O ressentimento é uma energia de transvaloração, que move montanhas, mas quase sempre pelo avesso. E na política, ele funciona como uma espécie de combustível fóssil, não raro irracional, que mobiliza identidades feridas contra outras. Veja-se os ressentidos do colonialismo, que lhe acrescentam o do patriarcado, por razões históricas que remontam até à idade dos Descobrimentos. Ainda há muitas feridas abertas. Reclamam por uma justiça da História, mas que se traduz por uma moral ressentida num horizonte perdido de sentido. Entrou-se numa lógica de antagonismo sem fim à vista. Resultado: aqueles que se sentem ameaçados por essa nova cultura de afirmação identitária, os quais não são os verdadeiros culpados de nada, mas apenas herdeiros de um sistema, reagem com igual ressentimento. A política, nesse jogo, deixa de ser o espaço do diálogo e da negociação e passa para o campo da batalha moral: vítimas contra vítimas, cada qual com a sua narrativa redentora.
O século XXI inaugurou um momento de revisão histórica: os povos colonizados, as mulheres oprimidas, as minorias marginalizadas. Todas elas tomaram a palavra e exigiram reparação, visibilidade e justiça. Essa insurgência por justiça, transformada numa ética da mágoa permanente, onde o passado ainda que trágico é mobilizado para justificar toda e qualquer vitimização. Em resposta -- os herdeiros do colonialismo, do patriarcado, das velhas hegemonias -- reagiram mal. E eis que surge o ressentimento reverso: a sensação de que o mundo foi "tomado" por forças que os deslegitimam. Daí a ascensão dos populismos e outros que tal, longe de representarem um poder seguro, encarnam uma nova forma de bode expiatório. O do homem branco, do cristão tradicional, do "nacionalista" que se sente marginalizado na sua própria terra. A política, nesse cenário, deixa de ser o espaço do debate racional, passando para uma disputa de narrativas emocionais. Essa dinâmica gera um ciclo vicioso: o ressentimento dos que foram oprimidos alimenta o ressentimento dos que se sentem injustamente acusados. Cada novo direito conquistado por um grupo é interpretado como usurpação por outro. E assim se constrói uma política identitária dos dois lados da barricada.
A mais trágica ironia dessa história, ao tentar corrigir injustiças do passado, acaba por criar novas formas de exclusão. O ressentimento, por sua natureza, não é conciliador. Ele quer reparação, sim, mas quer também vingança. E é nesse clima que a política se degrada, transformando-se num teatro moral, onde todos se dizem vítimas e ninguém assume responsabilidades. No mundo ocidental assistimos à emergência de uma classe média branca ressentida, que se vê como vítima da "correção política", das quotas raciais, da imigração e da perda de valores "tradicionais". É essa camada que Trump soube manipular com precisão cirúrgica, apresentando-se como defensor do "americano esquecido". Um ressentido que dá voz a outros ressentidos. Ao passo que na Hungria de Orbán o trauma é outro: a opressão da União Soviética; e antes dela o do Império Austro-Húngaro que teve o desfecho no fim da Primeira Guerra Mundial com o Tratado de Trianon, o qual mutilou o território húngaro a benefício dos atuais vizinhos. Este trauma ainda ecoa na memória nacional dos dias de hoje espelhado em autoritarismo e xenofobia.
O ressentimento nacionalista é reembalado como proteção contra uma Europa multicultural que ameaça dissolver identidades. Até na arte, que já foi espaço de transgressão, ambiguidade e liberdade simbólica, tornou-se por vezes refém de vigilâncias morais. O medo -- de ofender, de ser cancelado, de tocar em feridas "não autorizadas" -- gera autocensura e empobrecimento estético. No ambiente universitário e intelectual, instalou-se uma lógica inquisitorial onde discursos são julgados, não pela sua verdade ou profundidade, mas pela sua adesão aos códigos morais de uma comunidade ressentida. É o que o filósofo Mark Lilla chamou de "política identitária como projeto teológico", onde cada grupo passa a exigir sacralidade em torno da sua dor. O paradoxo é evidente: o ressentimento, ao tentar emancipar, acaba por oprimir. A linguagem tornou-se um campo minado. O discurso perde a sua função de mediação e torna-se arma, seja de denúncia, seja de ofensa. O Outro deixa de ser interlocutor para se tornar ameaça.
Este ciclo atingiu o seu ponto mais crítico. Quando o ressentido adquire poder, corre o risco de repetir as violências que sofreu. A inversão simbólica do poder, sem transformação ética, apenas desloca a injustiça de lugar. Antigos colonizados tornam-se nacionalistas autoritários. Excluídos tornam-se censores. A dor, em vez de gerar compaixão, gera vingança. A História está repleta desses episódios. Revoluções populares que, ao tomarem o poder, mergulham em expurgos e perseguições. Minorias que, ao conquistarem espaços, impõem dogmas e tabus. Em todos esses casos, o ressentimento não foi superado, apenas travestido numa nova forma de poder. A política, nesse sentido, precisa deixar de ser palco de ofendidos e acusados, para se tornar, novamente, espaço de construção. Não para apagar os factos da História, mas para dar-lhes formas mais elevadas. Como dizia Hannah Arendt, "o perdão é a única forma de lidar com o irreversível". E o passado, por definição, é irreversível.
Devíamos sonhar menos com revoluções e mais com reconciliações. Menos com utopias radicais, e mais com uma ética da escuta: aquela que não teme o conflito, mas o orienta para o reconhecimento mútuo. Enquanto isso não vier, seguimos presos ao jogo dos espelhos do ressentimento, onde cada gesto de reparação gera nova mágoa, e a política se torna o palco dramático das feridas que não saram.
Este ciclo atingiu o seu ponto mais crítico. Quando o ressentido adquire poder, corre o risco de repetir as violências que sofreu. A inversão simbólica do poder, sem transformação ética, apenas desloca a injustiça de lugar. Antigos colonizados tornam-se nacionalistas autoritários. Excluídos tornam-se censores. A dor, em vez de gerar compaixão, gera vingança. A História está repleta desses episódios. Revoluções populares que, ao tomarem o poder, mergulham em expurgos e perseguições. Minorias que, ao conquistarem espaços, impõem dogmas e tabus. Em todos esses casos, o ressentimento não foi superado, apenas travestido numa nova forma de poder. A política, nesse sentido, precisa deixar de ser palco de ofendidos e acusados, para se tornar, novamente, espaço de construção. Não para apagar os factos da História, mas para dar-lhes formas mais elevadas. Como dizia Hannah Arendt, "o perdão é a única forma de lidar com o irreversível". E o passado, por definição, é irreversível.
Devíamos sonhar menos com revoluções e mais com reconciliações. Menos com utopias radicais, e mais com uma ética da escuta: aquela que não teme o conflito, mas o orienta para o reconhecimento mútuo. Enquanto isso não vier, seguimos presos ao jogo dos espelhos do ressentimento, onde cada gesto de reparação gera nova mágoa, e a política se torna o palco dramático das feridas que não saram.
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