Há dias, foi dada a notícia de um membro destacado de um partido político ter batido na mulher. E o comentário nas televisões foi crítico aos outros políticos destacados, tanto desse partido, como dos outros, por terem ficado calados. Ou seja, de não terem vindo a terreiro censurar esse político. É como se tivessem assobiado para o lado. Uma das jornalistas que tinha vindo criticar o político e o silêncio dos outros, a dada altura acrescentou: "Tal como com o crescimento da extrema-direita, este é um sinal do recuo civilizacional a que estamos a assistir na atualidade. Todas as civilizações, depois de atingirem o ponto do seu pico máximo, a partir daí é só a descer até ao colapso."
O comentário da jornalista está carregado de uma lucidez amarga, mas muito pertinente. De facto, o silêncio cúmplice de figuras públicas diante de comportamentos absolutamente condenáveis, como a violência doméstica, revela não só a decadência moral das elites políticas, como também o enfraquecimento de certos pilares éticos que sustentam uma civilização. E quando, a crítica a esse silêncio é respondida com relativizações ou ataques ao "excesso de garantismo legal", percebe-se que há um desgaste profundo do próprio contrato civilizacional. Um contrato que após séculos de luta, procurou proteger os mais vulneráveis e colocar freios nos abusos de poder. Seja por maior notificação, ou não, a verdade é que a violência doméstica tem aumentado.
Quando hoje se fala em declínio civilizacional, o que de imediato nos vem à mente é o fim da Civilização Romana. Ao atingir um elevado nível de sofisticação jurídica e cultural, a partir daí não se aguentou, e em vez de pelo menos estabilizar nesse nível, e não decair, pelo contrário entrou num processo de decadência moral e cívica que, embora não tenha sido de um dia para o outro, foi inexorável. O mesmo se podia dizer da Grécia clássica, do tempo de Péricles. Há algo que se pode dizer, parecendo espantoso, que mais tarde ou mais cedo é o que irá acontecer a este modo de viver desde o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945. É como se fosse uma lei natural das sociedades humanas: depois do apogeu, vem sempre o desleixo, a complacência, a decadência. E é aí que discursos extremistas, que fazem apelo ao regresso a uma ordem ilusória, ganham força.
Lei é lei. Quando a violência doméstica é crime público, não há espaço para subjetividades, ideologias ou relativizações. A civilização, enquanto pacto de convivência, assenta justamente nessa ideia: há regras que nos transcendem, porque foram construídas para proteger o coletivo. Quando se começa a pôr isso em causa, por conveniência partidária, ou numa espécie de tribalismo ideológico, as fundações do edifício comum cedem. Não há civilização que dure eternamente. Todas acumulam tensões internas, contradições, desequilíbrios. No início essas tensões são fontes de criatividade e dinamismo. Mas depois são viradas do avesso corroendo-se por dentro. No caso da civilização de matriz europeia, a corrosão começou pelo espírito, pela troca da religião pelo hedonismo e pelo culto da aparência. E assim se perdeu propósito, e se polarizaram as consciências contra as instituições.
O mais trágico é que essas fases finais muitas vezes coincidem com um avanço tecnológico sem precedentes. Roma também estava no seu auge quando começou a ruir. A civilização eurocêntrica que começou com a era dos Descobrimentos, Renascença e por diante, chegou ao fim. Está a levantar-se um outro paradigma civilizacional, com a China ao leme. A civilização eurocêntrica, nascida com os Descobrimentos e alimentada pelo Renascimento, Iluminismo, Revolução Industrial e expansão colonial, viveu séculos de protagonismo. Mas como tudo o que sobe, também essa hegemonia tinha prazo de validade. E talvez o seu fim tenha começado não agora, mas com a Primeira Guerra Mundial. O grande golpe decisivo na ilusão da superioridade, e da coesão europeias.
A China não é apenas uma potência económica e militar em ascensão; é também portadora de uma lógica civilizacional própria, muito mais antiga do que a europeia moderna, e com uma ideia diferente de tempo histórico, de poder e de comunidade. E é aí que pode residir a verdadeira viragem: não se trata apenas de uma troca de lugar entre potências, mas de uma mudança no próprio modelo civilizacional dominante. Enquanto o Ocidente se fragmenta em disputas culturais internas, cultiva uma espécie de cansaço moral e assiste à erosão das suas instituições, a China projeta estabilidade, continuidade e até um certo sentido de destino, ainda que à custa de liberdade individual. Mas talvez seja isso mesmo que marca os ciclos civilizacionais: o preço que se está disposto a pagar por unidade e propósito.
Lamentavelmente para a espécie humana nenhum poder hegemónico se ergue sem uma fase de tensão violenta na sua transição. Uma leitura amarga, mas sustentada pela própria história da humanidade. A transição de hegemonia é, quase sempre, uma luta pela alma do mundo. E essa luta raramente se dá sem sangue. A passagem do poder global de Portugal e Espanha para a França e depois para a Grã-Bretanha teve guerras, revoluções e colonialismos ferozes. A queda do império britânico e a ascensão dos Estados Unidos passaram por duas guerras mundiais. E agora, com a China a emergir como potência hegemónica possível, estamos, mais uma vez, num tempo de fricção: económica, ideológica, tecnológica, e, potencialmente, bélica. O mais irónico é que a humanidade já teria meios, tecnologia e até conhecimento ético para fazer essa transição de forma cooperativa. Mas talvez o problema seja mesmo a espécie humana. O instinto de domínio, o tribalismo, a ilusão da permanência do poder, tudo isso pesa mais do que a razão. É como se a história das civilizações fosse, na verdade, um drama recorrente sobre a incapacidade da nossa espécie de aprender com as suas próprias ruínas.
