Kant era, tudo indica, uma pessoa extremamente metódica, pontual até à obsessão (dizem que os vizinhos acertavam os relógios quando ele passava para o seu passeio diário). Vivia com uma disciplina de tal modo mecânica que faria inveja a um relógio suíço. Era um génio, mas desses que talvez fosse mais suportável à distância, ou no papel, do que lado a lado a beber uma cerveja fresca com tremoços numa esplanada num fim de tarde de verão.
O filósofo Ernst Cassirer escreveu que a filosofia kantiana é como uma catedral gótica: complexa, rigorosa, imponente, mas com pouca margem para desvios ou leveza. Kant escrevia como pensava: com precisão, às vezes exasperante. E quem esteja habituado a raciocínios claros e à economia de linguagem, que a prática exige, é natural que a verbosidade labiríntica de Kant irrite um pouco. Esse desconforto é um sinal de maturidade intelectual de quem já passou pelo fascínio inicial e agora tem liberdade para rir, questionar, ou até se aborrecer com um autor canónico, sem o medo reverencial que tantos ainda mantêm. Afinal, a filosofia não é para ser lida de joelhos, mas com espírito crítico, mesmo que seja com a Crítica da Razão Prática na mão.
O imperativo categórico no seu estado mais inflexível é o exemplo que faz com que tantos leiam Kant com um misto de admiração e incredulidade. A sua ideia de que a moralidade não admite exceções, mesmo diante de uma vida em risco, é demasiado desumana. E talvez o seja mesmo, no sentido literal do termo: não humana. Para Kant, mentir é sempre errado, independentemente das consequências. Porque violaria a universalidade da lei moral. Mas isso, para nós, soa mais a uma moral ou uma ética do tribunal celestial, e não da vida real. É neste ponto que muitos se afastam de Kant, e se aproximam de um David Hume. As consequências contam e importam. É imperfeito? É!. Mas é demasiadamente humano. Schopenhauer, por exemplo, que não morria de amores por Kant, dizia que o sistema moral kantiano “parece ter sido feito para habitantes de Marte”. Diria que se fosse hoje, Kant não escaparia ao rótulo de autista, os tais que são génios a matemática e um zero a empatia. A pobreza nos tais neurónios espelho. Olhando retroativamente para figuras como Kant, Newton ou até Wittgenstein, alguns dos seus traços poderiam, no vocabulário contemporâneo, encaixar em espectros do neurodesenvolvimento, como o autismo.
No caso de Kant, o comportamento obsessivamente rotineiro, a dificuldade de estabelecer relações interpessoais profundas, a rigidez moral extrema e a notória ausência de afeto empático nas suas formulações éticas, tudo isso compõe um perfil que hoje poderia levantar sobrancelhas entre neurologistas ou psicólogos clínicos. Claro que é sempre anacrónico aplicar rótulos modernos a figuras históricas. Mas é fascinante pensar que a pobreza nos neurónios-espelho possa ter sido justamente a condição que permitiu a Kant construir aquele edifício ético monumental, assente num princípio tão frio quanto inabalável: o dever pelo dever.
David Hume parece ter tido uma humanidade muito mais calorosa, mais próxima da vida real. Apesar de cético e, por vezes, mordaz, tinha um sentido de humor notável, uma escrita fluída, e um olhar filosófico que não excluía as paixões. Antes as colocava no centro da ação humana. “A razão é, e deve ser apenas, escrava das paixões” -- dizia ele, com um sorriso que Kant talvez nunca tenha esboçado. É irónico que Kant, ao reconhecer que Hume o despertou do sono dogmático, tenha depois rejeitado tão prontamente a premissa afetiva do escocês. Como se dissesse: obrigado pelo despertador, agora vou tirar todas as emoções da equação. Hume tinha o que hoje poderíamos chamar de inteligência emocional avant la lettre. Ele percebia que o ser humano é uma criatura de hábitos, de afetos, de simpatias, e que a moralidade nasce muito mais dessa sociabilidade natural do que de qualquer dedução racional a priori, como se fosse matemática. Por isso, a ética de David Hume soa mais a terapêutica médica. Atenta ao contexto, à fragilidade, às circunstâncias. "Em medicina nem sempre nem nunca, cada caso é um caso" = é uma máxima de sabedoria prática que poderia muito bem ser aplicada a toda a ética.
