Eduardo Gajeiro Imortalizou alguns dos momentos históricos do 25 de Abril que o consagraram como um dos maiores fotógrafos portugueses do século XX. Uma das suas fotografias mais icónicas mostra um soldado a tirar da parede a fotografia de Salazar, o ditador português. Um símbolo da mudança. Disse várias vezes que esse foi o dia mais feliz da sua vida.
Eduardo Gajeiro morreu aos 90 anos, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa. Nasceu em Sacavém em Fevereiro de 1935 e, com apenas 12 anos, publicou no Diário de Notícias, com honras de primeira página, a sua primeira fotografia. Foi em 1957 que começou a sua atividade de repórter fotográfico no Diário Ilustrado. Além deste, foi fotógrafo do O Século Ilustrado, Match Magazine, editor da revista Sábado, trabalhou na Associated Press (Portugal), Companhia Nacional de Bailado, Assembleia da República, Presidência da República, para a Deustche Gramophone – Alemanha, Yamaha – Japão e para a Cartier. «Soube do golpe através de amigos, que me ligaram a dizer: ‘Agora é que é. Anda para o Terreiro do Paço. Traz os rolos todos’. E eu fui. Mas chego lá e há um soldado que me diz ‘Não pode passar’. E eu com uma grande lata: ‘Faz favor leve-me ao comandante que eu sou amigo dele’. Eu não era amigo do comandante, nem sequer sabia quem ele era. Então o soldado, ingenuamente, diz a um colega: ‘Leva este senhor ao comandante’. Chego lá e apresento-me. E o gajo: ‘Salgueiro Maia’. Acredite ou não, sob a minha palavra de honra, o gajo conhecia-me, por causa das capas que eu fazia para O Século Ilustrado. ‘Pode vir comigo’», lembrou em 2014, referindo-se ao dia da Revolução dos Cravos.
Durante a sua longa carreira, fotografou em mais de 70
países, até em ditaduras: Iraque, Cuba, União Soviética, China, Israel.
Terminou sendo freelancer e nunca deixou a sua imagem de marca: o preto e
branco. «É mais direto, mais dramático. Também gosto porque eu é que revelo os
rolos e amplio as fotografias. Estou ali todo – desde o disparo até ao fim.
Dá-me um prazer que não queira saber», partilhou com o nosso jornal.
Durante a ditadura, captou, através da sua lente, as condições precárias em que vivia grande parte da população portuguesa, tendo sido várias vezes preso pela PIDE. Antes de ser fotógrafo, quando trabalhava na Fábrica de Loiça de Sacavém, entre 1947 e 1957, tinha sempre fotografias na gaveta que coloria à mão.
António de Oliveira Salazar (1889–1970) - é o ditador austero que está no retrato encaixilhado e que Gajeiro captou no momento em que o soldado o retira da parede. Vamos com desassombro, sem o folclore saudosista, mas também sem caricatura do ditador mais longo da Europa do século XX, dissecá-lo como se estivéssemos numa aula da Anatomia Descritiva num Teatro Anatómico de uma Escola de Medicina. Morreu pobre. Maria, a criada de toda a vida, quase teve de pagar-lhe o funeral. Comparável a Mujica nesse aspecto. Governava com contenção quase ascética, e desprezava a ostentação do poder. Era de uma competência financeira a toda a prova. Como ministro das Finanças (1928–32), estabilizou as contas públicas num país falido. Teve o mérito de criar uma máquina orçamental funcional, transparente, com superavits constantes. Portanto, com uma competência financeira assinalável.
Após o caos da I República (1910–1926), Salazar ofereceu a muitos portugueses um regime previsível e livre de uma deriva para a possibilidade de uma guerra civil. Foi isto que lhe deu o apoio tácito de parte da população durante décadas. A contrapartida resultou numa ditadura sem liberdades civis. Salazar não era neutro — criou e manteve uma repressão política sistemática, com censura, polícia política (PIDE), prisões arbitrárias e tortura. Silenciou todas as formas de oposição. Enquanto o mundo se descolonizava, Salazar acreditava num império eterno. Ignorou os sinais do tempo e arrastou o país para uma guerra colonial sem sentido. Além disso, Portugal chegou aos anos 1960 com níveis de analfabetismo, pobreza rural e atraso estrutural brutais. A sua fé católica ultramontana sufocava a vida intelectual e cultural. O país permaneceu fechado, com forte controlo da moral e dos costumes.
Para os seus adversários políticos mais convictos -- como o Partido Comunista Português (PCP) -- Salazar foi um monstro. Mas para a maioria do povo dessa época nem tanto. Mas foi um homem dotado de disciplina moral e capacidade técnica, mas profundamente autoritário, paralisante e cruel no efeito social da sua visão de mundo. A sua má fama é justificada pela repressão e pelo atraso em que mergulhou Portugal, apesar de que o seu estilo pessoal, austero e incorruptível, distingue-o positivamente de muitos tiranos. É legítimo que haja saudosismo entre os que apenas viram “ordem”, mas a honestidade intelectual exige ver a escuridão do regime que criou.
Adriano Moreira, o conservador ilustrado, Ministro do Ultramar de Salazar (1961-63), tentou uma reforma progressista do império em plena guerra colonial: escolas para os indígenas, formação de quadros locais, substituição da doutrina racial pelo “luso-tropicalismo”. Era um homem culto, cristão, com formação jurídica e filosófica, e com uma visão mais moderna do que o regime permitia. No pós-25 de Abril, tornou-se figura respeitada da democracia, deputado pelo CDS, presidente da Academia das Ciências, uma referência ética e intelectual. Moreira nunca renegou a sua passagem pelo regime, mas também nunca o endeusou. É a figura do conselheiro no império que pressente a ruína, e tenta humanizá-la.
Veiga Simão, o reformador modernizador, Ministro da Educação de Marcelo Caetano (1968-74), foi responsável pela expansão do ensino técnico, das universidades e do acesso das mulheres ao ensino superior. Ele antecipou parte da modernização que a democracia viria a concretizar — mas num regime que limitava a liberdade de expressão e organização estudantil. Após 1974, serviu como embaixador e deputado pelo PS. Nunca foi hostilizado como “salazarista”. Um tecnocrata iluminado que serviu uma ditadura em nome do progresso. A sua ação é difícil de condenar, mesmo que o sistema que a acolhia seja condenável.
O que isto revela sobre Salazar e o regime? Que o regime não era monolítico. Havia dentro dele gente com boa fé, talento e espírito reformador. Mas também que o topo do sistema (Salazar) tinha uma visão inegociável da autoridade e uma profunda desconfiança da modernização política. Os casos de Moreira e Veiga Simão mostram que havia um Portugal possível dentro do impossível, que só se revelou plenamente depois de 1974. Quando se analisa Salazar e a sua época com honestidade intelectual, vemos que havia homens virtuosos a servir um sistema viciado. Havia reformas com boas intenções que foram engolidas pelo peso de uma visão autoritária do mundo. E havia, sobretudo, uma elite intelectual dividida entre a prudência e a resignação. É por isso que Salazar não pode ser avaliado apenas pela régua da repressão ou do estoicismo. O que fez dos seus colaboradores homens respeitados na democracia não foi o regime que os acolheu, mas a fibra pessoal com que agiram apesar dele.
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