domingo, 1 de junho de 2025

O Estado Social e os seus coveiros


O debate não deve ser “público vs. privado”, mas a eficácia, o acesso, a dignidade e a justiça na prestação pública dos serviços de um Estado Social. Negar qualquer papel ao privado, mesmo quando este pode ser regulado, supervisionado e posto ao serviço do bem público, é abdicar da responsabilidade política de oferecer soluções reais à população. Manter uma fé cega num modelo de Estado Social que já não responde às necessidades concretas das pessoas é um erro. Defender o SNS deve significar garantir acesso à saúde de qualidade, e não perpetuar um modelo obsoleto. Se o setor privado pode ser regulado e colocado ao serviço do interesse público, então rejeitá-lo por princípio é pôr a ideologia acima do bem-estar das pessoas.

Esta é uma crítica à retórica vazia, especialmente no que diz respeito à manutenção do Estado Social tal como está, quando, na prática, muitos cidadãos não sentem os benefícios desse modelo. A ideia de que o trabalho político precisa de estar ancorado na realidade é uma exigência clássica de qualquer pensamento pragmático. Como diria Max Weber, é preciso distinguir entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade. A primeira diz: "eu sigo os meus ideais", mesmo que o mundo colapse. A segunda diz: "tenho de considerar as consequências reais das minhas decisões". Quem governa e insiste num Estado Social idealizado, mas distante das pessoas concretas, então estamos perante um grave problema de governação.

O Estado Social foi uma conquista do século XX, especialmente do pós-guerra europeu, e assentava em três pilares fundamentais: Educação pública e Saúde Pública: universais e tendencialmente gratuitos. Uma Segurança social de pensões e subsídios. Contudo, hoje muitos cidadãos sentem que a educação pública perdeu qualidade e está capturada por interesses sindicais. Que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está saturado, com listas de espera inaceitáveis. Que as pensões futuras são incertas, sobretudo para os mais jovens. Ou seja, o "Estado Social", tal como é apregoado, não está a funcionar como foi prometido. Logo, o discurso político que o continua a glorificar sem uma reforma clara soa a retórica vazia, ou pior, a autoengano institucionalizado.

A perceção do povo conta. Mesmo que algumas estatísticas mostrem que o Estado Social ainda proporciona certas garantias, o que conta é a perceção do cidadão comum que sente na própria pele o impacto desses serviços. E quando essa perceção é de abandono, de ineficácia, de desigualdade de acesso… então o sistema está a falhar no seu propósito central: criar confiança cívica e coesão social. A dissonância entre o discurso político e a realidade é o que faz o descrédito da classe política. Quando a classe política continua a repetir uma narrativa que já não se sustenta, gera-se uma dissonância cognitiva entre os governantes e os governados. Isso é o caldo perfeito para o crescimento do cinismo e a ascensão de populismos que prometem "varrer tudo".

O que fazer, então? Não abandonar o ideal do Estado Social, mas reformulá-lo com realismo, adequando-o às novas condições demográficas e reais limitações orçamentais. E às expectativas dos cidadãos de hoje, que não são os mesmos dos anos 1970. Um dos preconceitos ideológicos da esquerda atual é continuar a demonizar os privados na prestação de cuidados de saúde, quando na realidade o SNS já não responde às necessidades dos cidadãos e o país dispõe de uma rede privada cada vez mais competente e de qualidade. É ver curto qualquer envolvimento do setor privado na saúde como uma ameaça à universalidade, equidade e gratuitidade do sistema. Esta visão nasce de uma memória histórica quando os cuidados de saúde estavam reservados às elites e o acesso era profundamente desigual. Contudo, a realidade mudou, e o SNS encontra-se atualmente em profunda crise estrutural: falta de médicos e de profissionais motivados; incapacidade de responder atempadamente a necessidades básicas (listas de espera de meses ou anos); infraestruturas degradadas; e migração crescente de profissionais e utentes para o setor privado por falta de alternativas funcionais.

Continuar a demonizar os privados, e a ignorar o sofrimento real dos cidadãos – sobretudo dos mais vulneráveis, que muitas vezes recorrem ao setor privado com enorme esforço económico, não por escolha ideológica, mas por desespero – é estar a ser fautor da degradação inaceitável dos serviços públicos. A ideia de que o setor privado serve apenas os ricos é cada vez mais desmentida pela realidade: muitas clínicas privadas ou sociais têm acordos com o Estado, com seguradoras ou com sistemas mutualistas. Em muitos casos, o cidadão comum tem acesso mais rápido e digno por via desses serviços do que pelo SNS tradicional. Além disso, o privado pode ser regulado pelo Estado. Não se trata de privatizar o sistema de saúde, mas de integrar a oferta privada como complemento e não como substituição do serviço público numa lógica de colaboração, e não de competição selvagem.

É paradoxal que setores que se dizem preocupados com os mais frágeis prefiram manter uma estrutura estatal ineficaz – em nome de um purismo ideológico – do que aceitar soluções mistas mais ágeis, eficazes e humanas. O resultado é o abandono de muitos cidadãos à própria sorte. Há aqui um problema clássico de dogmatismo ideológico: quando a fidelidade a uma narrativa histórica impede de ver que o bem comum pode ser servido de formas diferentes e adaptadas ao século XXI.

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