigos, mas sobre saber quando e como agir para que o sacrifício tenha um sentido real, evitando que a tragédia seja ainda maior.

Se pensarmos bem, a moral por trás dos heróis que se sacrificam para salvar os outros tem a ver com uma superação da própria natureza humana, onde não apenas o instinto de preservação é vencido, mas também a capacidade de refletir sobre a responsabilidade do sacrifício. Já no caso do afogamento, a moral é mais sobre os riscos de agir sem pensar.

A sociedade contemporânea parece cada vez mais voltada para o imediato, para o que é visível e palpável, esquecendo-se que as grandes soluções e as visões mais profundas estão muitas vezes escondidas nas camadas mais subtis e complexas da realidade. Vivemos num tempo onde o instante presente é frequentemente a medida de todas as coisas, e isso leva a decisões impulsivas, superficiais e muitas vezes ineficientes. A inteligência melhorada pela contemplação das dimensões longas e estratégicas do que nos rodeia foi substituída por uma cultura do instantâneo. A mentalidade de querer respostas rápidas, soluções fáceis, avanços tecnológicos imediatos acaba por obscurecer o valor da ponderação, da análise de longo prazo e da sabedoria acumulada que só pode ser acedida com tempo e distância.

O Darwinismo também se aplica à extinção de partidos em democracia


Nas democracias, a lógica darwinista aplica-se perfeitamente ao ecossistema político: sobrevivem os partidos que melhor se adaptam à realidade mutável do mundo, do eleitorado, e da sociedade. Os que se fossilizam, por mais ideologicamente convictos que estejam, acabam marginalizados ou extintos. O caso do Partido Comunista Português (PCP) é paradigmático. Continua a defender um discurso enraizado num século XX que já passou, como se a Guerra Fria ainda estivesse em curso. Há uma recusa sistemática em mudar conceitos, símbolos, métodos. Internamente, cultivam uma disciplina rígida, quase estalinista, que repele o pensamento divergente. E isso, numa sociedade democrática pluralista e em transformação, funciona como uma sentença de morte lenta. No caso do PCP, apesar de ainda ter alguma influência sindical, mas até o movimento sindical clássico está em declínio.

Um parido político acaba por ser um fóssil quando se recusa adaptar no seu programa ao mundo pós-industrial, multicultural e globalizado. Manter um anticapitalismo de manual, ou um antiamericanismo instintivo primário só pode levar à irrelevância. É toda uma desconfiança de cariz paranoico que corta com toda a matéria que é mais candente na atualidade: sejam as alterações climáticas, sejam os movimentos migratórios. Seja a tecnologia da robótica e da inteligência artificial, seja a globalização digital ou mesmo o feminismo contemporâneo. Todos esses temas estão arredados do seu léxico político. Daí resulta a perda do eleitorado mais jovem, mas também dos seus bastiões tradicionais mais envelhecidos de toda a malha rural alentejana. Um nicho desertificado que de 
5 deputados em1999 apenas restam 3 em 2025.

Há uma inversão quase tragicómica do discurso comunista, com a persistência na sua doutrina, como se dissessem: "Nós estamos certos, o mundo é que está errado". Como se fosse o último bastião da verdade e da justiça. Mas o eleitorado responde com um silêncio retumbante nas urnas. Isso mostra que ter razão nos próprios termos não é o mesmo que ter razão no tempo histórico. Darwinismo puro: não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o mais adaptável. E o PCP está claramente na cauda desse processo evolutivo. Já mais cedo tinha acontecido com o Partido Comunista Italiano, um dos maiores partidos comunistas do Ocidente.

O Bloco de Esquerda começou como um partido dinâmico, urbano, combativo, pós-moderno. Mas ao crescer, entrou no sistema, sobretudo em 2015 quando viabilizou um governo do Partido Socialista, que para além de não ter a maioria dos deputados, não havia ficado em primeiro nessas eleições. Nessa ocasião o BE 
assumiu uma postura mais institucional, mas também não se reformou por dentro para acompanhar com coerência as novas posturas. As causas que defende, como os direitos LGBTQIA+, a ecologia, e a justiça social, são relevantes, mas ficaram encapsuladas num discurso identitário e universitário, pouco acessível às massas populares. O BE tornou-se o “clube dos justos”, mas desconectou-se da angústia concreta do cidadão inseguro, do trabalhador rural, do desempregado sem formação digital. Resultado: perdeu os seus pequenos nichos urbanos para a Iniciativa Liberal.

O Partido Socialista (PS) foi durante muito tempo o partido da estabilidade ao centro do espetro democrático e do arco da governação. Mas António Costa, embora eficaz taticamente, abandonou qualquer projeto mobilizador, governando muitas vezes com cinismo, o que acabou por esvaziar qualquer virtuosismo do pragmatismo político que se impunha para a realização de reformas prementes. E por fim, foram os escândalos de corrupção que quebraram a ligação com o eleitor comum das classes médias, que concluiu que afinal “são corruptos como os outros”. Os mais pobres dizem: “nada muda”. Os mais jovens dizem: “não temos futuro aqui”. O PS deixou vago o espaço da esperança social, e também não se regenerou por dentro.

Tudo isso deu espaço a que uma espécie invasora (parafraseando Darwin) ocupasse o espaço abandonado que se tornou baldio. O Chega (CH) não propôs soluções novas, limitou-se a ocupar o espaço abandonado pelos outros. O CH fala para os que têm medo, ressentidos ou raivosos que perderam a fé. E fala para esse povo com eficácia emocional, em estilo direto e sem pudor. Captou os desencantados com "os do costume". E passou a receber o voto dos antigos eleitores do PCP e BE das zonas rurais ou industrializadas, que se sentem traídos pela esquerda "académica". E muitos abstencionistas finalmente apareceram porque acabou de chegar alguém que se dispõe a ouvir as suas angústias. O Chega pode colapsar futuramente, se se mostrar ineficaz ou ridículo no poder. Mas isso só acontece se os outros partidos ocuparem novamente o espaço emocional do povo. 

O PSD pode beneficiar disso por agora, como Montenegro está a fazer, mas precisa de resultados concretos. A esquerda precisará de uma refundação séria, com ligação aos novos tempos, ou ficará a falar sozinha em congressos ideológicos. Há exemplos de partidos -- à esquerda, à direita e ao centro --que não conseguiram adaptar-se ao seu tempo e foram empurrados para a irrelevância ou para um estado fantasma. Mas também há casos de reinvenção bem-sucedida. Na Grécia o SYRIZA teve uma ascensão meteórica em 2015, num contexto específico que tinha a ver com a austeridade depois da crise financeira de 2008. O fracasso na governação, ao ceder às imposições da Troika, foi fatal. Perdeu legitimidade perante os próprios apoiantes. Hoje está em declínio profundo, fragmentado. O Partido Socialista Francês, que foi hegemónico na era Mitterrand e Hollande, patinou ao tentar conciliar socialismo clássico com liberalismo económico. Perdeu a sua base operária e progressista. Hoje o Parido Socialista francês está a extinguir-se em estado agónico. Foi substituído por forças mais radicais com Mélenchon à cabeça. E Macron, por quanto mais tempo se aguentará antes que os herdeiros de Le Pen venham tomar conta do negócio? Ninguém sabe!

O fim da social-democracia


A erosão do apoio popular à social-democracia na Europa, apesar de seus inegáveis êxitos históricos -- como o Estado de bem-estar, os serviços públicos universais e a redistribuição da riqueza -- pode ser explicada por uma combinação de fatores estruturais, culturais, económicos e psicológicos. A social-democracia foi construída sobre alianças sólidas com a classe operária industrial organizada, que hoje está em declínio. E em sindicatos fortes, cuja influência caiu drasticamente.

A globalização e a automação dissolveram boa parte da classe operária tradicional. A nova "classe trabalhadora" é muito mais fragmentada: precária, informal, freelancer, migrante ou desempregada, menos propensa a se organizar politicamente como antes. A social-democracia tornou-se vítima do seu próprio sucesso. Elevou o nível de vida, mas não renovou a sua narrativa com o mesmo vigor. A retórica da solidariedade e da igualdade perdeu força num mundo em que o ideal dominante passou a ser o do mérito individual, da performance e do consumo.

Muitos passaram a associar a social-democracia à burocracia estatal, à estagnação e à acomodação, em vez de progresso e justiça. Com a ascensão do neoliberalismo e da terceira via, a partir dos anos 1980, os partidos social-democratas começaram a aceitar as regras do mercado global. Políticas como as de Tony Blair (Reino Unido) ou Gerhard Schröder (Alemanha) aproximaram-se do centro-direita.

O discurso igualitário e multicultural da social-democracia passou a ser associado a uma elite progressista urbana, desligada dos valores das "pessoas comuns". Hoje são questões como imigração, identidade nacional e segurança que dominam o debate. A direita populista -- capitalizando esse ressentimento com uma mensagem mais emocional, simples e nacionalista, em contraste com a linguagem técnica e racional dos social-democratas -- é quem domina os eleitorados da maior parte dos países europeus. A crise financeira de 2008 e a crise do euro atingiram fortemente as camadas populares. Muitos governos social-democratas estiveram no poder durante esses choques e aplicaram medidas impopulares ditadas por Bruxelas. Isso enfraqueceu a confiança popular na capacidade dos social-democratas de proteger o povo dos efeitos da globalização.

A social-democrata atual deve ser realista, no sentido de reconhecer que o modelo clássico de 1945–2000 não é mais reaplicável tal como foi entre 1949 e 1989, quando caiu o Muro de Berlim. Os tempos mudaram: as estruturas sociais, a economia, a subjetividade das pessoas e até o clima político passaram a ser outros. O que significa ser "realista", então? Ser realista sempre foi aceitar as verdades nuas e cruas, em que ter sol na eira e chuva no nabal nunca passaram de quimeras da inocência de um suposto paraíso perdido que um dia voltaria a ser encontrado. Pelo contrário, o inferno sempre foi aqui, neste planeta na periferia de uma galáxia entre milhares de milhões.

