segunda-feira, 2 de junho de 2025
O descalabro no Serviço Nacional de Saúde
Um dos maiores obstáculos ao debate sério sobre a saúde em Portugal é a persistência de certos preconceitos ideológicos, sobretudo por parte de setores da esquerda tradicional. Entre os mais nocivos está a recusa em aceitar qualquer papel relevante para os privados na prestação de cuidados de saúde, como se isso representasse uma traição ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Esta visão, além de ultrapassada, está hoje em clara dissonância com a realidade concreta vivida pela maioria dos cidadãos.
O ideal do SNS, tal como foi concebido – universal, tendencialmente gratuito e de elevada qualidade – continua a ser um pilar da democracia e da coesão social. Porém, a fidelidade a esse ideal não pode transformar-se numa religião política, que ignora os factos: o SNS está em crise profunda, incapaz de responder às necessidades reais da população. Listas de espera intermináveis, falta de médicos e profissionais de saúde, serviços sobrecarregados e infraestruturas degradadas são o quotidiano de milhares de utentes. O resultado é uma migração crescente para o setor privado, muitas vezes por pura necessidade, não por luxo.
É aqui que o preconceito se torna perverso. Ao rejeitar liminarmente a colaboração com o setor privado – mesmo quando regulado, fiscalizado e integrado num sistema misto ao serviço do bem comum – os ideólogos da pureza estatal estão, na prática, a sacrificar os mais vulneráveis. Quem pode, paga. Quem não pode, espera. Quem sofre, cala. É preciso deixar bem claro: aceitar o papel complementar dos privados não significa privatizar o SNS. Significa reconhecer que o bem público pode ser servido por diferentes meios, desde que haja supervisão e justiça no acesso. Um Estado inteligente regula, coordena e integra, não exclui por dogma. Já não estamos em 1975. A saúde não pode ser refém de slogans. A ideologia que recusa o setor privado por princípio está hoje tão distante da realidade como aqueles que, no outro extremo, sonham com a mercantilização total da saúde. Ambos os extremos ignoram o essencial: as pessoas precisam de soluções eficazes, dignas e humanas, não de fidelidades cegas a narrativas ideológicas.
Se o Estado já não tem meios para garantir, sozinho, o acesso célere e eficaz aos cuidados de saúde, então deve, com humildade e responsabilidade, abrir espaço à colaboração. Desde que sob regras claras, com justiça social e foco no cidadão, não há nada de errado em complementar o SNS com respostas privadas. O errado é continuar a fingir que o modelo atual funciona, quando já não funciona. Muitos portugueses recorrem ao setor privado não por preferência, mas por desespero. Quem pode pagar, recorre. Quem não pode, espera. E quem espera, desespera. Perante isto, insistir numa demonização automática do setor privado é não só contraproducente, como cruel.
Há um equívoco perigoso neste debate: confundir o papel do Estado com a exclusividade da sua ação direta. Um Estado moderno não tem de prestar todos os serviços diretamente, mas tem a responsabilidade de garantir que todos os cidadãos, sem exceção, tenham acesso aos cuidados de que precisam. Isso pode e deve incluir a colaboração com entidades privadas ou do setor social, desde que tal beneficie o utente.
Não se trata de abdicar do SNS, mas de o salvar da paralisia. Negar qualquer papel ao privado, por preconceito ideológico, é perpetuar um sistema que já não funciona como devia. A ideologia não pode continuar a ser uma cortina de fumo para esconder falhas reais. E os cidadãos não podem continuar a ser vítimas de uma fidelidade abstrata a um modelo que já não garante, por si só, aquilo que promete.
O Serviço Nacional de Saúde foi, e continua a ser, uma das maiores conquistas da democracia portuguesa. Universal, tendencialmente gratuito e assente numa ideia de justiça social e solidariedade, o SNS encarna o melhor do projeto social que emergiu após o 25 de Abril. Mas hoje, com um sistema sob pressão extrema, manter esse legado implica mais do que discursos simbólicos. Exige ação concreta, realista e corajosa. Infelizmente, grande parte do debate político sobre a saúde permanece refém de preconceitos antigos. Um dos mais persistentes é a rejeição liminar de qualquer colaboração com o setor privado, como se esta fosse, por definição, uma ameaça ao SNS. Esta visão é, hoje, contraproducente.
Aliás, é precisamente para evitar a privatização selvagem e a exclusão dos mais pobres que o Estado deve liderar, coordenar e integrar diferentes formas de prestação de cuidados, sem preconceitos e com foco nos resultados. Ignorar esta necessidade é empurrar cada vez mais pessoas para fora do sistema público, alimentando uma privatização de facto, feita pelo silêncio e pela omissão. Se a esquerda quiser manter a sua autoridade moral e política na defesa do SNS, terá de deixar de lado o conforto da retórica e enfrentar a realidade com responsabilidade. Defender o Estado Social hoje significa ser exigente com os seus resultados. E significa também reconhecer que, para salvaguardar o princípio da igualdade no acesso à saúde, é necessário modernizar o sistema, diversificar respostas e abandonar o dogmatismo que já não serve os cidadãos.
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