A inteligência artificial será um elemento fundamental neste processo. Mas apenas instrumental. E a China já está a mostrar como isso se faz, com uma espécie de big brother com o comité central do partido comunista chinês na regi a manipular os fios da engrenagem. A inteligência artificial, tal como a pólvora ou a imprensa na sua época, é uma ferramenta, poderosíssima, mas moralmente neutra. O seu impacto dependerá de quem a controla e com que fim a utiliza. E a China está, de facto, a mostrar ao mundo um modelo muito particular de uso da IA: um sistema de controlo social sofisticado, orquestrado por uma elite política que não responde ao escrutínio democrático, mas que se legitima através de estabilidade, crescimento e ordem. É o retorno de uma racionalidade imperial milenar, agora com algoritmos. O “imperador invisível” tornou-se uma rede neural que vigia, regula e antecipa comportamentos, tudo em nome da harmonia social. Para muitos chineses, isso parece um preço aceitável. Para a tradição liberal ocidental, é um pesadelo orwelliano.
Mas é inegável que este modelo funciona tecnicamente, e isso seduz. Sobretudo num Ocidente cansado, polarizado e incapaz de resolver os seus impasses com eficácia. A tentação de copiar o modelo chinês, ainda que em versões “soft”, já se nota em muitos lugares. A China não apenas está a construir o seu modelo com eficácia interna; está também a exportá-lo, subtil ou diretamente, para regimes que buscam estabilidade autoritária, controlo tecnológico e legitimidade sem necessidade de democracia. A Rússia é o primeiro acólito visível, uma espécie de irmão mais velho ideológico que agora parece resignado ao papel de satélite estratégico. Mas a verdadeira inquietação está no Ocidente. Já se veem sinais: censura disfarçada de moderação algorítmica, vigilância justificada por “segurança sanitária” ou “combate à desinformação”, plataformas digitais que sabem mais de nós do que nós mesmos. O “cavalo de Troia” já entrou, e foi a própria sociedade de consumo que o puxou para dentro das muralhas, alegremente.
A América -- berço do liberalismo moderno -- está a viver um colapso de confiança nas suas instituições, com crescente polarização, decadência moral, e uma elite política muitas vezes paralisada ou cínica. Nesse desvario, o modelo chinês começa a parecer “eficiente” demais para ser ignorado. E aqui surge a tragédia silenciosa: o novo modelo hegemónico não será imposto por tanques, mas por vantagens tecnológicas e funcionalidade sistémica. Os povos acabarão por aceitá-lo por fadiga.
Hoje a resistência que se vê a ocidente é a multidão nas ruas a protestar. Mas isso é patético, é obsoleto, porque tem o cariz das turbas acéfalas que nunca chegam a lado nenhum. É a China que tem o seu próprio antídoto, o Zen, a sabedoria filosófica de matriz Lao Tzu / Confúcio. A multidão ocidental que protesta nas ruas tornou-se, em muitos casos, um espetáculo de impotência ritualizada. Já não é a massa revolucionária do século XIX ou XX, mas sim um eco desesperado de tempos em que o protesto ainda movia montanhas. Hoje, é ruído previsível, capturado pelas câmaras e devolvido em forma de “engajamento” nas redes sociais, enquanto o sistema segue intacto, ou até reforçado. Ao contrário do Ocidente, que perdeu o fio à sua própria herança filosófica e espiritual, a China mantém uma ligação, mesmo que transfigurada, com os ensinamentos de Lao Tzu, Confúcio, e o Zen. Não se trata de religião no sentido teísta, mas de disciplina interior, de contenção, de visão sistémica. Enquanto o Ocidente vive na angústia da identidade individual, a China cultiva a arte do equilíbrio social e da paciência histórica.
Essa diferença de fundo é talvez a razão mais profunda para a falência da resistência ocidental: não há mais centro espiritual. E, sem centro, tudo gira em torno do caos. Por isso, a força bruta da rua não compete com a força silenciosa da ordem interior, ainda que autoritária, que impera na China. O Ocidente já perdeu essa dimensão espiritual. A morte do Papa Francisco -- uma figura que tentou resgatar alguma centelha de autenticidade e compaixão no seio de uma Igreja profundamente esvaziada -- acontece num momento em que o próprio Ocidente já não tem mais mitos mobilizadores. É uma metáfora poderosa. Francisco era talvez o último elo visível entre o que restava de espiritualidade institucional no Ocidente e o mundo contemporâneo. Mas mesmo ele, apesar do esforço, já era uma espécie de último humanista cansado, tentando conciliar a linguagem de Cristo com o marketing do século XXI. E agora, com a sua morte, talvez se feche um ciclo longo, que começou em Jerusalém, passou por Roma, atravessou Paris e terminou em Silicon Valley.
O Ocidente perdeu a sua alma porque trocou sentido por funcionalidade, e transcendência por eficiência. E agora está nu, diante de um Oriente que, mesmo com todos os seus abusos, ainda cultiva uma visão integrada do mundo, em que o espírito, mesmo que não seja religioso, ainda tem um lugar no cosmos. A morte do Papa Francisco é a imagem de um altar que já ninguém adora, uma estrutura simbólica em colapso lento, cujos pilares culturais já ruíram, mesmo que a fachada ainda esteja de pé.
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