A social-democracia, o que perdeu foi a sua esperança tradicional. E o neoliberalismo, embora em crise, não colapsou, pelo contrário, migrou para formas digitais e "verdes". O Estado-nação perdeu parte do seu poder económico para mercados globais e algoritmos. A linguagem clássica da social-democracia não comunica mais com grande parte da população. A luta de classes foi substituída, em parte, por lutas de reconhecimento (identidade, pertença, cultura). A extrema-direita ocupa o imaginário com mitos regressivos. A esquerda radical propõe rupturas muitas vezes inviáveis. A social-democracia pode assumir o papel de ponte entre o possível e o desejável, mas precisa de coragem para reformular-se e ousar novamente.

Resta-nos um combate sem quartel contra o discurso de ódio. Para isso é preciso cultura e educação cívica transmitida às gerações vindouras desde o berço até ao caixão. Reconhecimento da diversidade sem fragmentação tribal. Valorização do cuidado, da empatia, do bem comum como novos símbolos. Promoção de uma estética pública da igualdade: arquitetura, espaços urbanos, arte e comunicação que inspirem coesão. O ser realista é interiorizar que não podemos querer “voltar aos bons tempos”. Porque os bons tempos nunca existiram para a maioria das pessoas. E as exceções só confirmam a regra. Mas continuemos a responder aos novos tempos com a mesma ambição de sempre, pugnando por liberdade e justiça, economia com dignidade e solidariedade.

Ou será que a humanidade é o que é, e que só à custa de sangue, suor e lágrimas, ou seja, só acorda para os melhores sistemas através de revoluções? Esta pergunta toca o coração da grande tragédia da história humana. a Guerra. A história, infelizmente, mostra que a social-democracia europeia só triunfou depois da II Guerra Mundial. Em bom rigor as duas guerras mundiais do século XX podem ser fundidas numa única Grande Guerra Mundial que culminou no Holocausto, que ainda hoje ecoa na Palestina. A Revolução Francesa pode ser considerada não apenas a mãe do comunismo como também do fascismo, e da sua forma mais aberrante do nazismo. 

Há algo profundamente trágico e cíclico em tudo isto. A maldição está na memória curta. Com o tempo, as sociedades esquecem o preço pago. As novas gerações não sentem o medo da Guerra que não viveram. Nem a fome e a miséria. Nem o peso da ditadura. E é então quando o sistema começa a dar sinais desse peso que já é tarde demais para acordar. Tudo se desmantela e implode como sói. E o ciclo recomeça. A utopia não está no amanhã radioso, mas na capacidade de evitar o pior. Como disse Raymond Aron: “o realista é o que prevê o desastre: para evitá-lo”.

domingo, 29 de junho de 2025

O capital social e a punição antissocial


O capital social de um país tem correlação com as taxas de punição antissocial. Sociedades nas quais as pessoas não confiam umas nas outras, e não possuem nenhum sentimento de eficácia prática -- como aquele que tem a ver com o sentimento utilitarista, ou a ética consequencialista anglo-saxónica assente em David Hume e Stuart-Mill -- a punição antissocial é máxima. E a punição antissocial vai a tal ponto que nem a generosidade "em excesso", em contextos de baixo capital social, escapa. 

Punição antissocial ocorre quando uma sociedade pune os seus cidadãos, não por quebrar normas, mas por se comportarem de forma demasiado generosa, compassiva ou cooperativa. Isso parece contraintuitivo, mas tem sido amplamente documentado em experiências laboratoriais e estudos transculturais. O estudo mais bem conseguido resulta das investigações de Herrmann, Thöni e Gächter, realizadas em2008, e que foi objeto de publicação na Science, intitulado: "Antisocial Punishment Across Societies", e que constitui hoje já um clássico na bibliografia da especialidade. A punição antissocial à generosidade não é irracional nem abstrata. Tem raízes profundas em normas culturais, estrutura social, educação e confiança coletiva. É funcional (embora disfuncional para o progresso) em ambientes onde a ordem social depende de conformidade absoluta, não de iniciativa pessoal. Reflete medo do julgamento, desconfiança nas intenções, e falta de redes horizontais de solidariedade.

Herrmann, Thöni e Gächter usaram o jogo do bem público (Public Goods Game) com punição opcional. Realizado em 16 cidades do mundo, incluindo lugares como Boston, Seul, Atenas, Muscat (Omã) ou Riyadh. Após a contribuição, os jogadores podiam gastar parte do seu dinheiro para punir outros participantes. Resultados: Em sociedades com alto capital social (como Boston ou Copenhaga), a punição era direcionada a "free-riders" (quem contribuía pouco). Em sociedades com baixo capital social (como Omã, Riyadh ou Atenas), havia altos níveis de punição antissocial, isto é, eram punidas as pessoas que contribuíam em demasia.

Nestes contextos de maior punição antissocial, os indivíduos tendem a confiar menos uns nos outros. São mais desconfiados em relação às intenções altruístas ("o que é que ele tem por trás?"). Um altruísta é visto como estando a exibir-se ou a manipular os outros. Neste tipo de sociedades há menos incentivos à cooperação anónima. A sensação de que "nada muda mesmo", ou que "ajudar não vale a pena", pode gerar ressentimento contra quem tenta cooperar ou mudar algo. A generosidade pode ser vista como um tipo reprovação indireta, mas implícita, ao comportamento dos outros. É sentida como uma crítica ostensiva, e nesse sentido gera uma reação de cariz punitiva. Isto é típico de sociedades mais rigidamente hierarquizadas, com normas culturais mais autoritárias. Em contextos mais hierarquizados e autoritários os comportamentos fora da norma (como generosidade espontânea ou destacada) podem ser percebidos como ameaça ao equilíbrio do grupo e à autoridade.

Em sociedades de baixa mobilidade social, a generosidade pode ser lida como exibição de estatuto social. O altruísmo real ou percebido pode gerar punição por inveja ou tentativa de nivelamento. Segundo alguns autores, como Robert Putnam, o capital social refere-se a confiança mútua entre cidadãos na qual se geram redes de cooperação. Havendo normas de reciprocidade, maior será o capital social, e como tal, menor será a punição antissocial à generosidade. Quanto menor for o capital social, mais comum será verificar-se punição antissocial. Isso verifica-se mais em sociedades onde a cultura cívica democrática é fraca. Ou onde há uma alta dependência de hierarquias formais, como é o caso de sociedades com uma estrutura tribal tradicional, em que a desconfiança interpessoal ocorre fora do círculo familiar.

Durkheim já havia verificado que onde não há normas cívicas partilhadas e respeitadas, o excesso de virtude é visto como desvio. E Tocqueville, em "A Democracia na América", observou que os americanos do século XIX tinham uma forte tendência para se organizarem em associações voluntárias, desde igrejas até sociedades de ajuda mútua. Essas redes fomentavam a confiança horizontal (entre iguais), fundamental para a democracia. Sociedades que carecem de uma cultura de associativismo tendem a depender apenas da autoridade vertical: Estado, tribo ou clã. A generosidade fora da estrutura formal é suspeita. A ausência de capital social horizontal leva a comportamentos como punição à cooperação espontânea. Tocqueville atribuía esse problema a uma falha no associativismo cívico e na autonomia cidadã.

Em contextos de baixa confiança social, a educação tende a ser mais autoritária, punitiva, hierárquica. Crianças aprendem que seguir regras é mais importante do que cooperar espontaneamente. A autonomia moral (agir com base em princípios) não é cultivada. Apenas impera a obediência. Consequências: quando alguém demonstra generosidade sem ser obrigado, isso desafia a norma aprendida. A reação social é desconforto ou até retaliação (punir quem está a "mostrar-se superior"). A educação moral falha em promover um sentido internalizado de justiça cooperativa. Isso é lido como: “ativismo suspeito”; “suborno indireto”; “exibição de estatuto”. As boas ações são politizadas ou vistas com cinismo. Isto reforça o ciclo de apatia cívica e ressentimento mútuo. Em suma: a generosidade em excesso pode, paradoxalmente, ser punida em sociedades onde a cooperação não é norma e a confiança social é fraca. O sentimento de impotência coletiva é elevado. Isso tem implicações importantes para políticas públicas, projetos de ajuda internacional e o modo como se tenta estimular a cooperação em diferentes contextos culturais.

sábado, 28 de junho de 2025

As democracias são imperfeitas


O caráter imprevisível do voto popular escapa frequentemente às análises dos especialistas, que muitas vezes fazem prognósticos com base em lógicas lineares, ou expectativas paroquiais que ignoram as pulsões subterrâneas do eleitorado. O caso das últimas eleições legislativas em Portugal é um exemplo ilustrativo dessa surpresa democrática. O PS, que durante anos oscilou entre o primeiro e o segundo lugar, acabou ultrapassado pelo Chega, um partido que muitos analistas ainda subestimavam como força nacional estruturada. E o PSD de Montenegro emergiu com a possibilidade de governar, mesmo sem maioria absoluta.

A democracia tem disto: não é eficiente, mas é adaptável, não é previsível, mas é plural. Uma ditadura pode, sim, resolver problemas rapidamente, mas muitas vezes impõe soluções que sacrificam direitos fundamentais, e controlam a comunicação social. As democracias arrastam decisões, mas por outro lado, mantêm uma certa possibilidade de correção ao longo do tempo. Montenegro tem agora uma oportunidade rara de lançar reformas. Com o PS enfraquecido e sem possibilidade de fazer alianças à sua esquerda, que praticamente já não existe, não espaço político para voos mais ambiciosos. A questão será se a AD ou o PSD tem vontade e audácia para aproveitar o momento, ou se ficará refém de equilibristas parlamentares e do receio da instabilidade.

Também será interessante observar como o Chega se posicionará: apenas como força de pressão e protesto, ou se irá tentar assumir responsabilidades e moderar-se para não perder capital político perante os seus eleitores. Em suma, a democracia continua sendo um sistema em que o inesperado não é falha. É característica. E isso, embora frustre quem busca estabilidade ou coerência, é parte das suas regras do jogo político.

