quarta-feira, 4 de junho de 2025

O Serviço Nacional de Saúde face à recusa da morte


O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é, para muitos portugueses, uma conquista civilizacional. Fundado em nome da universalidade e da equidade, tem vindo a garantir acesso a cuidados médicos essenciais a toda a população. Contudo, à medida que o país envelhece, estagna economicamente e mantém elevadas expectativas quanto à saúde pública. Mas o modelo atual mostra sinais claros de exaustão. Portugal quer manter um SNS de país rico, mas sem os meios para o sustentar. Em 2024, a despesa do SNS ascendeu a mais de 15 mil milhões de euros, com um défice superior a 1.300 milhões – mais do que o dobro do registado no ano anterior. Este crescimento acelerado da despesa, aliado a uma receita tributária limitada e a um setor produtivo modesto, coloca em risco a viabilidade do sistema tal como hoje o conhecemos.

Em 2010, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) teve um custo aproximado de 8.200 milhões de euros para o Estado português, registando um défice próximo dos 800 milhões de euros. Em 2020, o custo do SNS aumentou significativamente, atingindo cerca de 11.456 milhões de euros, o valor mais elevado até então, representando 5,66% do Produto Interno Bruto (PIB) português. Este aumento deveu-se, em grande parte, ao impacto da pandemia de COVID-19, que exigiu um reforço substancial do financiamento estatal. As transferências e subsídios correntes do Estado para o SNS cresceram 13%, totalizando 10.672 milhões de euros.

Em 2024, a despesa total consolidada do SNS foi de aproximadamente 15.711 milhões de euros, segundo a proposta do Orçamento do Estado para 2024. Deste montante, cerca de 84,9% (aproximadamente 13.346 milhões de euros) provieram de receitas fiscais. A despesa com pessoal representou 40,6% do total, enquanto a aquisição de bens e serviços (como medicamentos e meios complementares de diagnóstico) correspondeu a 51,1%. O SNS registou um défice de 1.378 milhões de euros em 2024, mais do que duplicando o valor do ano anterior. Este agravamento deveu-se a um crescimento da despesa de 9,1%, superior ao aumento da receita, que foi de 4,1%. A despesa com pessoal aumentou cerca de 377 milhões de euros, totalizando 6.377,9 milhões de euros, o que representa um acréscimo de 6,3% face ao ano anterior.

O SNS gastou quase 231 milhões de euros em 2024 com prestadores de serviço, um aumento de 12,3% em relação a 2023. A maior parte desta despesa foi com a contratação de médicos tarefeiros, totalizando 213,3 milhões de euros. Estes dados refletem um aumento contínuo da despesa com o SNS ao longo dos anos, influenciado por fatores como o envelhecimento da população, a pandemia de COVID-19 e a necessidade de reforço dos recursos humanos e materiais no setor da saúde.

O SNS português é frequentemente apontado como um dos pilares do Estado Social. Um símbolo de igualdade e de acesso universal. Mas enfrenta tensões crescentes entre expectativas sociais altas, realidade orçamental limitada e mudanças estruturais profundas. Portugal é um dos países mais envelhecidos da Europa. Isso implica mais doenças crónicas e maior dependência dos cuidados de saúde. Aumento da despesa contínua com medicamentos, hospitalizações e profissionais de saúde. Menor base contributiva ativa para financiar o sistema. O PIB per capita português está significativamente abaixo da média da UE. A carga fiscal já é elevada, e o espaço para aumentos adicionais para financiar o SNS é politicamente e socialmente limitado.

Um sistema que dependa quase exclusivamente do Estado, com pouca margem de colaboração estruturada com o setor social e privado, tende a implodir sob o peso da procura crescente. O agravamento do défice do SNS (em 2024 foi o dobro do ano anterior) é sintomático desta trajetória insustentável. 
Além disso, o envelhecimento populacional acarreta encargos crescentes e prolongados, enquanto a base contributiva ativa diminui. Mais do que um problema orçamental, este é um problema estrutural. Portugal está a viver mais, mas com mais doenças, e com menos gente a pagar por esse prolongamento de vida. Curiosamente, os países nórdicos, frequentemente citados como referência de bem-estar, adotam modelos de saúde pública mais realistas do que os portugueses imaginam. Nesses países aceita-se que nem tudo é gratuito, especialmente fora da urgência. A saúde preventiva é prioritária face ao tratamento de última hora. Há uma cultura de responsabilidade individual e contenção na procura. Existe maior aceitação de listas de espera e menor dramatização dos limites do sistema. Portugal, pelo contrário, alimentou a ilusão de que um país pobre pode manter um sistema de saúde de luxo. É uma dissonância cognitiva e fiscal que o tempo está a tornar evidente.

