sexta-feira, 13 de junho de 2025

A dicotomia "nós/eles"


A dicotomia "nós/eles" não é, em si, essencialmente racial, embora o racismo seja uma das suas manifestações mais perniciosas e persistentes. Essa dicotomia é, antes de tudo, uma estrutura mental profundamente enraizada na cognição humana, usada para organizar o mundo social. O que muda ao longo do tempo é o contexto.

A identidade coletiva pode mudar conforme a situação. Um indivíduo negro e um branco que torcem pelo mesmo clube ou servem no mesmo exército podem, naquele momento, formar um “nós” coeso, independentemente das suas diferenças fenotípicas. Isso mostra que as fronteiras identitárias são móveis e contingentes. Assim o racismo se vai apropriar de marcadores biológicos (cor da pele, traços físicos) para justificar estruturas de poder, mas esses marcadores só ganham relevância dentro de contextos históricos e culturais específicos. Em contextos alternativos, outros marcadores culturais podem eclipsar o fenótipo como critério primário de diferenciação.

Das dicotomias culturais mais relevantes temos a linguagem, a religião, os costumes e até preferências estéticas podem dividir grupos com mais intensidade do que traços físicos. Muitas guerras civis ou genocídios ocorreram entre povos praticamente indistinguíveis biologicamente (como hutus e tutsis no Ruanda, ou sérvios e bósnios na ex-Jugoslávia), mas separados por construções culturais e políticas.

Estudos têm mostrado que as pessoas discriminam até com base em grupos arbitrários, como as claques de futebol: “grupo azul” versus “grupo vermelho” versus “grupo verde”. Mesmo sem história ou conflito anterior, isso confirma a facilidade com que o cérebro humano forma dicotomias artificiais. Assim podemos concluir que na dicotomia “nós/eles”, a cultura tem o primado sobre a biologia. As dicotomias mais potentes e duráveis são culturais, não naturais. O que importa não é o que vemos, mas o que foi ensinado a ver como relevante. A biologia fornece o palco; a cultura escreve o enredo.

A divisão entre "nós" e "eles" é, na verdade, extremamente plástica. Diante de certas circunstâncias, como a partilha de um gosto musical, a pertença a um mesmo clube desportivo ou a adesão a uma causa comum, a diferença fenotípica pode tornar-se irrelevante. Nesse sentido, o racismo não é uma expressão inevitável da biologia humana, mas uma construção cultural que se vale da biologia como pretexto.

Diversos estudos da psicologia social, como os realizados por Henri Tajfel e John Turner, demonstraram a facilidade com que seres humanos podem discriminar entre grupos baseados em diferenças absolutamente arbitrárias, como cores de camisa ou atribuições aleatórias de grupo. A tendência à formação de grupos e à exclusão do "outro" é, portanto, uma disposição cognitiva generalizada, mas o critério de inclusão/exclusão é moldado pelas condições culturais e históricas.

A esse respeito, a história oferece múltiplos exemplos de conflitos violentos entre povos quase idênticos do ponto de vista biológico. Sérvios e bósnios, hutus e tutsis, católicos e protestantes: todos esses grupos se envolveram em guerras fratricidas fundamentadas em distinções culturais, religiosas ou simbólicas, não fenotípicas. Esses exemplos reforçam a tese de que as dicotomias mais potentes são aquelas definidas pela cultura, não pela biologia.

Em suma, o racismo é apenas uma das muitas formas que a dicotomia "nós/eles" pode assumir. Em determinadas conjunturas, ele pode ser superado ou mesmo eclipsado por outros tipos de identificação e pertença. Isso não diminui a sua gravidade enquanto prática social, mas aponta para a necessidade de combater não apenas os preconceitos raciais em si, mas o mecanismo mental mais profundo que os sustenta: a tendência de atribuir valor moral e social à diferença. Portanto, para uma sociedade verdadeiramente inclusiva, não basta negar o racismo; é preciso problematizar o próprio impulso humano de segmentar, hierarquizar e excluir. E é na esfera cultural que esse trabalho se mostra mais promissor e urgente.

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