As democracias podem morrer quando são elas que fazem entrar pela porta do cavalo o tal Cavalo de Tróia do populismo. Se a democracia cai no azar de ver o populismo chegar ao poder, corre o risco de derrapar para a autocracia. Este paradoxo é um dos grandes dilemas das democracias contemporâneas: permite, pelos seus próprios mecanismos, que forças antidemocráticas ascendam legitimamente ao poder. É o que se pode chamar de suicídio democrático ou, como alguns estudiosos nomeiam, "autocratização eleitoral". A História tem exemplos marcantes disso. Hitler chegou ao poder por via eleitoral em 1933. Hugo Chávez também. Viktor Orbán e Recep Tayyip Erdoğan mantêm uma fachada democrática enquanto corroem, passo a passo, os alicerces do Estado de Direito. Em muitos casos, o populista eleito usa a própria legitimidade das urnas para desmantelar os freios e contrapesos, atacando o poder judiciário, a imprensa, os direitos civis e as minorias. E tudo sob o manto da “vontade do povo”.

O que torna tudo mais perigoso é que as democracias liberais contemporâneas estão fragilizadas por dentro: desigualdades persistentes, corrupção, ineficiência estatal, sensação de insegurança e distanciamento entre eleitos e eleitores. Isso abre espaço para discursos simplistas e figuras que prometem limpar “o sistema”. Entram pela porta do cavalo, não com tanques, mas com votos. O alerta aqui é claro: a democracia não se defende apenas com eleições, mas também com cultura democrática, educação cívica, instituições sólidas e vigilância cidadã. Quando tudo isso falha, ou é desprezado, a democracia pode acabar entregando as chaves da casa a quem a quer demolir.

A democracia é frágil. Mas ainda é, como diria Churchill, “a pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas de tempos a tempos”. A sua sobrevivência depende menos de regras escritas, e mais do compromisso coletivo com o espírito democrático, que parece cada vez mais rarefeito em muitas sociedades. E talvez a grande pergunta do nosso tempo seja: a democracia ainda tem força para se regenerar, ou estamos mesmo no limiar de uma nova era de regimes híbridos e autoritarismos com ar de "gente de bem"?

Estamos a caminhar para um novo ciclo de regimes híbridos ou autoritários "de rosto democrático". Os sintomas são cada vez mais claros: A normalização da retórica populista e autoritária; a crescente desconfiança nas instituições; a perda do hábito do debate racional; o culto de personalidade a substituir o respeito pelo Estado de Direito. E assim vai crescendo uma “maioria ressentida” que exige soluções simples e rápidas, mesmo à custa de liberdades e direitos. Tudo isso aponta para um mundo onde a forma democrática, de eleições e parlamentos, até pode continuar a existir, mas cujo conteúdo liberal e democrático -- pluralismo, garantias individuais, separação de poderes, e assim -- será delapidado.

A História diz-nos a política tem os seus ciclos. Os sistemas políticos tendem a alternar entre aberturas e fechamentos, especialmente quando o desgaste interno e o desencanto popular minam os ideais fundadores. Assim como o Império Romano passou de República a Império autocrático, ou como a URSS ruiu por dentro, as democracias ocidentais podem estar no fim de um ciclo longo iniciado no fim da "Guerra Mundial" em 1945. Veja-se a barbárie de Paris. O sistema não tem distância suficiente para ver ou não quer ver. É um sintoma claro de que o sistema democrático com o seu "Estado Social" não está a conseguir responder às reais e mais elementares necessidades das pessoas. Muitas vezes, o que vemos são crises profundas de desigualdade, exclusão social, racismo estrutural e falta de oportunidades, que acabam em explosões de violência revoltosa.

As convulsões nos centros e periferias das principais cidades europeias não é só um problema local ou pontual; é um alerta para algo mais profundo. O sistema político pode estar tão distante da realidade das periferias que não consegue enxergar as tensões acumuladas. Ou, pior, pode simplesmente não querer ver, porque reconhecer essas falhas exigiria mudanças radicais. Mas isso iria incomodar as ideologias e os interesses estabelecidos. Paris, com os seus bairros periféricos marcados pela exclusão, desemprego juvenil e discriminação, é um exemplo emblemático Mas não é único. Muitas cidades europeias, e também americanas, estão a enfrentar esses desafios há já algum tempo. Isso reforça a ideia de que as democracias modernas estão desconectadas do seu próprio povo, especialmente das camadas mais vulneráveis, o que cria um caldo propício para a emergência de movimentos radicais. É um quadro difícil de resolver com boas maneiras: políticas públicas eficazes que para além de manter o contrato social que já existe ainda tenha que responder a novas reivindicações.


Fernando Pessoa e António Variações – a intuição humana no seu esplendor português




Fernando Pessoa era um intelectual vastíssimo, mas a sua verdadeira força não vem da erudição. Vem de uma intuição trágica e profunda da condição humana. Ele próprio reconhecia isso. Um exemplo claro é o Livro do Desassossego, onde escreve: "O que penso, o que sinto, é indissociável do que sou." Ou seja: A mente lógica (o pensar); a sensibilidade emocional (o sentir); e a experiência de ser (o ser) – estão unidas numa só corrente intuitiva.

Fernando Pessoa, com a criação dos heterónimos, intui que a identidade humana é fragmentada. Que o sentido da vida é uma busca infinita, sempre incompleta, que o viver autêntico é feito de insatisfação e deslocamento. Morreu com 47. António Variações que morreu com 39, brota sabedoria popular direta. Sem arcaboiço filosófico, acede diretamente a essa mesma camada profunda da intuição que Pessoa explorava com instrumentos mais sofisticados. "Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga" – uma lei da vida intuitiva, herdada de gerações e gerações de experiência humana. Um dito que resume melhor do que tratados inteiros de moral o mecanismo de causa e efeito entre escolhas e consequências. "Estou bem onde não estou e com pressa de chegar para depois partir para outro lugar." Isto é a própria definição do "Desassossego" existencial que Pessoa tanto sentiu. Uma intuição da intranquilidade constitutiva do ser humano: nunca estamos realmente "em casa"; o desejo nos move eternamente.




Sem estudos académicos, Variações exprimia em linguagem popular o que Pessoa arquitetava em labirintos de palavras: a intuição trágica de que a vida é busca incessante, desejo que nunca se realiza plenamente. A raiz comum: a intuição da vida como movimento e imperfeição. Tanto Fernando Pessoa como António Variações (embora separados por estilos, épocas e instrumentos) tocam a mesma música de fundo: a instabilidade da existência; a imperfeição da felicidade; a sabedoria -- errar, desejar, partir, sofrer -- é constitutiva de estar vivo. Essa sabedoria é anterior à razão e anterior às instituições: ela é quase biológica, existencial. 
Em António Variações, o ethos é de liberdade, inconformismo, verdade emocional. Ele apresenta-se sem máscaras, canta quem é, mesmo que isso desafiasse o conservadorismo da época.

Pessoa racionaliza, estetiza, eleva a vida com arte erudita. Variações, por sua vez, canta a vida no tom simples e direto do povo. Com a força de quem não precisa de conceitos para dizer verdades profundas. A intuição em Fernando Pessoa é uma inteligência direta da condição humana, trágica e inquieta, semelhante à de António Variações, mas expressa em registos diferentes. Ambos, cada um no seu campo, captam aquilo que chamávamos de sabedoria anterior à ciência e à teoria.

Se amas verdadeiramente a vida, mesmo com os seus erros, falhas, dores e imperfeições, então aceitarás alegremente o Eterno Retorno. Se te desesperas, então estavas a viver de modo falso, ressentido, inautêntico. Aceitar o Eterno Retorno é a prova suprema do amor à vida tal como ela é. Isto é, não querer mudar o que foi não desejar que tivesse sido diferente, mas dizer: "Assim foi, e assim quero que seja para sempre." Isso se aproxima muito daquela intuição profunda e amarga que está nos versos do Pessoa -- "Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena". Nas canções de Variações -- "Estou bem onde não estou" -- é a aceitação da inquietação como constituição da vida. Na sabedoria popular -- "Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga" -- é a aceitação das consequências dos atos sem idealismo.


quinta-feira, 26 de junho de 2025

A cegueira como metáfora para otimistas de curto prazo


Há que fazer chegar à opinião publicada que os descontos de um salário de mil euros não vai dar uma reforma de mais do que um terço desse valor quando a reforma vier em 2050. É preciso ter cuidado com as vistas curtas de alguns otimistas. É preciso estar atento a como certas elites fabricam consensos superficiais para lidar com crises estruturais profundas. Estamos no campo de questões, como é o caso da questão da demografia e da sustentabilidade do Estado Social.

Muitos otimistas, alguns ligados a think tanks, ou meios de comunicação, vendem a ideia de que a imigração resolverá os problemas demográficos. Apontam, com razão, que os imigrantes entram no mercado de trabalho e pagam contribuições para a segurança social. Mas omitem que, no longo prazo, estes trabalhadores também envelhecem, pelo que terão direito a pensão de reforma. Ora, baixos salários, não terão cobertura financeira suficiente. Ou seja, a pirâmide demográfica não se "cura" apenas com mais braços, se o sistema continua baseado em salários baixos, pouca produtividade, alto consumo de recursos sociais, e visão de curto prazo.

É uma hipocrisia técnica e moral, fingir que a quantidade resolverá o problema, enquanto a qualidade da integração económica, educativa e social dos novos cidadãos, e a reorganização do próprio modelo de Segurança Social, não são enfrentados com a seriedade necessária. Salários baixos significam contribuições baixas. Portanto, as futuras pensões também serão baixas, ou precisarão de ser complementadas por impostos pagos por ainda mais trabalhadores futuros. Se os salários não subirem e se a produtividade não aumentar, a sociedade cai numa espiral de ilusão: resolve o problema hoje e cria um problema ainda maior amanhã. A esperança cega nas soluções quantitativas (mais imigrantes, mais natalidade) sem transformação qualitativa (educação, inovação, redistribuição inteligente) é apenas adiar o colapso.

