terça-feira, 3 de junho de 2025

Preferir dizer: «Nem por mim ponho as mãos no fogo»


Dizer “nem por mim ponho as mãos no fogo” é reconhecer que 
a moralidade não é um capital garantido, mas uma travessia frágil. «A ocasião faz o ladrão» -- a ocasião, o acaso e as circunstâncias moldam mais do que o caráter absoluto. Se até agora tem sido razoavelmente irrepreensível, foi por sorte, por acaso, não tenha nenhuma superioridade moral por isso. Ninguém está imune à falha moral, nem mesmo quem tem boa formação ou consciência. Montaigne sugeria: “Quando julgo os outros, julgo-me a mim mesmo”. Há nela uma vigilância ética humilde, que falta em tantos moralistas convencidos da sua “virtude de nascença”. Essa lucidez também ecoa em Dostoievski, que dizia que qualquer homem, sob certas circunstâncias, é capaz de tudo. E mais ainda em Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, que insistia que não há monstros – há homens comuns em condições extremas.

É um olhar antropologicamente pessimista. Mas também profundamente humano, antidogmático, assumir-se "razoavelmente irrepreensível" não por mérito absoluto, mas por ausência de ocasião, por sorte. Pode-se considerar tratar de um tipo de estoicismo ético. Desconfia-se do orgulho, do mérito excessivo, do pedestal. E é precisamente isso que, aos olhos de muitos grandes pensadores morais (de Spinoza a Camus), representa a mais alta forma de integridade: não se julgar acima da queda.

Este tema tem raízes  em tradições filosóficas profundas que enfrentaram, sem ilusões, a falibilidade moral do ser humano. A sabedoria dos antigos passa pelo autoconhecimento, tanto na Grécia com o "conhece-te a ti mesmo" socrático, como em tradições orientais, o autoconhecimento é visto como o maior escudo contra a arrogância moral. O conhece-te a ti mesmo implica saber do que somos capazes (inclusive do pior), reconhecer que as virtudes são frágeis e contextuais, e que o erro é uma possibilidade sempre à espreita.

A vigilância permanente sobre si mesmo, como os estoicos Epicteto, Séneca, Marco Aurélio. Ninguém nasce virtuoso; a virtude exige disciplina constante. As paixões e os impulsos (ira, vaidade, medo, inveja) habitam todos os homens, mesmo os mais “sábios”. A ocasião revela o caráter, mas também o pode corromper. Marco Aurélio dizia: “Muitos cometeriam o erro, se tivessem a mesma oportunidade.” O estoico não se gaba da sua virtude, vigia-se, duvida-se, trabalha-se para não ser dominado por si mesmo. É exatamente o que fazem aquelas pessoas que não confiam cegamente em ninguém, a começar por si. Isso é sabedoria prática.

Nietzsche aborda a moral de forma trágica. Nietzsche desprezava a ideia de que alguém é “bom” por natureza. Para ele a moral cristã tradicional é muitas vezes ressentida, hipócrita, e serve para mascarar impotências e frustrações. O verdadeiro nobre é aquele que não se ilude sobre si mesmo -- que acolhe a sua ambiguidade, e não usa a “virtude” como escudo ou farsa. O homem superior, para Nietzsche, é aquele que “diz sim à vida toda”. E isso inclui reconhecer os seus impulsos baixos sem se esconder atrás de máscaras morais. É a recusas do autoengano moral, o mais perigoso de todos.

A ética da atenção e da humildade também existe em Simone Weil, que dizia que o bem nunca é seguro, nunca é dado por garantido. O mal é mais fácil, mais automático, mais mecânico. O bem exige atenção extrema, esforço contínuo, uma espécie de ascese. Para ela, a condição humana é tal que nenhum de nós é “moralmente estável” sem uma vigilância espiritual ativa. Não se arrogar a virtude, mas reconhecê-la como algo provisório, vulnerável, instável. Isso é, para Weil, o início da verdadeira compaixão pelos outros.

Camus, por sua vez, propõe uma ética do “homem revoltado”: alguém que, mesmo sabendo que a vida é absurda, sem garantias morais ou metafísicas, escolhe não trair a dignidade dos outros. A honestidade de admitir que poderia ter sido outro, num outro contexto. Isso faz parte da ética trágica de Nietzsche: viver com lucidez e sem falsas purezas.

O que a raiva mostra? Que mesmo uma pessoa racional e ética pode, em certas situações limite, aceder a uma violência interna que não sabia ter. Que a justiça violada, especialmente quando sentimos que fomos alvo de uma afronta gratuita, desperta instintos primordiais de retaliação. Que a ideia de “fazer justiça com as próprias mãos” aparece não apenas em bárbaros, mas em qualquer pessoa sob emoção intensa. Freud explica o que é o transbordamento da pulsão agressiva (Thanatos). Quando a civilização (superego, normas sociais) se vê traída, como no caso de alguém violar o que é nosso e “inviolável”, o impulso de destruição emerge, antes que a razão consiga contê-lo. Não a moral de fachada, mas a moral lúcida, que sabe que a virtude, quando existe, é frágil, ocasional e preciosa.
Um dia, ao entrar na garagem, encontrei o meu carro vandalizado. A porta do condutor estava escachada, e alguém, num ato de violência muda, tentara roubar o autorrádio. Não conseguiu. Mas o estrago estava feito — no carro, sim, mas sobretudo em mim. Naquele instante, fui invadido por uma raiva primitiva, súbita, descontrolada. Se o culpado estivesse ali, ao alcance da mão, não sei do que teria sido capaz. E não digo isto com orgulho, nem sequer com vergonha. Digo-o com lucidez. Naquele momento, eu seria capaz de matar.
Felizmente - ou por sorte, ou por acaso - o assaltante já estava longe. E eu, passado o turbilhão, recuperei a sobriedade do pensamento. Mas o que ficou não foi apenas a memória de um objeto danificado. Foi algo mais profundo: a revelação de mim mesmo. Porque, no fundo, essa reação violenta e imediata não me surpreendeu tanto quanto deveria. Ao contrário: confirmou uma suspeita antiga que cultivo como quem guarda uma verdade incómoda - a de que nem eu sou imune à barbárie. Que a minha “boa conduta” não é virtude sólida, mas algo que aconteceu até hoje por acaso, por falta de ocasião ou por medo das consequências. Não me iludo. Nem por mim ponho as mãos no fogo.
E é por isso que me considero um pessimista antropológico. Porque não acredito que o ser humano, por natureza, seja bom ou digno de confiança. O que nos impede de prevaricar, de mentir, de fugir aos impostos, de matar por raiva ou cobiça, não é a virtude - é o contexto. São os freios sociais, a vigilância, o medo da punição. Removidas essas barreiras, muitos - talvez a maioria - fariam o que condenam nos outros.
Incluo-me nisso. E essa é a única base possível, ao meu ver, para uma moral honesta: não confiar cegamente nem sequer na própria integridade. Não me orgulho disso. Mas é esta consciência trágica — esta vigilância humilde - que me impede de cair na arrogância moral de tantos que pregam virtudes, mas que, à primeira prova, se revelam tão egoístas quanto aqueles que condenam. A moral, se é que existe, nasce dessa tensão: entre o impulso e a contenção, entre o instinto e a consciência, entre o que eu sou e o que decido ser. E essa decisão, que hoje me impediu de agir com violência, pode amanhã falhar.

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