Mas vá lá, juntemos Kant a Hume, expurgando-os do extremismo de cada um, e quase que conseguimos uma terapêutica filosófica. Uma espécie de medicina moral do espírito. De um lado, a precisão rigorosa de Kant, que garante a integridade do princípio. Do outro, a sensibilidade de Hume, que lembra que cada paciente tem nome, história, dor própria. E que o mesmo tratamento não serve para todos. Hegel recomendava levar os opostos ao extremo para depois conciliá-los num ponto superior. Uma ética dialética, que nem se afunda no relativismo emocional, nem se congela no formalismo vazio. É curioso pensar que talvez a medicina seja, na prática, a arte de resolver dilemas morais sem dizer que são dilemas. O médico decide, mas raramente com fórmulas. Julga, intui, escuta. E nisso, talvez, esteja mais próximo de Aristóteles, com a sua phronesis, a prudência do caso concreto.
Hume escreve algo como: “Depois de tanta especulação filosófica infrutífera, saio para jantar, conversar com os amigos, ou jogar uma partida de gamão.” É um verdadeiro elogio da vida contra o peso do pensamento excessivo. É como se dissesse: a razão não me resolve tudo, mas a vida continua, e isso já é um consolo. Esse momento em que ele "empanca" na busca do "eu", e se dá conta de que tudo o que encontra em si são percepções e sensações, sem nunca topar com um "núcleo" fixo. É um dos pontos altos da filosofia moderna. Em vez de forçar uma solução, como tantos outros, ele admite o abismo. E depois vai viver. Esse gesto é radical e sereno ao mesmo tempo. É um convite à humildade intelectual, ao reconhecimento de que nem tudo pode (ou deve) ser resolvido pelo pensamento. E talvez por isso Hume ainda fascine: porque ele nos olha sem pretensões, sem dogmas, sem querer ser um profeta da razão — algo raro entre filósofos.
Portugal, fortemente enraizado no tom moralizante católico e no legado escolástico jesuítico, manteve durante muito tempo uma certa reserva face à cultura anglo-saxónica, que misturava empirismo, liberdade intelectual e uma quase heresia suave, disfarçada de bom senso. Até mesmo figuras como Stuart Mill ou Bertrand Russell demoraram a entrar com força no meio lusófono. Enquanto Kant e os alemães, mais "solenes", pareciam mais adequados a uma cultura onde a metafísica e o dever tinham peso de altar.
Essa decisão de não ir à procura da doença, de não antecipar o sofrimento, mas deixar que ela chegue se e quando tiver de chegar, é o reconhecimento sereno dos limites da vida e, sobretudo, da dignidade do deixar estar. Em vez da obsessão moderna de "antecipar tudo", é melhor aceitar a incerteza e viver com uma clareza rara: quando vier, que venha ter comigo. David Hume quando morreu, em 1776, escreveu cartas bem-humoradas e lúcidas, sem medo, sem súplica, apenas com um certo gosto pela compostura, pelo que ainda restava de prazer na vida. Nunca precisou de promessas do além. Bastava-lhe saber que viveu com inteligência, com sensibilidade e com ironia.
Portugal, fortemente enraizado no tom moralizante católico e no legado escolástico jesuítico, manteve durante muito tempo uma certa reserva face à cultura anglo-saxónica, que misturava empirismo, liberdade intelectual e uma quase heresia suave, disfarçada de bom senso. Até mesmo figuras como Stuart Mill ou Bertrand Russell demoraram a entrar com força no meio lusófono. Enquanto Kant e os alemães, mais "solenes", pareciam mais adequados a uma cultura onde a metafísica e o dever tinham peso de altar.
Essa decisão de não ir à procura da doença, de não antecipar o sofrimento, mas deixar que ela chegue se e quando tiver de chegar, é o reconhecimento sereno dos limites da vida e, sobretudo, da dignidade do deixar estar. Em vez da obsessão moderna de "antecipar tudo", é melhor aceitar a incerteza e viver com uma clareza rara: quando vier, que venha ter comigo. David Hume quando morreu, em 1776, escreveu cartas bem-humoradas e lúcidas, sem medo, sem súplica, apenas com um certo gosto pela compostura, pelo que ainda restava de prazer na vida. Nunca precisou de promessas do além. Bastava-lhe saber que viveu com inteligência, com sensibilidade e com ironia.
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