Essas vistas curtas não são fruto apenas de ignorância. É, muitas vezes, conivência com a manutenção do status quo, onde alguns continuam a lucrar enquanto a base da sociedade se deteriora lentamente. A cegueira sobre a sustentabilidade da sociedade é filha direta do egoísmo coletivo. As elites não querem perder o conforto adquirido, nem admitir que mudanças profundas são necessárias. Ser realista exigiria a aceitação de limites aos privilégios de quem pensa apenas no curto prazo. É exatamente o que é o egoísmo moderno, que não quer fazer sacrifícios. Prefere-se adormecer a consciência coletiva com meias verdades otimistas.

O Japão enfrenta o envelhecimento mais agudo do mundo desenvolvido. Ao contrário da maioria dos países ocidentais, não apostou numa imigração em massa para rejuvenescer a população. Preferiu tentar automatizar muitos setores com robôs, e incentivar a inclusão de mulheres e idosos no mercado de trabalho. A idade da reforma tem subido, com a ideia de que o envelhecimento ativo é mais saudável. Mas está a enfrentar graves dificuldades económicas. Os consumidores vão encolhendo dia a dia. Obviamente o dinamismo interno vai enfraquecendo pela força natural da natureza. Mas as despesas com saúde e previdência são enormes. O Japão mostra que sem imigração e sem reformas estruturais profundas, mesmo um país com cidadãos tão disciplinados como são os japoneses, não escapará à decrepitude da vida quando chega ao fim.

A Alemanha, a partir da década de 2000, começou a acolher imigração dirigida. Quer dizer, não qualquer tipo de imigrante sem discriminação positiva. É a imigração qualificada que está em causa. Ou que rapidamente se possa qualificar. O governo alemão criou programas de formação profissional para imigrantes, com o objetivo de integrá-los em setores carentes (indústria, saúde, tecnologia). Em 2015, Angela Merkel abriu as portas a refugiados sírios. O que não deixou de acarretar enormes custos políticos. Mas ainda assim manteve rigor na integração: idioma, cultura cívica, capacitação profissional. Ao mesmo tempo promoveu reformas nas leis laborais para tornar o emprego mais flexível (Agenda 2010). A economia absorveu parte dos novos trabalhadores, mas surgiram também tensões sociais e polarização política (crescimento da extrema-direita, AfD). Ainda assim, a Alemanha conseguiu retardar a crise demográfica de maneira relativamente eficiente. Lição: A imigração pode ajudar se for cuidadosamente planeada e acompanhada de integração real. Caso contrário, gera guetos, tensões e marginalização.

O Canadá tem talvez o modelo mais admirado de imigração no mundo. Modelo de imigração seletiva + aposta no capital humano. Usa um sistema de pontos. Cada imigrante é avaliado por critérios como idade, nível educacional, competências linguísticas (inglês/francês) e experiência profissional. Aposta em imigrantes jovens e qualificados, capazes de contribuir imediatamente para o mercado e sustentar o sistema social. O país também investe muito em programas de acolhimento e adaptação cultural. Resultado: alta taxa de aceitação social dos imigrantes. Crescimento demográfico equilibrado. Boa integração no mercado de trabalho. Mas, mesmo no Canadá, começa a haver pressão no mercado imobiliário, aumento do custo de vida, e questionamento sobre a absorção rápida de grandes fluxos migratórios.

Nenhuma solução é perfeita. A imigração por si só não salva o modelo de Previdência nem resolve a crise civilizacional. Sem salários decentes, educação de boa qualidade, produtividade robusta e uma mudança cultural profunda (aceitação da finitude, novos valores éticos e sociais). O esgotamento do Estado Social é uma questão de tempo. Os verdadeiros problemas são apenas adiados, mas nunca resolvidos.

terça-feira, 24 de junho de 2025

O cérebro de um adepto


A memória emocional de uma vitória ou derrota em grupo fica gravada como uma experiência pessoal intensa porque a memória emocional é mais forte do que a memória racional. Quando vivemos experiências emocionais intensas, o nosso cérebro não só grava essas memórias como as torna mais duradouras e intensas. A amígdala do cérebro é uma espécie de "central de memórias emocionais". A amígdala está ligada ao hipocampo, que é responsável por armazenar as memórias de longo prazo. Quando vivemos algo com alta carga emocional, sejam vitórias ou derrotas, seja na política, seja no desporto, a amígdala ativa a gravação dessa memória. O hipocampo então fixa essas memórias com mais intensidade. Quando um adepto vê a sua equipa perder a final de um campeonato, junto de milhares de pessoas no estádio, o cérebro relaciona a emoção da derrota ao evento em si. A memória da derrota será muito mais intensa do que se o adepto tivesse assistido sozinho em casa. Porque o cérebro faz isso? É a lógica evolutiva.



A razão de o cérebro valorizar emocionalmente uma memória tem a ver com a sobrevivência. Não tanto a sobrevivência pessoal, mas a sobrevivência da espécie. Ainda estão na memória da espécie as vitórias ancestrais, porque das derrotas de batalhas passadas ninguém ficou para contar. Vencer significa vida. Perder significa morte. A dopamina, o neurotransmissor do prazer, entra em cena quando estamos imersos em experiências emocionais. Quando ganhamos, há uma libertação de dopamina. Quando perdemos, ou passamos por momentos de angústia, a dopamina ainda está presente, mas associada ao stress e à frustração. A dopamina modula a memória emocional, tornando a experiência mais vívida. E não importa se a vitória ou a derrota foi vivida sozinha ou em grupo. O impacto emocional é sentido na mesma intensidade.

O efeito da experiência compartilhada (o contágio emocional coletivo) é uma experiência emocional muito intensa. Quando se compartilha a emoção com outros, o cérebro interpreta isso como algo mais relevante para a identidade e a sobrevivência. Em grupo, a memória fica mais viva e duradoura, como se o cérebro fosse "marcado" pela emoção coletiva. Gritar de alegria após a nossa equipa ganhar o jogo, é a coisa mais natural do mundo. Mais ainda olhar à volta e ver outras pessoas igualmente emocionadas. O cérebro sente essa experiência como uma experiência social, que é muito mais impactante do que se estivesse sozinho.

Mas não nos devemos deixar enganar pela nossa memória emocional. Quando perguntam a alguém onde estava durante um grande evento emocional, a memória parece super vívida, mas o cérebro, na verdade, mistura os detalhes da emoção com a narrativa que contamos a nós mesmos ao longo do tempo. No entanto, a emoção da experiência nunca se apaga. Essa memória é registrada na amígdala e não se desfaz com o tempo como outras memórias. Mesmo que racionalmente saibamos que o futebol não define a nossa vida, ou que uma eleição não coloca a nossa sobrevivência em risco, a memória emocional associada a esses momentos, ao lado do impacto coletivo, não desaparece facilmente.

António Damásio é uma referência brilhante quando se trata de compreender a complexidade do cérebro, especialmente no que diz respeito às emoções, razão e tomada de decisões. O trabalho dele é fascinante porque une neurociência, filosofia e psicologia, e mostra como as emoções são essenciais para a racionalidade e não algo que apenas nos desvia dela, como tradicionalmente se pensava. Ele refuta a ideia de que razão e emoção são opostos, propondo que, em vez disso, são interdependentes e que as emoções desempenham um papel crucial na nossa capacidade de tomar decisões racionais.

Damásio lança o segundo livro -- "O Sentimento de Si" -- no ano dois mil. É uma obra profunda e transformadora. Neste livro, Damásio explora de forma brilhante a construção do "eu" e como o sentimento de identidade é gerado no cérebro. Ele propõe que a consciência de si mesmo -- o que chamamos de "sentimento de ser" -- não surge de um ponto fixo, mas é o produto dinâmico da interação entre corpo e cérebro. Damásio descreve que o "eu" não é algo fixo ou imutável, mas antes uma construção contínua que se desenvolve ao longo do tempo, mediada pela integração entre o cérebro e o corpo. O sentimento de ser nasce da capacidade do cérebro de integrar as informações do corpo e de todos os seus órgãos a funcionar para uma identidade que é algo mais do que a soma do corpo e do cérebro. Porque muita coisa do mundo a que pertence também lhe pertence: um nome, uma idade, e toda a relação interpessoal. E tudo isso sob a batuta de um sistema a que chamamos "emocional".

Esse processo acontece de forma automática, de que apenas uma pequena parte chega ao nível da consciência. A cada segundo, nosso cérebro está recebendo informações: umas circulam a partir de dentro, dos órgãos e sistemas circulatório mais o endócrino e imunológico; e a partir do exterior que entram através dos vários órgãos dos sentidos. Tudo isso é atualizado ao segundo sem parar, constantemente, condicionando o estado físico e emocional por forma a dar as respostas mais adequadas, momento a momento.

Testosterona: como na guerra, no desporto


Para o cérebro humano, as competições desportivas são percebidas como "batalhas" simbólicas. No nosso passado evolutivo, a pertença a um grupo vencedor era decisiva para o acesso a recursos e à chance de reprodução. Ou seja, ganhar aumentava o prestígio do indivíduo e do grupo, e isso tendia a elevar a testosterona. Esta hormona está ligada à motivação, domínio, e, por conseguinte, à competitividade. Mesmo hoje, quando um adepto vê o seu clube vencer, o cérebro reage como se ele próprio tivesse vencido. É o que os estudos mostram. Após uma vitória da equipa, os níveis de testosterona dos adeptos (especialmente dos homens) aumentam, enquanto uma derrota, que transmite um efeito de submissão, pode fazer o oposto: baixar esses níveis. Isso é chamado de efeito de vitória --  winner effect.

Essa foi a progressão evolutiva da espécie com a identificação tribal. Torcer por uma equipa de futebol é como pertencer a uma "tribo" em competição com outra. E os circuitos cerebrais que regulam a agressividade, a lealdade de grupo e o orgulho são profundamente ativados nesses contextos.

