segunda-feira, 16 de junho de 2025

Sentimento de impunidade


A violência no espaço público, como sinal de impunidade, não é nova, mas hoje ela ocorre num contexto de Estados de Direito formalmente consolidados. Isso gera um paradoxo. Quando o sistema democrático falha em mostrar autoridade justa e eficaz, abre-se espaço para a violência, e para a exigência de autoritarismo “justo” como resposta.

O sentimento de impunidade e da violência incendiária no espaço público tem vindo a aumentar. Vamos focar-nos em países ocidentais democráticos, entre 2019 e 2024, onde se verificaram episódios emblemáticos. França – Revoltas nos subúrbios (2023). Após a morte de Nahel Merzouk, um jovem de 17 anos abatido por um polícia em Nanterre (subúrbio de Paris), eclodiram revoltas urbanas em grande escala, onde foram incendiados milhares de carros. Ataques a esquadras, autarquias, escolas e transportes. Saques organizados. Foi o resultado de ressentimento acumulado em bairros marginalizados, onde muitos jovens sentem que vivem num “Estado paralelo”. Abandonados, vigiados, e sem perspectiva de ascensão social. A rápida libertação de muitos detidos, aliada à cobertura mediática que dava conta de uma débil condenação pouco clara da violência, levou muitos franceses a dizer que o Estado estava “de joelhos”.

Nos Estados Unidos os Protestos Black Lives Matter (2020), após o assassinato de George Floyd, levaram para as ruas milhões de americanos a protestar. Em várias cidades surgiram grupos que incendiaram esquadras de polícia, como em Minneapolis. Destruíram estabelecimentos comerciais, praticaram pilhagens em larga escala em Los Angeles, Nova Iorque e Chicago. Em resposta, algumas autarquias em vez de aumentar, diminuíram, o financiamento das polícias com o slogan "defund the police". Vários procuradores locais optaram por não acusar autores de delitos menores, o que reforçou a percepção de permissividade e impunidade.

No Chile, foram os protestos de 2019, onde houve incêndios no metro de Santiago. Embora não tão mediático na Europa, o Chile teve manifestações intensas contra a desigualdade e o sistema neoliberal herdado da ditadura. Mais de 80 estações de metro foram incendiadas em poucas horas. O vandalismo tornou-se um símbolo de revolta considerada “justa” por parte da população. A Constituição foi posteriormente reformulada, mas a destruição maciça, e a quase ausência de condenações efetivas, deixou marcas no tecido social chileno.

Em Portugal, comparativamente, os casos são menos extremos, mas os sinais começam a ser agora preocupantes. Embora sem os níveis de violência de outros países, Portugal tem registado crescente número de agressões a polícias. Casos de desobediência civil tolerada em protestos climáticos, dado o sentimento crescente de inação penal com crimes de menor gravidade que são arquivados rapidamente. A indignação das pessoas vai crescendo, que se estende também ao corpo das 
forças de segurança, pois a justiça “não dá seguimento” a muitos casos.

Desde a Revolução Francesa, em 1789, e depois da Primavera dos Povos, em 1848, passou a ser comum o uso da violência como forma legítima de expressão política. Na ausência de sufrágio universal e justiça imparcial, as massas recorriam à insurreição. Mas a repressão também era violenta, que acabava por gerar mártires e novo ressentimento. A diferença, é que nos dias de hoje se trata de democracias em que há o sufrágio universal, e em que as instituições são estáveis, com cooperação entre os vários níveis do poder. Noutros tempos era o último recurso.

No Período de Weimar, na Alemanha dos anos 20 e 30, por via de a Alemanha ter perdido a Primeira Guerra Mundial, seguida da crise financeira que rebentou na América em 1929, a descrença no sistema democrático foi como hoje, ou ainda pior, em que as instituições se encontravam numa situação lamentavelmente precária. Isso deu azo a que a violência se normalizasse. Nas ruas eram montadas barricadas em que os principais contendores eram os fascistas contra os comunistas de filiação bolchevista. Os assassinatos políticos proliferaram, sendo o caso de Walther Rathenau o que provocou maior indignação. Deu-se a subversão das forças de segurança por milícias paramilitares. O resultado foi o que é conhecido de todos: a proliferação do fascismo na forma de nazismo, com a ascensão de Hitler ao poder em nome da "ordem".

Depois vieram os anos 60 e 70 com protestos crescentes contra o capitalismo e a ordem burguesa: Maio de 68 em Paris; movimentos autonomistas em Itália e Alemanha, nos anos 70; Grupos como as Brigadas Vermelhas e a RAF (Baader-Meinhof). Todos estes grupos recorreram a atentados violentos enquadrados num tipo de ideologia radical. Os Estados responderam com endurecimento das leis que legitimaram uma maior repressão. O Estado de Direito não colapsou, porque o reforço das forças de segurança acabou por ser muito eficaz.

O breve relato desses casos que marcaram os meados do século XX, mostra que onde o Estado foi passivo, perdeu legitimidade e controlo da situação. Onde o Estado foi opressivo e agressivo, conseguiu controlar a situação, mas ficou com a fama de ter perdido a moral. Onde o Estado foi firme, mas justo, capitalizou respeito junto dos seus cidadãos.

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