O individualismo moderno, que trouxe muitos avanços em direitos e liberdades, também se deformou em muitos casos num narcisismo coletivo, onde a ideia de "eu" é tão central que qualquer sacrifício pelo coletivo, pelo futuro, ou mesmo pela aceitação do fim natural da vida, é visto como uma ameaça insuportável. Esse medo da morte, que impulsiona as pessoas a adiar esse fim a qualquer custo, gera vários efeitos sociais e culturais: recusa em aceitar limites naturais como a finitude biológica, o envelhecimento, a necessidade de renovação geracional.

O consumismo desenfreado, como forma de anestesiar o medo existencial, incapacita ainda mais as pessoas de pensar no longo prazo. Sacrifica-se o futuro para gratificações imediatas. Baixa natalidade não apenas por dificuldades práticas, mas também porque cuidar de novos seres humanos implica abdicar de parte do próprio tempo, do próprio prazer. O que seria um progresso maravilhoso, viver mais e melhor, acaba no que se traduz numa luta desesperada contra a natureza. Busca-se uma quase imortalidade, muitas vezes em condições de qualidade de vida bastante pobres, e o medo da morte tornar-se o motor oculto de muitas indústrias, desde a farmacêutica à manipulação estética.

Para que o SNS continue a servir a maioria da população com dignidade e segurança, será necessária uma reforma estruturante que enfrente a realidade com coragem. Há que redefinir a universalidade. Manter o acesso a cuidados essenciais para todos, mas distinguir entre o que é direito básico e o que é opcional ou adiável. Introduzir copagamentos simbólicos para consultas e exames não urgentes, com isenções claras para os mais vulneráveis. Reforçar a medicina preventiva e os cuidados primários. Reduzir a pressão sobre os hospitais e evitar que pequenas doenças se tornem grandes. Estabelecer parcerias estratégicas com o setor privado e social: não como alternativa, mas como complemento regulado, mitigando listas de espera e racionalizando recursos. Educar a população para os limites da saúde pública, construindo uma cultura de responsabilidade, semelhante à dos países nórdicos, onde não se exige o impossível ao Estado.

Se queremos imaginar uma nova ética da finitude, capaz de substituir o egotismo atual e criar uma sociedade mais sustentável e solidária, precisamos, primeiro, reconhecer em consciência a nossa finitude e aceitar a inexorabilidade da morte. Isso não significa ser niilista ou resignado, mas entender que morrer faz parte da ordem natural da vida. A consciência da morte dá sentido às escolhas, porque torna a vida mais preciosa, não sendo para esbanjar. Precisamos moderar desejos e descentralizar o eu. Em vez se sermos obstinados no prorrogar artificialmente da existência a todo o custo, devemos pensar que a vida continua por diante em gerações sucessivas. E que o nascimento, o crescimento, a maturação e a morte são como partes dignas do percurso humano. 

Portanto, devemos cultivar o espírito que valorize o envelhecimento com dignidade e não apenas a juventude eterna. O incentivo à transmissão de saberes, de histórias e experiências de geração em geração. É uma forma de pensar o idoso como ponte viva para o futuro, e não como um peso. Relacionamento e interdependência no lugar da autoafirmação absoluta do "eu", é que é edificante. A percepção de que somos seres relacionais que só existem na medida em que se ligam a outros seres vivos. A ideia de que o bem individual depende do bem coletivo. O cultivo de virtudes como a compaixão, a solidariedade, a gratidão. O que fica de nós são as boas ações e os saberes, e não a quantidade de tempo que vivemos. Uma nova ética da finitude seria um convite para viver com plenitude e generosidade, aceitando o fim não como tragédia, mas como parte do sentido da vida. Ela poderia ajudar as sociedades ocidentais a reencontrar o equilíbrio entre indivíduo e comunidade, liberdade e responsabilidade, progresso e limites.

A saúde não é apenas uma questão de direitos, mas também de prioridades e possibilidades. Persistir na ideia de um SNS sem limites é condená-lo ao colapso. Os portugueses têm demonstrado generosidade coletiva ao financiar o sistema até aqui, mas é tempo de ajustar expectativas à realidade. Como dizia o provérbio popular, não se pode ter sol na eira e chuva no nabal. E a saúde pública portuguesa está prestes a descobrir, da forma mais difícil, essa verdade.


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