Há um estudo clássico publicado em 1998, liderado por Bernhardt, sobre os adeptos do Mundial de Futebol de 1994, realizado pela primeira vez nos Estados Unidos da América, e em que pela 4ª vez se sagrou campeão o Brasil. O que fizeram? Pois mediram os níveis de testosterona em adeptos norte-americanos durante o jogo dos EUA com o Brasil. Nos adeptos dos EUA, que perdeu, a testosterona caiu significativamente após a derrota. Em 2003 foi feito um estudo no rugby entre ingleses durante jogos importantes. Após vitórias, a testosterona dos adeptos subiu. Após derrotas, desceu. E essa descida era proporcional à importância emocional atribuída ao jogo. O que descobriram foi que o chamado efeito de vitória é observado tanto em quem compete diretamente como em quem apenas observa, os adeptos. Curiosidade: Até nos jogos de xadrez de alto nível, as flutuações de testosterona foram registadas! Um estudo recente em adeptos de clubes espanhóis mostrou que, em clássicos como Real Madrid // Barcelona, as flutuações hormonais eram mais fortes nos jogos de maior rivalidade, indicando que o grau de envolvimento emocional amplifica o efeito.

Os mecanismos cerebrais por trás disso são os seguintes: O futebol ativa áreas cerebrais ligadas à recompensa (como o núcleo accumbens). Ganhar "reforça" a identidade social e o estatuto, o que biologicamente aumenta a testosterona. Perder ativa áreas ligadas à dor social (como a ínsula anterior), o que deprime essa resposta hormonal. Estes efeitos são mais visíveis em homens, mas também existem nas mulheres, sobretudo as que frequentam os estádios, embora um pouco diferente.

Quando a testosterona sobe, isso não é apenas uma mudança física, ela influencia o comportamento social do adepto de forma bastante concreta, aumentando a extroversão e a exuberância após uma vitória. Os adeptos tendem a ficar mais expansivos, falando alto, gritando, cantando, abraçando desconhecidos. Isso acontece porque a testosterona alta reduz a inibição social e aumenta a sensação de poder e pertencimento ao grupo. Muitas vezes vemos comportamentos como invadir o campo, fazer cortejos na rua, gastar dinheiro em bares e restaurantes. Em nada há almoços grátis, como quando as coisas descambam para maior agressividade. Embora a maioria dos adeptos apenas celebre de forma positiva, em algumas situações, a testosterona elevada pode também aumentar a agressividade, em que os confrontos entre adeptos rivais é paradigma.

Antropologicamente, isso é comparável a "festas de vitória" nas tribos antigas, em que bebidas fermentadas eram usadas para comemorar conquistas. Curiosamente, há dados que mostram que homens mesmo apenas por torcer pela equipa vencedora são percebidos como mais atraentes socialmente depois da vitória. As mudanças hormonais e a atitude confiante contribuem para isso. É como se o "cheiro da vitória" ainda tivesse algum efeito evolutivo. O impulso biológico é semelhante em todo o mundo -- aumento da testosterona após uma vitória. Nem a maneira como a cultura molda o que é "aceitável" ou "esperado" consegue mudar completamente o comportamento orquestrado pelas hormonas.

Ser de Esquerda. A terraplanagem cultural e política


Dizer-se que se é de direita ou de esquerda é um tipo de identificação que diz muito pouco hoje em dia, na medida em que são um tipo de balizas classificativas já fora do seu tempo. Durante a última metade do século XX, s
er de esquerda, para muitos, era uma vaidade intrínseca, sinónimo de consciência crítica, monopólio simbólico da virtude no campo cultural. Representava a virtude transformadora. Como os esquerdistas se acostumaram ao título de salvadores da História, riram-se quando Francis Fukuyama anunciou em 1992 o "Fim da História". 

Mas agora os eleitorados de todo o mundo estão a terraplanar toda a esquerda e a faze-la desaparecer do mapa. Agora quem está na mó de cima é a extrema-direita. Em cima da direita, a comer-lhe as papas na cabeça. Por isso, ser hoje de direita, também já não tem nada a ver com a direita clássica dos conservadores. É a nova direita e os novos populismos que, ao contrário da esquerda, tende a desafiar as utopias com desdém, valorizando mais a ordem, o sacrifício, o dever, a autoridade. Ou seja, valores morais que não brilham facilmente nos palcos das elites intelectualizadas.

O contrário da utopia perfeccionista de esquerda é o pragmatismo da imperfeição humana. Não procurem salvar o mundo. Procurem conservar a ordem natural das coisas. Não esperem dos líderes a redenção Histórica. Vão mais pelo carisma. A direita acredita que representa a virtude conservadora. A tradição da direita é a salvação da Pátria, não a salvação da humanidade. Isso não significa que não possuam figuras sólidas, com virtudes de sobriedade, responsabilidade e prudência institucional. Não esperem da direita os grandes gestos a apontar utopias. 

A esquerda tende a exaltar mais os gestos épicos, idealistas, redentores, mesmo com altos custos. A direita valoriza mais a ordem, sobriedade, realismo institucional, mesmo que com menos apelo. Ambas as tradições têm figuras com luz e sombra, dados ao culto de santos civis. Simone Veil (1927–2017) -- francesa, sobrevivente de Auschwitz, e mais tarde ministra de saúde de um governo conservador, presidente do Parlamento Europeu -- lutou pela legalização do aborto na França, apesar de a rotularem como uma mulher de centro-direita. Enfrentou tanto a esquerda como a extrema-direita católica. É de apreciar, em suma, a sua coragem, equilíbrio e dignidade moral. Václav Havel (1936–2011) -- Checoslováquia, acabou por ser um símbolo da transição comunista. Foi um crítico tanto do comunismo como do nacionalismo populista. Promoveu a democracia liberal com profundidade moral e humanismo, propagando a ética da responsabilidade com linguagem elevada. Tinha uma profunda aversão pelo cinismo. José Mujica morre em 13 de maio de 2025, com quase 90 anos. Mujica foi sem dúvida uma figura ética rara no mundo político, e um símbolo de integridade. Mas a sua trajetória não está isenta de contradições, como todos os humanos inseridos na história. É compreensível admirá-lo como homem, mas é saudável manter a crítica quanto à sua ação política. Mujica também fica pela metade: guerrilheiro, participou de ações violentas, e a sua governação, embora simbólica, não transformou estruturalmente o Uruguai. Guerrilheiro do Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros. Participou de ações armadas na década de 60 e 70, incluindo assaltos, sequestros e atentados. Foi preso e torturado, mas há quem o critique por não ter feito uma autocrítica mais profunda dessa fase.

A sensibilidade crítica é rara, especialmente num tempo em que as emoções mediáticas tendem a aplanar a complexidade das figuras históricas. É um sentido de um maniqueísmo muito antigo, que consiste no enaltecimento de mitos pela metade. Esquerda e direita são duas faces sucedâneas desse maniqueísmo. Naturalmente os de esquerda, tal como os de direita, gostam de se rever em “santos laicos” como um espelho de pureza moral, esquecendo as sombras que fazem parte de qualquer ser histórico. Por exemplo Gorbachev, é precisamente o tipo de figura que escapa à mitificação fácil, talvez porque os seus feitos beneficiaram mais o mundo do que o seu próprio povo. E porque ele é profundamente "humano, demasiado humano": cheio de contradições, hesitações e consequências imprevistas. Arquiteto da Perestroika e da Glasnost. Perestroika (reestruturação) -- tentou reformar a economia soviética, introduzindo elementos de mercado. Glasnost (transparência) -- permitiu liberdade de expressão e informação inéditas no mundo soviético. Essas reformas não foram apenas administrativas, mas abriram as comportas do colapso do regime. Gorbachev foi essencial para encerrar a Guerra Fria, de forma pacífica. Aceitou a reunificação da Alemanha, retirou apoio a ditaduras comunistas no Leste Europeu e negociou tratados de desarmamento nuclear com os EUA. Em suma: recusou usar a força militar para manter o império soviético. Foi o primeiro líder soviético a sorrir, dar entrevistas livres, aparecer com a mulher ao lado, falar de maneira acessível. Aproximou-se do Ocidente como um parceiro, não como rival ideológico. O lado negativo da Perestroika foi ter gerado mais desorganização numa economia sempre a decrescer. A escassez aumentou, o PIB caiu e o país entrou num vórtice de crise económica. Isso abriu caminho para o ressentimento popular e a ascensão de figuras como Yeltsin e, depois, Putin. Gorbachev perdeu o controlo do processo reformador que havia iniciado. Foi ultrapassado pelos acontecimentos. A URSS colapsou em 1991, não por sua vontade, mas por forças centrífugas que ele libertou sem conseguir dominar. Foi, e continua a ser, malvisto na Rússia e pelos comunistas um pouco por todo o mundo. Talvez, Gorbachev, tenha sido um homem trágico --  cujo maior legado foi a ponte que deixou entre os dois mundos, vendo ruir o seu próprio mundo.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

A propósito dos aviões B-2 Spirit




Os bombardeiros furtivos B-2 Spirit, utilizados pelos Estados Unidos no ataque às instalações nucleares iranianas no dia 21 deste mês de junho, são uma das aeronaves mais avançadas do arsenal norte-americano e, até hoje, único do mundo. Projetado para escapar aos radares inimigos, o B-2 pode atravessar grandes distâncias sem ser detetado, transportar armamento nuclear ou convencional, e atingir alvos altamente protegidos com precisão cirúrgica. Foram eles que transportaram as chamadas bombas antibúnker GBU-57, de 13.600 quilos, desenhadas para penetrar estruturas enterradas a grande profundidade, como é o caso das instalações de Fordow, no Irão, escavadas numa encosta montanhosa.

A luta pela sobrevivência não é uma batalha moral ou de "boas intenções", mas uma constante adaptação a uma realidade que sempre foi brutal. Se olharmos para os nossos ancestrais, percebemos que os mais fortes, os que se adaptaram, mesmo contrariados, mas mais astutos, foram os que conseguiam perpetuar a descendência e fizeram com que fôssemos nós que estivéssemos hoje aqui e não outros completamente diferentes. Em bom rigor nunca houve lugar para os mais fracos. O que também se pode dizer por outras palavras: os mais corajosos, os menos indecisos, os que menos pensavam na morte da bezerra. A morte da bezerra era a consequência natural para os que não se conseguiam adaptar. Este cenário moldou, de forma inegável, as características fundamentais do ser humano, e até mesmo os valores éticos que promovem a cooperação, a solidariedade, e o cuidado em nossas sociedades contemporâneas.

