O caráter imprevisível do voto popular escapa frequentemente às análises dos especialistas, que muitas vezes fazem prognósticos com base em lógicas lineares, ou expectativas paroquiais que ignoram as pulsões subterrâneas do eleitorado. O caso das últimas eleições legislativas em Portugal é um exemplo ilustrativo dessa surpresa democrática. O PS, que durante anos oscilou entre o primeiro e o segundo lugar, acabou ultrapassado pelo Chega, um partido que muitos analistas ainda subestimavam como força nacional estruturada. E o PSD de Montenegro emergiu com a possibilidade de governar, mesmo sem maioria absoluta.
A democracia tem disto: não é eficiente, mas é adaptável, não é previsível, mas é plural. Uma ditadura pode, sim, resolver problemas rapidamente, mas muitas vezes impõe soluções que sacrificam direitos fundamentais, e controlam a comunicação social. As democracias arrastam decisões, mas por outro lado, mantêm uma certa possibilidade de correção ao longo do tempo. Montenegro tem agora uma oportunidade rara de lançar reformas. Com o PS enfraquecido e sem possibilidade de fazer alianças à sua esquerda, que praticamente já não existe, não espaço político para voos mais ambiciosos. A questão será se a AD ou o PSD tem vontade e audácia para aproveitar o momento, ou se ficará refém de equilibristas parlamentares e do receio da instabilidade.
Também será interessante observar como o Chega se posicionará: apenas como força de pressão e protesto, ou se irá tentar assumir responsabilidades e moderar-se para não perder capital político perante os seus eleitores. Em suma, a democracia continua sendo um sistema em que o inesperado não é falha. É característica. E isso, embora frustre quem busca estabilidade ou coerência, é parte das suas regras do jogo político.
As democracias podem morrer quando são elas que fazem entrar pela porta do cavalo o tal Cavalo de Tróia do populismo. Se a democracia cai no azar de ver o populismo chegar ao poder, corre o risco de derrapar para a autocracia. Este paradoxo é um dos grandes dilemas das democracias contemporâneas: permite, pelos seus próprios mecanismos, que forças antidemocráticas ascendam legitimamente ao poder. É o que se pode chamar de suicídio democrático ou, como alguns estudiosos nomeiam, "autocratização eleitoral". A História tem exemplos marcantes disso. Hitler chegou ao poder por via eleitoral em 1933. Hugo Chávez também. Viktor Orbán e Recep Tayyip Erdoğan mantêm uma fachada democrática enquanto corroem, passo a passo, os alicerces do Estado de Direito. Em muitos casos, o populista eleito usa a própria legitimidade das urnas para desmantelar os freios e contrapesos, atacando o poder judiciário, a imprensa, os direitos civis e as minorias. E tudo sob o manto da “vontade do povo”.
O que torna tudo mais perigoso é que as democracias liberais contemporâneas estão fragilizadas por dentro: desigualdades persistentes, corrupção, ineficiência estatal, sensação de insegurança e distanciamento entre eleitos e eleitores. Isso abre espaço para discursos simplistas e figuras que prometem limpar “o sistema”. Entram pela porta do cavalo, não com tanques, mas com votos. O alerta aqui é claro: a democracia não se defende apenas com eleições, mas também com cultura democrática, educação cívica, instituições sólidas e vigilância cidadã. Quando tudo isso falha, ou é desprezado, a democracia pode acabar entregando as chaves da casa a quem a quer demolir.
A democracia é frágil. Mas ainda é, como diria Churchill, “a pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas de tempos a tempos”. A sua sobrevivência depende menos de regras escritas, e mais do compromisso coletivo com o espírito democrático, que parece cada vez mais rarefeito em muitas sociedades. E talvez a grande pergunta do nosso tempo seja: a democracia ainda tem força para se regenerar, ou estamos mesmo no limiar de uma nova era de regimes híbridos e autoritarismos com ar de "gente de bem"?
Estamos a caminhar para um novo ciclo de regimes híbridos ou autoritários "de rosto democrático". Os sintomas são cada vez mais claros: A normalização da retórica populista e autoritária; a crescente desconfiança nas instituições; a perda do hábito do debate racional; o culto de personalidade a substituir o respeito pelo Estado de Direito. E assim vai crescendo uma “maioria ressentida” que exige soluções simples e rápidas, mesmo à custa de liberdades e direitos. Tudo isso aponta para um mundo onde a forma democrática, de eleições e parlamentos, até pode continuar a existir, mas cujo conteúdo liberal e democrático -- pluralismo, garantias individuais, separação de poderes, e assim -- será delapidado.
A História diz-nos a política tem os seus ciclos. Os sistemas políticos tendem a alternar entre aberturas e fechamentos, especialmente quando o desgaste interno e o desencanto popular minam os ideais fundadores. Assim como o Império Romano passou de República a Império autocrático, ou como a URSS ruiu por dentro, as democracias ocidentais podem estar no fim de um ciclo longo iniciado no fim da "Guerra Mundial" em 1945. Veja-se a barbárie de Paris. O sistema não tem distância suficiente para ver ou não quer ver. É um sintoma claro de que o sistema democrático com o seu "Estado Social" não está a conseguir responder às reais e mais elementares necessidades das pessoas. Muitas vezes, o que vemos são crises profundas de desigualdade, exclusão social, racismo estrutural e falta de oportunidades, que acabam em explosões de violência revoltosa.
As convulsões nos centros e periferias das principais cidades europeias não é só um problema local ou pontual; é um alerta para algo mais profundo. O sistema político pode estar tão distante da realidade das periferias que não consegue enxergar as tensões acumuladas. Ou, pior, pode simplesmente não querer ver, porque reconhecer essas falhas exigiria mudanças radicais. Mas isso iria incomodar as ideologias e os interesses estabelecidos. Paris, com os seus bairros periféricos marcados pela exclusão, desemprego juvenil e discriminação, é um exemplo emblemático Mas não é único. Muitas cidades europeias, e também americanas, estão a enfrentar esses desafios há já algum tempo. Isso reforça a ideia de que as democracias modernas estão desconectadas do seu próprio povo, especialmente das camadas mais vulneráveis, o que cria um caldo propício para a emergência de movimentos radicais. É um quadro difícil de resolver com boas maneiras: políticas públicas eficazes que para além de manter o contrato social que já existe ainda tenha que responder a novas reivindicações.
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