segunda-feira, 2 de junho de 2025
O que fazer?
Devem os princípios morais estar sempre acima de tudo, em todas as circunstâncias? Ou será que há exceções, contextos históricos, culturais ou geopolíticos que relativizam a sua aplicação? A lei de contraespionagem revista da China, que entrou em vigor em 2023, alargou a definição de atos de espionagem e reforçou os poderes de investigação das agências de aplicação da lei de segurança nacional. Ao abrigo destas regras mais rigorosas, o ministério anunciou em março que um antigo engenheiro de um instituto de investigação chinês foi condenado à pena de morte por vender material classificado a agências de espionagem estrangeiras.
A tradição ocidental tem a tendência de apresentar certos valores como universais: direitos humanos, liberdade de expressão, dignidade da pessoa humana, repúdio à tortura e à pena de morte. Mas essa pretensão de universalidade é historicamente contingente. Basta lembrar que até há poucas décadas, países europeus aplicavam a pena de morte (Portugal só aboliu formalmente em 1867, e a França apenas em 1981). Os Estados Unidos, potência que se apresenta como defensora dos direitos humanos, ainda aplicam a pena de morte em vários Estados, muitas vezes com critérios duvidosos e racismo estrutural evidente. Guantánamo é um caso de clara suspensão do Estado de Direito, patrocinada pelo Ocidente. Portanto, o Ocidente não está isento de hipocrisias morais.
A China justifica as suas políticas repressivas como instrumentos de proteção da segurança nacional e estabilidade interna. A Lei de Contraespionagem revista em 2023 é mais um passo nesse sentido: amplia o conceito de espionagem a ponto de tornar difusa a fronteira entre investigação legítima e dissidência política. A pena de morte aplicada a um engenheiro por espionagem pode chocar um europeu, mas para o regime chinês trata-se de afirmar a soberania do Estado contra intervenções externas. Algo que os EUA também fazem, embora com roupagem diferente.
Dizer que "somos melhores que os chineses" por não termos pena de morte (embora ainda a tenhamos em parte do Ocidente) é uma afirmação perigosa e autocomplacente. A moralidade não se mede por slogans, mas por coerência. Se condenamos a China pela sua dureza judicial, também devemos condenar os EUA por aplicarem a pena de morte. O critério deve ser universal, não apenas geopolítico. Deve a moral estar acima de tudo? Essa é a pergunta mais difícil. Em teoria, sim: princípios como a dignidade humana ou a proibição da tortura devem ser inegociáveis. Mas na prática, os Estados vivem num mundo onde impera, muitas vezes, a Realpolitik. E aqui entra a tensão fundamental: Se abdicamos da moral em nome da eficácia, tornamo-nos cínicos. Se mantemos a moral como valor absoluto em todas as situações, corremos o risco de ser inconsequente ou impotentes perante quem não joga com as mesmas regras. O ideal seria um equilíbrio: manter os princípios como bússola ética, mas reconhecer os limites da sua aplicação prática em contextos extremos. Isso exige sabedoria, não apenas doutrina.
Não, o Ocidente não pode reclamar superioridade moral apenas por proclamar valores "universais", sobretudo quando não os pratica integralmente. E sim, devemos aspirar a que os princípios morais estejam acima de tudo, mas não podemos ignorar que há zonas cinzentas, onde a ação política exige prudência, contextualização e, às vezes, escolhas trágicas. O conflito de valores é uma característica inelutável da condição humana.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill autorizou o bombardeamento de Dresden, uma cidade praticamente sem valor militar. Morreram milhares de civis. A decisão visava enfraquecer o moral alemão, mas o custo humano foi altíssimo. O princípio moral de não matar inocentes foi sacrificado em nome de uma suposta necessidade estratégica. O lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki matou mais de 200 mil civis. Truman justificou com a ideia de que a guerra acabaria mais rapidamente, salvando vidas no conjunto. O uso de armas de destruição em massa contra civis foi uma decisão fundamentalmente imoral, mas apresentada como “o menor dos males”.
Os EUA apoiaram regimes autoritários (Brasil, Chile, Indonésia, Irão) para conter o comunismo. Isso contradizia seus ideais democráticos. A política externa americana sacrificou os próprios valores para preservar o equilíbrio geopolítico. A moral foi subordinada à estratégia. Para Kant, certos princípios nunca devem ser violados: mentir, torturar, matar inocentes. A moralidade não depende das consequências. Daí a sua máxima: “Age apenas segundo aquela máxima que possas querer que se torne uma lei universal.” Problema: isso pode tornar a ação moral inoperante em situações-limite. Ao passo que para o Utilitarismo (Bentham, Mill) – O que importa são as consequências. A melhor ação é a que maximiza o bem-estar geral. Ex: Matar um terrorista que sabe onde está uma bomba pode ser aceitável se salvar milhares de vidas. Problema: isso justifica atrocidades se o saldo for positivo, o que pode ser um perigoso precedente ético. Em Just and Unjust Wars, Michael Walzer afirma que, às vezes, os líderes têm de “sujar as mãos” – violar a moral para proteger a comunidade. Mas devem reconhecer o custo ético disso.
Nós, os ocidentais, corremos o risco da arrogância moral. A ideia de que "nós, ocidentais, somos melhores" porque temos certos valores pode se transformar em Imperialismo moral: impor valores a outras culturas sem compreender os seus contextos. Cegueira seletiva: indignação com o outro e complacência com os próprios erros. Não há resposta fácil. A moral não pode ser simplesmente descartada em nome da eficácia. Mas tampouco pode ser aplicada como um dogma fora da realidade. Resta-nos defender princípios morais sem arrogância, aplicá-los com coerência, e reconhecer, com humildade, quando nos afastamos deles para que o arrependimento e a correção continuem possíveis.
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