Também é natural que hoje em dia os bons pensadores de sofá dos dias de hoje, na sua maioria, abominam o que foi dito no parágrafo anterior porque, para além de terem estado a salvo dos grandes perigos, nunca lhes passou pela cabeça do que era preciso fazer para terem um abrigo, comida na mesa, e roupa lavada. Tudo isso sempre esteve garantido. Por isso, sempre tiveram todo o tempo do mundo para pensar. Por isso, o facto de essa luta constante pela sobrevivência ter desapercebido dos radares de muitos pensadores e intelectuais modernos, passou a ser mais um problema do que uma boa solução para as intempéries com que agora somos assolados.

Hoje não faltam intelectuais que militam como ativistas contemporâneos por um determinado número de causas que vituperam a civilização ocidental. Parece que ignoram que esta civilização que desfrutam é, em grande parte, o resultado da luta incansável de gerações passadas. A história foi marcada por guerras, massacres, tensões sociais e desigualdades que foram necessárias para a formação das sociedades que agora criticam com tanta facilidade. Faz parte da história da sobrevivência da espécie. A luta pela dominância, proteção do grupo e autossuficiência foi uma característica essencial de muitas culturas antigas, desde os tempos das grandes migrações do degelo que deram lugar às guerras tribais. Ou seja, as guerras, que fazem parte da toda a história da humanidade, estão centradas na necessidade de proteção contra a extinção.

Por isso, muito intelectual está na verdade desconectado dessa história crua de sobrevivência, onde as decisões, muitas vezes, envolviam a exclusão dos mais fracos para garantir que os mais aptos sobrevivessem. É preciso entender essa dura realidade para apreciar como a civilização moderna chegou ao ponto a que chegou. No enfrentamento com a Natureza, ela sempre foi cruel. Há uma contradição curiosa em muitos dos debates de hoje: enquanto muitos defendem valores de igualdade, justiça social e compaixão, há uma falta de reconhecimento de que tais princípios, embora essenciais para a sociedade moderna, não surgiram de um mundo pacífico e igualitário. Eles são, na verdade, construções culturais recentes que emergiram em contextos de grande violência e desigualdade. A questão que se coloca, portanto, é: até que ponto podemos ignorar a natureza mais implacável e o contexto evolutivo que moldou o homem moderno? Serão os "valores humanistas" que hoje defendemos suficientes para encarar a dureza da realidade, ou estamos a viver uma ilusão de que a civilização nos vai proteger de ameaças que ainda são muito reais, embora não tão óbvias como eram no passado?

Sem as qualidades tradicionais -- coragem, competitividade, e a luta pelo bem-estar próprio e coletivo -- não haveria civilização, nem progresso. Não se trata de elogiar a brutalidade, mas de entender que há momentos em que a sobrevivência exigiu decisões duras e ações que, para nós hoje, podem parecer cruéis ou até antiéticas, mas que eram, na sua essência, necessárias para a continuação da espécie. Viver num mundo de paz e prosperidade não é a norma histórica, mas uma exceção que surge de um processo de seleção constante, de um confronto com a natureza e com a luta pela sobrevivência. Acreditar que a humanidade pode simplesmente abrir mão de certas qualidades, como a luta pela sobrevivência ou a seletividade adaptativa, é um engano. Não podemos desconsiderar as duras realidades que ainda marcam muitas partes do mundo e que podem, em última instância, afetar todos nós.

As civilizações corrompem-se por dentro



Assim como o Império Romano, no auge de sua grandiosidade, se entregava a espetáculos de violência e hedonismo -- o Ocidente destes tempos parece, em muitos aspectos, perder-se num ciclo de autoindulgência, desigualdade e descontrolo, onde os interesses corporativos e financeiros (como os de Silicon Valley) se sobrepõem à ética pública e ao bem-estar comum. Trump e Putin, figuras populistas e de forte personalidade, podem ser vistos como líderes carismáticos, mas também como símbolos de uma política baseada em interesses próprios e manipulação da opinião pública, muitas vezes em detrimento da justiça social e do bem coletivo.

Putin e Trump são símbolos da maneira como o poder é exercido sobre as massas, muitas vezes de maneira espetacular, mas vazia e destrutiva. Os "espetáculos" políticos de figuras como Trump e Putin, ou mesmo a cultura da distração promovida por grandes corporações tecnológicas, de que Elon Musk é o arauto, podem ser comparados a lutas de gladiadores que, enquanto entretêm as massas, desviam a atenção dos verdadeiros problemas, como as questões de desigualdade social, crise ambiental e guerra geopolítica.

Além disso, o controlo da narrativa (algo que a tecnologia, particularmente as grandes plataformas, faz com maestria) pode ser uma forma moderna de “brincar com a morte”: não com a violência física explícita, mas com a violência simbólica, manipulando informações e criando divisões ideológicas que podem destruir sociedades internamente. Como o "pão e circo" da Antiga Roma, que serviu para controlar a percepção pública e desviar o olhar da exploração brutal de seres humanos, hoje a política da distração e o desinteresse por valores éticos promovem um caminho semelhante de decadência silenciosa.

Os ricaços da Silicon Valley, tal como os "senadores e imperadores romanos" num império decadente, acumulam riqueza e poder. A falta de escrúpulos e a busca pelo lucro são, assim como em Roma, os alicerces dessa nova classe dominante. Eles são, muitas vezes, tão desconectados da realidade quotidiana das pessoas comuns que se tornam como espectadores da tragédia social, sem perceberem que a fragilidade do sistema em que vivem é algo inevitável e perigoso.

Em Roma, o fim da República foi marcado pela ascensão de imperadores populistas, que corromperam a política para manter o poder. Hoje, vemos um processo semelhante, em que líderes carismáticos e populistas (como Trump e Putin) sabem que manipular as massas e fomentar a divisão pode fortalecer a sua base de apoio, as elites econômicas, beneficiando de um sistema injusto e desigual. O grande perigo dessa dinâmica é que, assim como em Roma, a falta de visão a longo prazo e a decadência interna podem levar à queda de um império, mesmo que a sua grandeza material continue visível. Os bárbaros (que para Trump são os imigrantes vindos do Sul) não precisavam de conquistar Washington com as suas "espadas", porque a própria corrupção interna se encarrega de fazer o trabalho.

O Ocidente, com os seus extravagantes exemplos de riqueza e poder, parece estar a caminho do fim: injustiça social, fragmentação política, agitação populista e desigualdade crescente. Estão criadas as condições para a autossabotagem. O que foi conquistado com tanto esforço ao longo de séculos pode ser desfeito num ápice, com todo o desrespeito dos valores humanos essenciais.

Há uma tensão no discurso político e académico, especialmente entre comentadores que se posicionam moralmente contra determinadas potências: uma retórica altamente normativa, mas com pouco pragmatismo ou visão estratégica. Por exemplo, certos comentadores ao repetirem que Israel “não tem legitimidade para se defender” por violar resoluções da ONU, pode até estar a sustentar uma posição juridicamente coerente dentro de um enquadramento estritamente legalista. No entanto, esse tipo de discurso, quando repetido sem proposta realista de resolução, ou sem considerar os imperativos de segurança dos atores envolvidos, pode resvalar para um moralismo estéril.

Há uma ânsia idealista por justiça total, mas frequentemente descolada das limitações reais do sistema internacional, onde o uso da força, a dissuasão e os interesses de Estado, moldam as decisões mais do que as normas jurídicas. Isto remete-nos para Raymond Aron ou Hans Morgenthau, que alertaram contra a ingenuidade moralista nas relações internacionais. Dizer que Israel não tem legitimidade para se defender do Irão, ignorando o programa nuclear iraniano, e os ataques por parte das suas “forças proxy” (procuradores), como o Hamas, o Hezbollah e os Houthis, que oferecem ao Irão vantagens estratégicas significativas, soa não apenas simplista, mas contraproducente.

Não valorizar suficientemente as razões de Israel após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, reflete uma linha interpretativa que, por vezes, se vê em académicos ou comentadores com posicionamentos ideológicos mais à esquerda ou anti-imperialistas, que tendem a criticar mais o lado ocidental ou os seus aliados tradicionais, e a ver com mais simpatia, ou pelo menos menor reprovação, atores considerados “contestatários” ou “anti hegemónicos”, mesmo que sejam governos autoritários como o da Rússia. O caso de Israel é um tema complexo e carregado de emoções. Muitos analistas -- que procuram desconstruir narrativas oficiais ou evitar discursos “mainstream” -- acabam por enfatizar as ilegalidades ou excessos israelitas, e minimizar ou relativizar a ameaça existencial que o Hamas representa para Israel. Isso pode ser uma escolha consciente para tentar denunciar desequilíbrios de poder, mas corre o risco de passar uma visão enviesada que não reconhece a complexidade da segurança israelita. Essas posições podem ser estruturais, mas também podem ser vistas como uma cegueira seletiva que não reconhece as agressões e crimes cometidos pelo Hamas.

Este é um problema clássico na análise política e académica: o risco do viés ideológico levar a uma análise parcial, onde se perde a imparcialidade e a consideração justa pelos factos e pelo sofrimento humano. Um académico que quer ser realmente rigoroso deve conseguir reconhecer os erros e razões dos vários lados, especialmente quando há uma escalada de violência e drama humano, como no conflito Israel-Hamas. E já agora, a guerra Rússia-Ucrânia. Esse é o problema clássico dos círculos académicos e intelectuais, especialmente quando a teoria se torna um fim em si mesma, uma espécie de jogo retórico onde o discurso é muito coerente dentro da própria lógica ideológica, mas que se desliga completamente da realidade prática e das consequências concretas. A “beleza” ou elegância das teorias pode ser muito sedutora, sobretudo numa esquerda crítica que procura denunciar injustiças e desigualdades, mas quando essas teorias não enfrentam o teste da prática -- a complexidade das situações, os dilemas morais, as dinâmicas reais dos atores envolvidos -- acabam por ser pouco úteis e até contraproducentes.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

A lição do Coliseu em Roma





O Coliseu é o epicentro de uma lição complexa: um símbolo de grandeza, mas também de declínio trágico. A ideia de que ele representa um marco da engenharia e do poder da civilização romana, ao mesmo tempo que foi palco de atrocidades humanas, expõe uma dissonância que precisamos entender. Os romanos foram capazes de construir um dos maiores anfiteatros do mundo, usando um conhecimento tecnológico e arquitetónico impressionante, algo que, mesmo em nossos dias, continua a ser admirado. O Coliseu é uma obra monumental, feita com recursos grandiosos e sofisticados, e seus mármores foram usados para erguer a magnificência da Igreja Católica, simbolizando o legado duradouro da civilização ocidental. Aqui, vemos uma síntese do talento humano, da engenharia, da arte e do poder militar que sustentaram um império que governou o mundo ocidental por séculos.

Mas essa grandiosidade não impede que o Coliseu também seja um monumento ao horror. A sua construção e os eventos que lá aconteceram estão intrinsecamente ligados à violência e ao sacrifício humano. O gladiador, símbolo da resistência e da brutalidade, era uma figura do sofrimento em nome do entretenimento popular. As batalhas sangrentas, as execuções públicas, os animais selvagens soltos para devorar seres humanos, tudo isso era parte de uma cultura de morte e espetáculo.

O Coliseu é todo uma lição: de como a grandeza romana levou à decadência. Aqui reside a contradição que se encontra na história do Coliseu e que poderia ser a grande lição para os estudantes: a mesma civilização que criou tais maravilhas arquitetónicas e alcançou grandes feitos tecnológicos foi a mesma que se desintegrou de dentro para fora, consumida pela excessiva busca por poder, por luxo, por distrações.

A decadência do Império Romano não aconteceu apenas por invasões externas, mas pela decadência interna da sua própria cultura. Ao buscar prazer excessivo no espetáculo da morte, a sociedade romana se afastou de valores fundamentais, como o sentido de coletividade, justiça e humildade. Eles construíram um mundo grandioso, mas à custa de valores humanos essenciais, e essa desconexão foi uma das razões da sua queda. Os bárbaros que invadiram Roma, embora analfabetos em grande parte, tinham uma visão mais simples, mais direta da vida, sem os sofismas da complexidade e da corrupção da elite romana. Eles não conheciam a esplendorosa arquitetura, mas tinham uma visão de sobrevivência que, em certo sentido, reflete uma forma de purificação.

A primeira lição para os estudantes seria perceber que grandeza e decadência andam frequentemente de mãos dadas. As sociedades que alcançam o auge do seu poder, como Roma, podem cair quando se afastam dos princípios essenciais que tornam uma sociedade sustentável e justa. O Coliseu, com a sua brutalidade, ensina que a civilização não pode ser baseada no espetáculo da morte e no abuso do poder. A grandeza sem uma fundamentação ética sólida pode ser efémera, e os valores mais essenciais precisam ser mantidos como fundamento de qualquer cultura que busque se perpetuar.

A segunda lição é que as grandes obras do passado, mesmo aquelas que parecem imponentes e duradouras, podem ser manchadas por atitudes monstruosas. O roubo do mármore do Coliseu para construir a catedral de São Pedro. Uma metáfora perfeita: a grandeza e a espiritualidade de um edifício cristão, erguido para a adoração de Deus, provém de algo que, em sua origem, foi um centro de violência e crueldade. Isso revela como grandezas humanas, quando mal fundamentadas, podem ser transmutadas. Mas a memória dos erros não desaparece.

Esta viagem metafórica ao Coliseu não só abriria aos alunos uma visão histórica, mas também os confrontaria com as verdades desconfortáveis sobre como o poder e o entretenimento podem corromper até as maiores civilizações. A grandeza é fugaz, e a moralidade deve ser constantemente reavaliada e preservada, porque a queda pode vir das decisões imorais, mesmo quando essas parecem não ter consequências imediatas. Desta forma, o olhar para a história nos ensina a não nos perdermos nas grandes construções, mas a mantermos a visão sobre o que realmente sustenta a civilização: a ética, a justiça e o respeito pela vida humana.

Jacques Monod



Jacques Monod é uma figura fascinante, seja pela sua importância científica, seja pela profundidade filosófica da sua obra. Vamos explorar três dimensões principais do seu pensamento, com destaque para o livro -- Le Hasard et la Nécessité (1970) -- uma das obras mais influentes do século XX na filosofia da biologia. Jacques Monod (1910–1976), bioquímico francês, foi um dos fundadores da biologia molecular moderna. Prémio Nobel em 1965 com François Jacob e André Lwoff pelos seus estudos sobre a regulação genética em bactérias, especialmente o modelo do operão (lac operon). Contribuição essencial: demonstrou que os genes são ativados ou silenciados por moléculas reguladoras, num verdadeiro “sistema de comutação”. Isso mostrou que a expressão génica depende de sinais externos, antecipando a ideia de que o genoma é interpretado pela Natureza, não simplesmente executado.

A mutação genética é mesmo aleatória (hasard), e não dirigida. As leis da física e da química é que são necessárias (nécessité). Necessidade no sentido filosófico, que é determinista. Numa tradução para vernáculo diria que é o que é viável, o que ter de ser. A evolução é cega, sem finalidade, sem sentido prévio. O ser humano surgiu como podia não ter surgido. Na escala cósmica a espécie humana obedece à mesma aleatoriedade de todas as outras espécies, milhões de espécies, cuja forma é circunstancial de acordo com leis deterministas e acasos evolutivos dos ecossistemas. Monod rejeita qualquer forma de teleologia (finalismo) na Natureza. Isso o leva a um tipo de existencialismo científico, próximo de Camus e Sartre. Num contraste entre Jacques Monod, Stephen Jay Gould e Richard Dawkins, três gigantes da biologia evolutiva, todos influenciados pelo darwinismo, podemos confrontar visões bem distintas sobre o papel do acaso, da necessidade, da finalidade e até da consciência humana.

Stephen Jay Gould (1941–2002) concordava com Monod quanto à aleatoriedade da evolução, mas dava um passo adiante com a sua ideia de contingência histórica: “Se rebobinássemos a fita da vida, e a puséssemos a correr de novo, o resultado seria completamente diferente.” O acaso age não só nas mutações, mas também nos eventos macroscópicos. No acaso cabem extinções em massa, colisões de asteroides, climas extremos. A vida evolui por saltos descontínuos (punctuated equilibrium), e não de forma suave e gradual. A evolução não tende à complexidade: a consciência humana poderia nunca ter surgido. Somos um entre milhões de possíveis caminhos. Gould não alinha na finalidade, no propósito, mas é muito mais histórico que Monod: ele insiste que a trajetória evolutiva não é única, mas é irrepetível. Podia ser diferente, mas nunca voltaria a ser da mesma maneira, se fosse repetida. Não é bem como uma biografia, mas como uma pluralidade de histórias possíveis de vida.

Richard Dawkins (n. 1941), por outro lado, vê a evolução como um processo altamente eficiente e acumulativo, conduzido por uma lógica quase de engenharia. A mutação para ele também é aleatória, mas a seleção natural é sistemática: como um algoritmo que descobre, testa e mantém as melhores adaptações. O verdadeiro protagonista não é o organismo, mas o gene: os corpos são “máquinas de sobrevivência” construídas pelos genes para se replicarem (O Gene Egoísta, 1976). Todas as suas ideias nesta altura já foram ultrapassadas pelos pontos de vista opostos. O gene não é egoísta. É cego. A forma, ou o fenótipo, fica por conta da epigenética. E a epigenética é a Natureza a trabalhar por fora dos genes.


quarta-feira, 18 de junho de 2025

Do dever da razão em Kant, à ironia da paixão em Hume


Kant era, tudo indica, uma pessoa extremamente metódica, pontual até à obsessão (dizem que os vizinhos acertavam os relógios quando ele passava para o seu passeio diário). Vivia com uma disciplina de tal modo mecânica que faria inveja a um relógio suíço. Era um génio, mas desses que talvez fosse mais suportável à distância, ou no papel, do que lado a lado a beber uma cerveja fresca com tremoços numa esplanada num fim de tarde de verão.

O filósofo Ernst Cassirer escreveu que a filosofia kantiana é como uma catedral gótica: complexa, rigorosa, imponente, mas com pouca margem para desvios ou leveza. Kant escrevia como pensava: com precisão, às vezes exasperante. E quem esteja habituado a raciocínios claros e à economia de linguagem, que a prática exige, é natural que a verbosidade labiríntica de Kant irrite um pouco. Esse desconforto é um sinal de maturidade intelectual de quem já passou pelo fascínio inicial e agora tem liberdade para rir, questionar, ou até se aborrecer com um autor canónico, sem o medo reverencial que tantos ainda mantêm. Afinal, a filosofia não é para ser lida de joelhos, mas com espírito crítico, mesmo que seja com a Crítica da Razão Prática na mão.

O imperativo categórico no seu estado mais inflexível é o exemplo que faz com que tantos leiam Kant com um misto de admiração e incredulidade. A sua ideia de que a moralidade não admite exceções, mesmo diante de uma vida em risco, é demasiado desumana. E talvez o seja mesmo, no sentido literal do termo: não humana. Para Kant, mentir é sempre errado, independentemente das consequências. Porque violaria a universalidade da lei moral. Mas isso, para nós, soa mais a uma moral ou uma ética do tribunal celestial, e não da vida real. É neste ponto que muitos se afastam de Kant, e se aproximam de um David Hume. As consequências contam e importam. É imperfeito? É!. Mas é demasiadamente humano. Schopenhauer, por exemplo, que não morria de amores por Kant, dizia que o sistema moral kantiano “parece ter sido feito para habitantes de Marte”. Diria que se fosse hoje, Kant não escaparia ao rótulo de autista, os tais que são génios a matemática e um zero a empatia. A pobreza nos tais neurónios espelho. Olhando retroativamente para figuras como Kant, Newton ou até Wittgenstein, alguns dos seus traços poderiam, no vocabulário contemporâneo, encaixar em espectros do neurodesenvolvimento, como o autismo.

No caso de Kant, o comportamento obsessivamente rotineiro, a dificuldade de estabelecer relações interpessoais profundas, a rigidez moral extrema e a notória ausência de afeto empático nas suas formulações éticas, tudo isso compõe um perfil que hoje poderia levantar sobrancelhas entre neurologistas ou psicólogos clínicos. Claro que é sempre anacrónico aplicar rótulos modernos a figuras históricas. Mas é fascinante pensar que a pobreza nos neurónios-espelho possa ter sido justamente a condição que permitiu a Kant construir aquele edifício ético monumental, assente num princípio tão frio quanto inabalável: o dever pelo dever.

David Hume parece ter tido uma humanidade muito mais calorosa, mais próxima da vida real. Apesar de cético e, por vezes, mordaz, tinha um sentido de humor notável, uma escrita fluída, e um olhar filosófico que não excluía as paixões. Antes as colocava no centro da ação humana. “A razão é, e deve ser apenas, escrava das paixões” -- dizia ele, com um sorriso que Kant talvez nunca tenha esboçado. É irónico que Kant, ao reconhecer que Hume o despertou do sono dogmático, tenha depois rejeitado tão prontamente a premissa afetiva do escocês. Como se dissesse: obrigado pelo despertador, agora vou tirar todas as emoções da equação. Hume tinha o que hoje poderíamos chamar de inteligência emocional avant la lettre. Ele percebia que o ser humano é uma criatura de hábitos, de afetos, de simpatias, e que a moralidade nasce muito mais dessa sociabilidade natural do que de qualquer dedução racional a priori, como se fosse matemática. Por isso, a ética de David Hume soa mais a terapêutica médica. Atenta ao contexto, à fragilidade, às circunstâncias. "Em medicina nem sempre nem nunca, cada caso é um caso" = é uma máxima de sabedoria prática que poderia muito bem ser aplicada a toda a ética. 

Mas vá lá, juntemos Kant a Hume, expurgando-os do extremismo de cada um, e quase que conseguimos uma terapêutica filosófica. Uma espécie de medicina moral do espírito. De um lado, a precisão rigorosa de Kant, que garante a integridade do princípio. Do outro, a sensibilidade de Hume, que lembra que cada paciente tem nome, história, dor própria. E que o mesmo tratamento não serve para todos. Hegel recomendava levar os opostos ao extremo para depois conciliá-los num ponto superior. Uma ética dialética, que nem se afunda no relativismo emocional, nem se congela no formalismo vazio. É curioso pensar que talvez a medicina seja, na prática, a arte de resolver dilemas morais sem dizer que são dilemas. O médico decide, mas raramente com fórmulas. Julga, intui, escuta. E nisso, talvez, esteja mais próximo de Aristóteles, com a sua phronesis, a prudência do caso concreto. 

Hume escreve algo como: “Depois de tanta especulação filosófica infrutífera, saio para jantar, conversar com os amigos, ou jogar uma partida de gamão.” É um verdadeiro elogio da vida contra o peso do pensamento excessivo. É como se dissesse: a razão não me resolve tudo, mas a vida continua, e isso já é um consolo. Esse momento em que ele "empanca" na busca do "eu", e se dá conta de que tudo o que encontra em si são percepções e sensações, sem nunca topar com um "núcleo" fixo. É um dos pontos altos da filosofia moderna. Em vez de forçar uma solução, como tantos outros, ele admite o abismo. E depois vai viver. Esse gesto é radical e sereno ao mesmo tempo. É um convite à humildade intelectual, ao reconhecimento de que nem tudo pode (ou deve) ser resolvido pelo pensamento. E talvez por isso Hume ainda fascine: porque ele nos olha sem pretensões, sem dogmas, sem querer ser um profeta da razão — algo raro entre filósofos.

Portugal, fortemente enraizado no tom moralizante católico e no legado escolástico jesuítico, manteve durante muito tempo uma certa reserva face à cultura anglo-saxónica, que misturava empirismo, liberdade intelectual e uma quase heresia suave, disfarçada de bom senso. Até mesmo figuras como Stuart Mill ou Bertrand Russell demoraram a entrar com força no meio lusófono. Enquanto Kant e os alemães, mais "solenes", pareciam mais adequados a uma cultura onde a metafísica e o dever tinham peso de altar.

Essa decisão de não ir à procura da doença, de não antecipar o sofrimento, mas deixar que ela chegue se e quando tiver de chegar, é o reconhecimento sereno dos limites da vida e, sobretudo, da dignidade do deixar estar. Em vez da obsessão moderna de "antecipar tudo", é melhor aceitar a incerteza e viver com uma clareza rara: quando vier, que venha ter comigo. David Hume quando morreu, em 1776, escreveu cartas bem-humoradas e lúcidas, sem medo, sem súplica, apenas com um certo gosto pela compostura, pelo que ainda restava de prazer na vida. Nunca precisou de promessas do além. Bastava-lhe saber que viveu com inteligência, com sensibilidade e com ironia.


Do genótipo ao fenótipo = Um Mistério


Um dos mistérios da vida é como a natureza faz a passagem dos códigos de ADN para a fenomenologia do fenótipo. Mistério? Essa questão toca num dos grandes enigmas da biologia e da filosofia da ciência: como o genótipo (ADN) se traduz no fenótipo = a expressão visível, funcional e comportamental do organismo. É um processo chamado de expressão génica, mas por trás dessa aparente clareza técnica, há um abismo de complexidade que muitos pensadores e cientistas reconhecem como um verdadeiro "mistério".

O percurso do ADN até ao fenótipo envolve várias etapas bem descritas, mas ainda não completamente compreendidas em sua totalidade. Transcrição: o ADN é transcrito em ARN (RNA). Tradução: o ARN é traduzido em proteínas, que são os "blocos de construção" das células. Depois as proteínas interagem entre si e com o ambiente celular para construir tecidos, órgãos, funções fisiológicas. Mas esse esquema linear é enganadoramente simples. O verdadeiro mistério está na coordenação e regulação, isto é, quem “decide” o quê, quando e onde. Hoje sabemos que o ADN por si só não determina tudo. Entra aí a epigenética, que estuda os marcadores químicos que ativam ou desativam genes sem mudar a sequência do ADN.

O fenótipo emerge de um diálogo entre o ADN e o mundo. E isso remete à velha ideia aristotélica da forma e da matéria: a forma não está completamente "dada" no código genético, mas se atualiza num processo complexo. É a fenomenologia do organismo. Francisco Varela, Maurice Merleau-Ponty, ou mais recentemente Evan Thompson, defendem que a vida não pode ser totalmente explicada por instruções codificadas no ADN. O organismo é um potentado de auto-organização. Responde ao ambiente de forma criativa. Constrói significado corporalmente. Isso leva à noção de que o fenótipo não é simplesmente "causado" pelo ADN, mas emerge de um sistema dinâmico, histórico e relacional. É aquela síntese que diz que o todo é mais do que a soma das partes.

Mesmo com toda a informação genética conhecida pela codificação do genoma humano, não se consegue prever com previsão como vai ser o fenótipo. Isto é, não se consegue dizer exatamente como será um ser vivo só com base no seu ADN. Isso é comparável à música escrita numa partitura: saber ler a partitura não é o mesmo que ouvir a interpretação ao vivo, que depende do instrumento, do ambiente e da subjetividade do intérprete. Em última análise, a construção do ser vivo através da leitura do código genético -- qual cozinheira que lê a receita para cozinhar um bolo -- e ainda por cima uma presença viva, continua a ser um dos pontos onde a ciência tropeça no mistério.

Para Francisco Varela (1946–2001), "A biologia não pode ser reduzida a um jogo de instruções genéticas. O organismo é uma unidade autopoiética, que se produz a si mesmo em constante interação com o seu meio." E segundo Stuart Kauffman "A vida emerge da ordem auto-organizada. O ADN é uma condição, não uma causa suficiente." A vida tem propriedades emergentes. As proteínas, por exemplo, dobram-se em formas complexas que não são codificadas diretamente pelos genes. São as próprias proteínas que se mexem e “descobrem” a sua forma. Já Jacques Monod (1910–1976) - Prémio Nobel da biologia, e autor de O Acaso e a Necessidade - dizia que "O código genético é como uma linguagem: uma estrutura arbitrária e sem significado em si próprio, fora do contexto celular. Haverá ou não um intérprete, eis a questão". É a Natureza. Mesmo na biologia molecular, reconhece-se que há uma semântica, um contexto próprio, que transcende o código.

O que estes pensadores, cada um à sua maneira, afirmam é que não existe uma correspondência linear entre os genes e o fenótipo. O ADN é uma condição de possibilidade, mas não um programa determinista. É como se a Natureza operasse com uma gramática viva, na qual a mensagem final só ganha forma no corpo encarnado, em interação com o meio. É a História ou o Acaso. O percurso do genótipo ao fenótipo é um processo. Quem escreveu a receita? A Natureza! Quem lê a receita? A Natureza! Quem constrói o organismo? A Natureza! Não é uma transcrição, mas uma transformação. A biologia contemporânea e a filosofia do corpo caminham juntas para mostrar que a vida é um campo de significados emergentes, onde o ADN é apenas uma das vozes num canto coral de relações. Tal como uma partitura não produz por si uma sinfonia, o código genético precisa de um palco (o mundo). De um tempo. Um corpo que se torna vivo. É o mundo da vida. Neste sentido, o mistério não é um sinal de ignorância, mas de profundidade. É aquilo que não se esgota em explicações, mas que convida à contemplação e ao respeito pelo que é vivo.